abril 09, 2014

"Pavana para o homem comum", por Jacques Gruman

PICICA: "Neste meio século de mais um dos surtos de autoritarismo que emporcalham a história do nosso país, presto minha homenagem ao homem comum."

Jacques Gruman

Pavana para o homem comum

Neste meio século de mais um dos surtos de autoritarismo que emporcalham a história do nosso país, presto minha homenagem ao homem comum.





Não sou da área da saúde,/minha missão não é salvar./Sou da Infantaria,/minha missão é matar. (cantado recentemente por um grupo de militares do Exército, enquanto fazia exercícios no bairro da Urca)
 
Já falei dele. Tio Bóris, bessarabiano de poucas palavras e muitos afetos, foi inspiração matutina do Menino. O rosto severo e o terno escuro não combinavam com as palavras suaves, quase em surdina, que usava sem parcimônia. Abriu os olhos do Menino para o que não era visível. Demonstrou coragem intelectual num episódio inesquecível. Cerimônia sobre o levante do gueto de Varsóvia, início dos anos 60. Teatro lotado. Era uma solenidade que congregava muitas famílias judias e o Menino, a contragosto, estava lá. Na mesa, um rabino conservador comenta: não importam tanto os números da barbárie, o fundamental é compreender suas causas e clamar por justiça. Nas escolas judaicas, os 6 milhões de judeus assassinados no Holocausto eram mostrados como uma tragédia definitiva, sobre a qual não cabiam maiores reflexões. O número era o fato e suas circunstâncias, e ponto final. Daí vinha a surpresa com a declaração do rabino. Ele afirmava que a estatística era importante, mas não o essencial. Que matar uma pessoa que fosse pelas razões invocadas pelos nazistas já seria um crime abominável. Tio Bóris, ateu, ouviu com atenção, balançou a cabeça em sinal de aprovação, e disse para o Menino: ele está certo. O ateu abria um canal de comunicação com o religioso ortodoxo, os opostos podiam se entender. Num mundo polarizado e numa casa pouco habituada ao diálogo, aquele momento fugaz criou raízes.
 
Hoje, em muitos lugares do Brasil, acontecerão eventos para lembrar os cinquenta anos do golpe de 1964. Há um grande envolvimento de acadêmicos de várias áreas e de setores políticos neste esforço de interpretação dos acontecimentos que desembocaram na deposição de Jango. Não pretendo, claro, competir com especialistas, que usam ferramentas apropriadas para entender a chamada Grande História, os macrofatos que apontam as linhas gerais das transformações nas sociedades. Vou olhar, como meu tio Bóris, para o pequeno detalhe (pequeno?), para o homem simples, para histórias que não vão para os livros, para o invisível. A violência da ditadura criou infinitos vasos comunicantes, que foram dos militantes em todas as áreas da oposição ao homem comum.
 
Vasily Grossman é meu inspirador. Escritor e sem o menor talento para a guerra, acabou sendo correspondente do jornal Estrela Vermelha nos vários fronts da invasão nazista à União Soviética, durante a Segunda Guerra Mundial. Seus relatos criaram um rico painel da vida cotidiana nos territórios devastados pela máquina de guerra hitlerista. Estava em Moscou e Stalingrado nos momentos em que tudo parecia perdido e na reação que levou o Exército Vermelho até Berlim. Ouviu soldados, oficiais, jornalistas, aldeões, crianças. Histórias que não constam dos compêndios sobre a Segunda Guerra, mas, sem elas, não é possível ter a dimensão completa dos acontecimentos. Uma delas, puro nonsense em meio ao caos, me impressionou. Uma organização feminina americana enviou para o front de Stalingrado dois pacotes. Eles deveriam ser entregues “às duas mulheres mais corajosas na defesa de Stalingrado”. Escolhidas pelo Comissariado Político, receberiam os presentes das mãos de Grossman (que detestava este tipo de cerimônia oficial). Ele atravessou o Volga, quando isso era extremamente perigoso, e foi ao encontro das duas moças, muito animadas com o fato de se encontrarem com um famoso escritor. Agradeceram e começaram a desembrulhar os pacotes. O que havia dentro ? Roupas de banho e sandálias. Todos ficaram constrangidíssimos. Roupas de banho de aspecto luxuoso pareciam estranhas naquele ambiente, no inverno gelado e sob fortes bombardeios alemães. Onde terão ido parar os maiôs? Aquela pintura surrealista talvez fosse um forte registro simbólico do que estava acontecendo em cada metro quadrado do inferno que arrombara os portões de Stalingrado. O poder da pequena História, da saga do homem comum.
 
O “meu” golpe começou em 1969, na Cidade Universitária da Ilha do Fundão. Nós, frangotes inocentes e virgens de política, iniciamos o ano letivo sob as graças do decreto-lei 477, que punia professores, alunos e funcionários da universidade envolvidos em “atividades subversivas”. A ilha era invadida quase diariamente por tropas do exército, que cercavam o restaurante, faziam um corredor polonês e exigiam documentos dos comensais. Para quem tinha esquecido a carteira de identidade, camburão. Um amigo foi salvo da cana pela boa vontade de um recruta, que relevou a falta de documento. Era um terror, que não está contabilizado nos balanços cínicos e mentirosos que militares, viúvas da ditadura e desinformados fazem hoje do golpe. Durante o governo Médici, que assumiu no final de 1969, o ministro da Educação foi o coronel Jarbas Passarinho (que, ao assinar o AI-5, celebrizou a frase canina: Às favas com os escrúpulos !). Um coronel no ministério da Educação. Precisa falar mais sobre as entranhas da ditadura ? Faz lembrar um esquete do impagável grupo argentino Les Luthiers. Simulavam a posse do ministério de uma república bananeira. E lá iam: Energia, general Fulano; Transporte, marechal Sicrano; Educação, ... cabo Beltrano. Típico.
 
O insignificante para mim é tão grande quanto tudo, disse o poeta Walt Whitman. Tinha razão. Os anônimos são a lanterna que ilumina a Grande História. Vejam só essa pequena história. Tsutomu Yamaguchi conseguiu fugir de Hiroshima depois da explosão da bomba atômica. Sabem para onde ele foi? Nagasaki. Estava lá quando explodiu a segunda bomba. Por puro acaso, sobreviveu. O depoimento do senhor Yamaguchi, sem rancor, é um dos documentos mais impressionantes sobre o genocídio nuclear praticado pelos Estados Unidos. Seu nome, no entanto, não é citado pelos especialistas que estudam o massacre nas duas cidades japonesas. Como entender o que aconteceu sem incluir o homem comum, os Yamaguchi? Usando números e gráficos, sem a dimensão humana da tragédia?
 
Neste meio século de mais um dos surtos de autoritarismo que emporcalham a história do nosso país, presto minha homenagem ao homem comum. Aquele que viu crescer as Ligas Camponesas e, depois, a volta triunfal dos coronéis. Ao operário que gritou “Viva Brizola !” em Copacabana, no dia 1 de abril de 1964, e foi agredido a coronhadas por um oficial da Marinha. Ao metalúrgico que votou nas assembleias do ABC e encorpou a luta contra a ditadura. Ao passageiro de ônibus que entregou seu jornal à vizinha de banco, que tinha lido uma notícia sobre repressão à luta armada (generosidade também é resistência). Ao Menino que deu a mão para alguém se levantar na Cinelândia, na Passeata dos Cem Mil.
 
Fonte: Carta Maior

Nenhum comentário: