PICICA: "- Cadê o processo 056 da Polícia Federal? O que foi apurado naquela ocasião? Por que foi arquivado? Por que ninguém foi punido? Os criminosos se enquadram na autoanistia que se concederam os torturadores?" |
QUEM MATOU KARÉ, O ÚLTIMO DOS JUMA?
José Ribamar Bessa Freire
13/04/2014 - Diário do Amazonas
"No domingo, o vigário disse missa e as índias cantaram o Tantum Ergo com harmonia não vulgar".
Alexandre
Rodrigues Ferreira, enviado ao Brasil pela Coroa Portuguesa para fazer
pesquisas de campo, percorreu durante oito anos (1785-1792) vastas áreas
da Amazônia. Quando passou pela vila de Ega, hoje Tefé, registrou em
seu diário de viagem a participação de índias de várias nações no ritual
católico, entre elas mulheres do povo Juma.
Denominados
também Yuma ou Arara, os Juma falam uma língua do tronco tupi-guarani
da família linguística Kagwahiva. Habitavam um território no rio Purus,
que segundo Euclides da Cunha, era "talvez a maior estrada por onde
passavam e repassavam, há muitos séculos, as tribos mais remotas dos
extremos do continente".
No
século XVIII, os Juma somavam 12 a 15 mil indivíduos, conforme
estimativas dos viajantes, mas a população foi reduzida drasticamente no
confronto com tropas portuguesas que realizavam "guerras justas" -
denominação dada ao violento e predatório processo de recrutamento. Os
que escapavam à morte, eram aprisionados e levados para os "currais de
índios" localizados nos rios Solimões e Negro, de onde eram "repartidos"
para fornecerem trabalho compulsório aos colonos, aos missionários e à
administração colonial portuguesa.
Duzentos anos depois da passagem de Alexandre Rodrigues Ferreira, as índias não cantam mais o Tantum Ergo. Desesperadas,
as únicas Juma sobreviventes em 1992, duas velhas que respondem pelos
nomes de "Baru" e "Inté", cumpriam todas as noites um ritual de lamentos
em que combinam choro e canto dramático.
O massacre de 1964
Quem exterminou os Juma que conseguiram resistir até o século XX à escravização, à catequese e às expedições punitivas?
O
processo de extermínio, iniciado pelo colonizador português no
séc.XVIII, continuou nos séculos seguintes já como ação de brasileiros.
Falas e mensagens dos presidentes da Província do Amazonas e relatórios
da Diretoria Geral dos Índios registram seguidos massacres contra os
povos do Purus, entre os quais os Juma, que resistiram corajosamente,
conforme Günter Kroemer, que consultou essa documentação analisada em
seu livro de 1985 "Cuxiuara - o Purus dos Indígenas: ensaio
etno-histórico e etnográfico sobre os índios do médio Purus".
Kroemer
conta que “de um massacre numa maloca, no Içuã, sobraram apenas duas
meninas. Levadas a Canutama onde foram adotadas por Benedito dos Santos
Pereira, logo morreram. Em outras malocas não se teve piedade: os
assaltantes jogavam crianças ao ar para depois espetá-las na ponta do
terçado; muitas foram jogadas na água, onde morreram. Várias expedições
punitivas foram feitas contra os índios. Mas, mesmo com a ameaça de
extermínio, não se entregaram".
Os
sobreviventes se refugiaram na bacia do rio Içuã. Nos anos 1960,
sobreviviam no Igarapé da Onça, próximo a Tapauá, algumas dezenas de
índios Juma.
-
Eu morei perto da maloca daqueles índios desde 1907 e eles nunca
mexeram comigo, nem com o meu pessoal. Sempre foram mansos e pacíficos.
Depois de muitos anos, conheci os índios que sempre tive vontade de
conhecer e aí ficamos amigos; quando eu ia visitá-los, eles me tratavam
muito bem. Várias vezes foram me deixar lá na minha barraca - diz o sr.
Luiz Chagas, morador de Tapauá.
No
início de 1964, o comerciante Orlando França, arrecadou dinheiro entre
empresários locais e organizou uma expedição dizendo que era para
extrair sorva e castanha. Armados até os dentes, ele, Antônio Craveiro,
Antônio Branco, Chico Lúcio, Raimundo Guimarães, Noel, Bernardo,
Valdemir, um tal de "Soldado" e alguns outros invadiram o território dos
Juma.
Quando
chegaram na maloca, não havia ninguém lá. Tiraram sorva à vontade. Lá
pelas quatro da tarde, quando os índios voltaram, foram recebidos à
bala. Chico Lúcio, um dos atiradores, falou que eles mataram "para mais
de 60 índios", segundo depoimento publicado no jornal Porantim, prestado por Luís Chagas, em junho de 1979, em Manaus, à jornalista Conceição Derzi.
Os sobreviventes
Os
poucos sobreviventes, entre os quais o menino Karé, com seis anos de
idade, e as mulheres "Baru" e "Inté" se refugiaram no igarapé Joari,
afluente do Içuã. Em 1979, alertada pela denúncia do Porantim, a
Polícia Federal abriu inquérito de número 056 para apurar e identificar
os responsáveis pela chacina, que adquiriu contornos de genocídio. Derzi
ficou no pé da Polícia Federal, mas o inquérito acabou dando no que
sempre dá nesses casos: em nada.
Anos depois, em matéria publicada no Jornal do Brasil e no jornal A Crítica
(24/01/93) o repórter amazonense Orlando Faria conta que o ataque de
uma onça pintada, numa noite de lua cheia, em janeiro de 1992, decretou a
extinção dos Juma, ao matar o índio Karé, de 35 anos, o único homem em
condição de reproduzir. Os Juma ficaram reduzidos a três meninas de
oito, dez e doze anos e a dois casais de velhos.
Quase
na virada do século, em 1998, a família Juma foi levada pela Funai para
a aldeia Alto Jamary, dos Uru-eu-wau-wau, onde as meninas se casaram
com indivíduos dessa etnia, mas manifestavam desejo de retornar ao seu
território de origem. Em 2002 já estavam reduzidos a cinco indivíduos e
em 2010 a apenas quatro.
Considerados
por Helene Clastres como "os teólogos da floresta" por haverem
construído um metadiscurso sobre sua própria religiosidade, os índios do
grupo tupi-guarani viviam em constantes migrações em busca da Terra Sem
Males. Os seus cantos e melodias entrecortados de frases não cantadas
anunciavam a nova terra da promissão, cujo acesso era facilitado pela
dança, que tornava o corpo mais leve.
As
provações morais e as longas peregrinações representavam o tempo
necessário para uma lenta mutação do espírito e do corpo, o que os
tornava dignos e merecedores da Terra Sem Males.
Os
Jumas que sobreviveram - nos conta Orlando Faria - passaram a criar
pássaros de todos os tipos para reencontrar seus parentes assassinados,
pois acreditam que as aves incorporaram os espíritos de seus entes
queridos. Karé, o último dos Juma, pode ser hoje um gavião rei, voando
para a Terra Sem Males. Enquanto isso, nós ficamos mais pobres. E
impotentes. Quem acabou com os Juma não foi uma onça, mas um bicho muito
mais feroz, predador e perigoso.
P.S.-
Pensei publicar aqui uma versão da palestra que ministrei quinta-feira
(10/04) no II Seminário sobre interculturalidade organizado pelo
Instituto Federal Catarinense (IFC) em Camboriú. O tema da mesa - o
diálogo das culturas ancestrais com as ciências e as tecnologias - foi
discutido por Adir Casaro (UCDB), Vera Santos e Maicon Fontanive, sob
coordenação de Michel Goulart (IFC). Mudei de ideia. Reproduzo aqui
versão atualizada de artigo publicado em Manaus (1993) e depois em São
Paulo pelo ISA - Instituto Socioambiental (1996), só para poder formular
algumas questões à Comissão da Verdade, a nacional e a local:
-
Cadê o processo 056 da Polícia Federal? O que foi apurado naquela
ocasião? Por que foi arquivado? Por que ninguém foi punido? Os
criminosos se enquadram na autoanistia que se concederam os
torturadores?
Fonte: TAQUIPRATI
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