PICICA: “O tal Estado de Direito Democrático é, tanto mais, a resultante
prática da Democracia contra o Estado. A democracia formal não quer
dizer absolutamente nada.”
Nossa República é um monstro sem cabeça
03/04/2014
Por Hugo Albuquerque
Por Hugo Albuquerque, blogueiro, UniGaroa e mestrando em direito pela PUC de São Paulo; para o dossiê UniNômade 50 anos do golpe (chamada de textos aberta, aqui)
“O tal Estado de Direito Democrático é, tanto mais, a resultante prática da Democracia contra o Estado. A democracia formal não quer dizer absolutamente nada.”
Imagem: decapitação do Rei Carlos I, 30/1/1649.
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50 Anos do Golpe Militar: A nossa República é um Monstro sem Cabeça
Primeiro de Abril de 2014: 50 anos de Golpe Militar e tanto
a pensar. Existem dois discursos predominantes, e antagônicos, sobre a
ditadura cujo marco inicial (um golpe!) ora completa o quinquagésimo
aniversário: (1) a ditadura acabou e, em seu lugar,
sobreveio um ciclo democrático absoluto que, apesar dos seus defeitos,
conseguiu colocar um termo no nosso histórico de autoritarismo — e tudo o
que não é democrático ou é herança não resolvida da ditadura ou,
possivelmente, algum tipo erro; (2) a ditadura jamais
terminou realmente, portanto, vivemos, na verdade, uma farsa
democrática, um estado de exceção sofisticado em plena operação.
É natural que a elite política brasileira — inclusos aí os
três últimos presidentes da república –, a qual ascendeu na luta contra a
ditadura, tenha uma visão edulcorada sobre o processo de
redemocratização. Do outro lado, muitos intelectuais de esquerda creem
que o sistema incorporou esse entulho autoritário à sua essência (ou já o
trouxe incorporado) e/ou que os supostos acidentes e erros seriam uma
constância caracterizadora do regime atual — a normalidade de exceção,
exposta na ainda persistência de uma polícia militarizada e integrada à
estrutura das Forças Armadas, a existência de uma Justiça Militar com
jurisdição sobre civis em época de paz, a política desenvolvimentista
implacável contra as minorias, a força de inúmeros políticos ligados à
ditadura etc.
Poderíamos citar também a extrema-direita saudosa do regime
militar, a qual vê no sistema atual apenas corrupção e degradação.
Seria um “exagero” ou um “excesso” democrático. Mas, a rigor, isso é
apenas uma forma de ver e praticar a primeira leitura — isto é, o
reconhecimento da existência de uma democracia plena, só que do ponto de
vista de quem a odeia. A importância dessa peculiar forma de ver as
coisas, na verdade, só tem importância para desconstruir o segundo
discurso: por que justo os defensores da ditadura não veem continuidade
alguma entre o regime militar e esta democracia, a ponto de fazerem
marchas, escreverem blogs, atacarem os direitos humanos? Se justo eles
reivindicam a volta da ditadura é porque existem controvérsias quanto a
continuidade linear de ambos os regimes.
É claro que isso poderia ser questionado: de repente, os
setores golpistas e pró-ditadura preferem, hoje, a estratégia de estar
nos bastidores de uma democracia de enfeite, ao contrário de uma
extrema-direita alucinada. O ardil seria dissimular dentro da ordem
atual e corroê-la por dentro. Há problemas, pois, de todo modo, se
dispositivos de dominação originários da ditadura ainda existem, e
operam, nem por isso eles operam da mesma forma — tampouco esses
democratas de ocasião não são obrigados a aceitar uma série de políticas
que, olhando bem, eram impossíveis na ditadura e eles próprios não
concordam.
Tanto o discurso da desconexão absoluta quanto o da
continuidade razoavelmente linear da ditadura e da democracia são, pois,
meras expressões da interesses subjetivos no mundo da política e da
academia. Eles são menos até do que “ideologia”. E não é questão de
afirmar um objetivismo qualquer, mas há uma diferença entre um discurso
com rigor conceitual e wishful thinking. Em outras palavras,
seria mais próximo da verdade falar em um grande pontilhado entre uma
coisa e outra, com a localização dos dois processos dentro de um mesmo
plano: se os cortes históricos têm clara relação, vejamos nós, com
mudanças de forma de entender o tempo, talvez o único corte desse gênero
seja muito anterior ao golpe de 1964, lá atrás, com a proclamação da
República.
O tempo republicano era o da pressa e do sobressalto. Ao
contrário do tempo da colônia e do império, uma paradoxal encontro entre
uma monarquia europeia pré-industrial e a temporalidade dos índios e
dos negros, agora a ordem era a insana marcha para o futuro. Não à toa,
do início da República até os dias atuais, a ideia de que o Brasil
deveria se converter numa civilização “desenvolvida” o mais rápido
possível — e a qualquer custo — resultou em períodos autoritários
voltados a “desentravar” o programa assumido naquele instante: a bem da
verdade, já na esteira do golpe de 1989, tivemos a república da espada —
de uma sanguinolência pouco lembrada –, a ditadura Vargas e, depois a
ditadura militar. No meio disso, períodos de regularidade
institucional, a república velha, a primeira democracia e a atual
democracia, nas quais o grau de abertura do regime variou conforme o
êxito da luta política.
Sim, houve violência de Estado também no período de
regularidade: durante a república velha, a primeira democracia e a
atual, houve a mesmíssima marcha, com suas habituais vítimas, mas o modo
de operação era oculto, à sombra da face pública e gloriosa da
política, levada a banho-maria e, ainda, baseado em intervenções
específicas e muito bem localizadas — como, por exemplo, na guerra do
Contestado (1912-1916). As ditaduras, sobretudo, a ditadura militar
foram, pois, momentos extremos na qual as vilanias passam a ser
realizadas pelo próprio senhor da casa, no máximo como segredo público —
ameaçando a todos de forma total.
A violência específica da ditadura militar residiu no fato
de que, pela primeira vez, o movimento emancipatório conta com um
fortíssimo devir-minoritário: até os segmentos da elite que se
empenharam radicalmente na luta polítca estavam de tal forma enquanto
minorias que, vejamos só, acabaram se tornando tão matáveis quanto os
trabalhadores, negros, índios etc. Se a luta era comum, a repressão era
total. Essa perspectiva de que não havia segurança no combate contra a
ditadura, que ela estaria disposta a tudo, foi algo certamente inédito
na nossa história, na qual mesmo nos piores momentos da ditadura Vargas
ou do início da República, determinadas pessoas, feliz ou infelizmente,
estariam a salvo.
Sim, qualquer Estado mantém, em latência, a possibilidade
aplicar a exceção soberana e suspender garantias e direitos. Não é que
ele deva, mas ele pode. Essa possibilidade de suspender o direito, no
caso brasileiro, se dá pela dinâmica exploratória do “progresso” na
forma como esta foi concebida no final do século 19º. Queremos um modelo
de civilização impossível e nos tornamos uma caricatura tropical dos
países europeus. Longe de maiores monarquismos, o fato é que,
simbolicamente, o rei caiu, mas a nova ordem é uma monarquia sem rei:
assim, as máscaras são a única face possível para um monstro sem cabeça,
um monstro chamado República.
A relação entre ditadura militar e democracia não é
imediata entre elas, mas entre as duas no sentido em que se situam no
plano da tradição republicana brasileira. Sim, é possível que ocorra um
novo golpe, mas a institucionalidade republicana pode muito bem, com os
novos mecanismos de dominação biopolíticos, dispensá-lo. O controle
territorial das favelas cariocas está sendo possível dessa forma:
olhemos para o caso da presente ação dos fuzileiros navais, munidos de
mandado de busca e apreensão coletivo expedido pela Justiça Militar, no
Complexo da Maré, no Rio. Se essa tecnologia de poder falhar, por que
não uma tecnocracia empresarial, judicial ou novamente militar? Tudo é
possível.
No plano da lei, vivemos entre a exceção como regra e a
regra excedida. O problema do monstro, naturalmente, não é seu
acefalismo, mas sim a insistência em ter uma cabeça novamente. E ela a
encontra em toda parte, na política ainda semidespótica ou no próprio
capital. Na falta disso, surgem as máscaras e a necessidade de deter o
monopólio das mesmas.
Portanto, o tal Estado de Direito Democrático é, tanto
mais, a resultante prática da Democracia contra o Estado. A democracia
formal não quer dizer absolutamente nada. Muito, de fato, foi
conquistado nos últimos anos, mas tudo isso se deu por fora e contra o
Estado, no máximo, taticamente por dentro dele. Se o Estado é sempre uma
máquina implacável, o republicanismo brasileiro só acirra isso.
Divulgue na rede
Fonte: Universidade Nômade Brasil
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