PICICA: "“Dentro de mim, debatem-se trabalhador e aristocrata, o homem da rua e o enlevado”, escreveu Oswald de Andrade, em texto de 1950"
Auto-retrato de escritor “quase inverossímil”
“Dentro de mim, debatem-se trabalhador e aristocrata, o homem da rua e o enlevado”, escreveu Oswald de Andrade, em texto de 1950
Por Oswald de Andrade | Imagem: Lauro Monteiro
[Leia também: “O Brasil durante a vida de Oswald de Andrade”, uma cronologia a partir do ponto de vista do Teatro Oficina, em 1967]
Oswald de Andrade foi o maior inventor de si mesmo. Havia tanto dele nas suas obras de ficção, nos romances, nas peças de teatro, quanto havia de ficcional nos seus textos memorialistas, nos artigos, nos manifestos.
Essa condição traz em si a necessidade de olharmos com uma visada dupla, multifacetada, que contemple esse personagem quase inverossímil de tão real.
Nesse sentido, não é difícil avançar na compreensão que o crítico Antonio Candido desenvolve acerca do escritor. Num ensaio famoso, Candido procura dar conta das profundas intersecções entre vida e obra do líder modernista, na medida em que “a sua existência é tão importante quanto a obra1”.
Esta talvez seja uma das chaves mais decisivas para chegarmos perto de um melhor entendimento de sua produção literária e artística. Em vários textos, o poeta vai procurar falar de si, das suas memórias, das suas dores, alegrias, iras, e da incompreensão por seus contemporâneos.
Daqueles diversos textos, provavelmente o mais ambicioso seja o projeto de memórias que ele desenvolve em “Um homem sem profissão sob as ordens da mamãe”.
No entanto, existirão outros. E talvez o mais significativo, em sua notável síntese, seja o auto-retrato que publicamos a seguir.
O texto saiu inicialmente no “Diário de Notícias”, em 1950, reaparecendo muitos anos depois, já em 1964, no Suplemento Literário do jornal “O Estado de São Paulo”.
Posteriormente, retornaria, em 1967, aparecendo como um dos destaques do programa da peça “O Rei da Vela”, de autoria do próprio Oswald de Andrade.
Vale insistir que a famosa encenação de Zé Celso, com o Grupo Oficina, teria selado aquele movimento iniciado pelos irmãos Haroldo de Campos e Augusto de Campos na redescoberta antropofágica do escritor modernista. (Theotonio de Paiva, editor da seção especial “Oswald 60”)
– Auto-retrato de Oswald de Andrade
Quando digo a você que foi povo quem desceu em São Vicente, é porque seus antepassados também desceram lá, há quatrocentos anos. E eu sou povo. Do lado materno venho de uma descendência faustosa de guerreiros, os “Fidalgos de Mazagão”, a quem D. José I mandou dar de presente um pedaço do Amazonas.
Esses senhores meus avós, segundo me informou Gilberto Freyre, eram de uma indolência desoladora para a colonização. O contrário dos açoreanos, donde veio meu ramo paterno. É natural, pois, que dentro de mim se debatam o trabalhador e o aristocrata, o homem da rua que atravessa na frente dos automóveis para não parar e o enlevado que quer ficar em casa escrevendo ou lendo.
Nasci em São Paulo, na atual avenida Ipiranga, nº 5 (primitivo), ao meio dia de 11 de janeiro de 1890. Bacharel em Ciências e Letras pelo Ginásio de São Bento, onde ouvi um velho professor, que se chamou Gervásio de Araújo, que ia ser escritor. Isso decidiu em 1907 a minha vocação e a minha carreira. Passei a comprar livros, a ler e escrever, a estudar. Logo que pude, entrei para um jornal. O “Diário Popular” publicou em 1909 o meu primeiro artigo. “Penando” – uma reportagem da excursão do presidente Afonso Pena aos estados do Paraná e Santa Catarina.
A muito custo, bacharel de Direito pela Faculdade de São Francisco de São Paulo em 1919. Orador do centro acadêmico 11 de agosto. Nunca advoguei. Continuei jornalista. Publiquei, com Guilherme de Almeida, o meu primeiro livro em 1916. Duas peças em francês. Foi representado um ato de “Leur Âme” por Susanne Desprès, no Teatro Municipal de São Paulo. Com a maior e mais justa indiferença do público e da crítica. Em 1922 tomei parte na Semana de Arte Moderna e publiquei “Os Condenados”, meu primeiro romance. Fiz uma conferência na Sorbonne e outra no Sindicato dos Padeiros, Confeitarias e Anexos.
Viajei, fiquei pobre, fiquei rico, casei, enviuvei, casei, divorciei, viajei, casei… Já disse que sou conjulgal, gremial e ordeiro. O que não me impediu de ter brigado diversas vezes à portuguesa e tomado parte em algumas batalhas campais. Nem ter sido preso 13 vezes. Tive também grandes fugas por motivos políticos. Tenho três filhos e três netos e sou casado, em últimas núpcias, com Maria Antonieta d’Alckmin. Sou livre-docente de Literatura na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo.
(Publicado originalmente no “Diário de Notícias”, 8/1/1950)
1Candido, Antonio. “Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade”. In: Vários Escritos. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011, p. 50.
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
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