PICICA: "Escritor moçambicano conta que tece novos mundos
substituindo eurocentrismo e ciência-absoluta por aposta em seres
múltiplos, pós-valor e olhar não-cartesiano"
Mia Couto e seu colar de miçangas incomuns
Escritor moçambicano conta que tece novos mundos substituindo eurocentrismo e ciência-absoluta por aposta em seres múltiplos, pós-valor e olhar não-cartesiano
Entrevista exclusiva a Rôney Rodrigues
Nu e cru, eis o fato: Mia Couto cola miçangas. Com
sua fala macia, vai compondo as palavras, devagar, com esmero, e sem que
nem mesmo percebamos o fio articulador, está pronto um “colar vistoso”.
“Assim é a voz do poeta”, explica em um texto. “Um fio de silêncio
costurando o tempo”.
E o escritor moçambicano já
costurou muitos fios em seus 58 anos. Escreveu 23 livros, traduzidos
para seis idiomas e publicados em mais de vinte países. Em 2013, venceu o
Prêmio Camões – o mais importante da língua portuguesa – e o Prêmio
Literário Internacional Neustadt, considerado o Nobel norte-americano.
Biólogo de formação, Mia Couto também dirige uma empresa que realiza
estudos de impacto ambiental em Moçambique e é professor de ecologia da
Universidade Eduardo Mondlane (UEM).
Antes que a entrevista comece, neste 14 de novembro
de 2013, ele me conta um pouco de seu último livro, “Cada Homem É uma
Raça”. “O título é tirado de um diálogo que eu imaginei; um diálogo
entre a polícia e um vendedor de pássaros”, explica. “A polícia pergunta
para esse vendedor qual é a sua raça. ‘A minha raça sou eu, João
Passarinheiro.’. Explique-se melhor, disse a ele o policial. E ele
disse: ‘minha raça sou eu mesmo. A pessoa é uma humanidade individual.
Cada homem é uma raça, senhor polícia’.
Enquanto toma um gole de café, queixa-se que seu
relógio biológico está desregulado, afinal o fuso horário de cinco horas
entre Moçambique e Brasil ainda o abate, embora as viagens sejam
costumeiras. Cansado então? “Não, agora já estou acostumado”. Não
acreditei. Mas não precisamos acreditar em tudo, não é verdade?
PARTE UM
Isso que se chama realidade
Uma vez você disse que os moçambicanos – assim como
os brasileiros – concebem e aceitam a realidade de uma maneira pouco
realista. Mais ou menos vivemos em uma história de realismo mágico?
De fato, temos tipos de culturas misturadas,
miscigenadas, e essa mestiçagem se fez com nações, culturas, sentimentos
e sensibilidades olhassem essa categoria chamada realidade de outra
maneira e não fizesse a fricção entre o que é certo ou não certo.
Tanto o Brasil como Moçambique são países que resultaram dessa
emergência, dessas sensibilidades diferentes. Essas culturas – vou falar
no caso de Moçambique – têm uma diferente maneira de olhar essa linha
de fronteira entre o que é verdadeiro, o que é falso, o que é mágico e o
que é real. Isso, obviamente, impregnou nossos países a olhar a
realidade com uma interrogação. Os próprios europeus, que têm essa
filosofia que valoriza tanto essa chamada realidade, criaram isso que se
chama “realismo mágico”. De qualquer maneira, nunca seria um
brasileiro, um latino-americano ou um africano a inventar a categoria de
realismo mágico porque nós temos outro olhar. Trata-se de uma filosofia
– de um modo de estar de estar no mundo – de um povo que não leva muito
a sério o chamado sentido da realidade e não se deixa intimidar por uma
certa racionalidade que é muito normativa em relação à necessidade de
festejar o corpo e a alegria de viver.
Essas classificações são porosas, claro. Você acha que elas ajudam a gente entender os processos?
Nós temos uma tendência natural, digamos assim, para
criar esses compartimentos e pensar nos estereótipos à base de clichês. A
única maneira é essa: construir para nos desconstruir. Se nós não nos
tomarmos muito a sério, de maneira que não nos arrumem a nós e que seja
uma ferramenta que a gente possa usar e desfazer – tendo consciência
dela –, tudo bem. Mas pensar em classificar também me parece uma
preocupação que temos por influência de certa filosofia europeia.
Você costuma falar que contar história é uma maneira
de rezar. Queria que você me falasse como essa reza ajuda a recuperar as
histórias contadas dos outros.
Toda literatura faz isso. Quer dizer, há todo um convite
para essa realidade, que foi nossa primeira pátria. Não aconteceu
comigo, na minha casa, por essa circunstância particular de se contar
muitas histórias, mas todos nós nascemos crianças e chegamos à palavra
por via desse pensamento. Não é só um assunto técnico – de estar escrito
–, mas é um modo de estar aberto, em sintonia com o que é visível e
não-visível. Nos deixamos guiar pela palavra, somos absorvidos por ela,
somos produtores dela. E isso a literatura resgata. É como dizer: “vamos
permitir que uma certa infância se reinstale dentro de nós”. É isso que
me faz feliz em ser escritor, é, sobretudo, eu ter feito contas com
minha identidade, dizendo assim: “eu não sou uma única pessoa, sou
várias, ao mesmo tempo sou tudo isso, tem uma parte negra, uma parte
branca, uma parte mulher, uma parte homem, uma parte cientista, uma
parte poeta”.
PARTE DOIS
Os comedores de nações
Era 12 de junho 2001 e Mia Couto subiu ao palco da
Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, para receber o prêmio Mário
António Fernandes de Oliveira – atribuído de três em três anos – por “O
último voo do flamingo”. Tinha na ponta da língua o que dizer:
“O último voo do flamingo fala de uma perversa
fábrica de ausência – a falta de uma terra toda inteira, um imenso rapto
de esperança praticado pela ganância dos poderosos”, pronunciou. “O
avanço desses comedores de nações obriga-nos a nós, escritores, a um
crescente empenho moral”.
E desse empenho moral, Mia Couto entende: participou
da luta pela independência de Moçambique, quando se juntou à Frente de
Libertação de Moçambique (Frelimo). Nunca pegou em uma arma de fogo
porque os insurgentes proibiam brancos de andarem armados. A arma, desde
aquela época, era a mesma de hoje: caneta e papel.
O que é a fábrica de ausências?
Hoje, infelizmente, não há nenhum país que não esteja
nessa condição. Desde o início, desde crianças, nós somos colocados numa
circunstância de consumir: consumimos filmes, sons… Consumimos o tempo
que já não tem tempo para nós. Precisa-se devolver essa condição de
produtor, de maneira que, desde o início, desde que a criança começa a
enxergar o mundo, se aceite que ela tem um discurso próprio – mesmo que
esse discurso seja completamente errado aos olhos do adulto, mesmo que
ele seja só no nível da poesia. Quando a criança pergunta – ou quer se
encantar por qualquer coisa, seja a chuva, a nuvem, o vento –, que seja
aceito esse discurso como uma coisa que está sendo criada e, portanto, é
uma construção que não deve ser interrogada se é errada ou não. A
criança se coloca como sujeito de si próprio e parte dos adultos tem a
tentação de corrigir a criança, dizendo: “não, o vento não é isso o que
estais a dizer?”, e explica o que é o vento. Isso promove uma maneira de ver hegemônica, fundada na ciência. Precisamos reinventar o mundo.
E esse seria o “empenho moral” do escritor?
Sim, construir o espaço do sonho possível. Numa
sociedade em que o valor está, simplesmente, no que pode ser comprado e
vendido, alguma coisa tem que ir além disso: o prazer que temos
em sermos outros, em sonharmos, em viajarmos através do outro. A
preservação desse espaço está para além da razão do lucro e do mercado.
Esse é o nosso empenho moral e nos interessa que o livro seja capaz de
produzir esse território do conhecimento.
Você esteve ligado à Frelimo, que buscava a independência de Moçambique. Na medida do possível, essa independência chegou?
Não. Moçambique precisa conquistar um caminho próprio,
um caminho que seja original. Essas são as grandes urgências da nossa
sociedade. Moçambique não teve tempo. Na verdade, o que houve foi que
não lhe é dado esse tempo, uma nação tem que se integrar no mundo e esse
mundo é ditado por essa pratica de ser global e de se encaixar na
economia. Eu sei que é uma coisa muito utópica, mas poderíamos ter esse
tempo e espaço para criarmos uma via própria – que poderia não
ter o nome concreto de socialismo ou capitalismo – uma via que dê mais
respostas à nossa própria cultura, à nossa própria realidade.
Mas como desbloquear essa via, que parece estar sempre impedida, usando uma expressão sua, pelos “comedores de nações”?
Essa é uma resposta que eu não tenho. O que eu acho é
que estamos todos perdidos em relação a isso, pois vivemos esses
confrontos. Não é um caso só pra Moçambique: o Brasil também vive isso.
Não há nação que não viva isso, mas podemos ter uma identidade própria e
não uma que seja reproduzida e imposta por uma coisa que não tem rosto.
Precisamos estar conscientes de que esse caminho não nos serve mais,
mas ainda estamos todos apalpando no escuro.
Algumas pessoas se referem à sua literatura como altamente politizada, também por sua história de militância. Você a vê assim?
Queria que ela fosse, em primeiro lugar, literatura. E
que fosse política só na medida em que ela fosse literatura. Toda
literatura é política. Essa classificação é demasiadamente apolítica e
me é preocupante, acaba por deixar escapar outra coisa que é mais
importante. A biologia narra a história da vida. E a literatura também: é
a arte de celebrar o fato de estarmos vivos.
PARTE TRÊS
Poeiras e cinzas do chão
Em o “Afinador de Silêncios”, Mia Couto,
provavelmente recordando-se de sua infância tímida – “refinando
silêncios, no plural” – adverte que “uns nasceram para cantar, outros
para dançar, outros nasceram simplesmente para serem outros”. E conclui:
“eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio”. Queria
saber quando é que o escritor decide romper esse silêncio.
Você se recorda de quando se sentiu absorvido pela palavra?
Sim, sobretudo quando eu escutava murmúrios – nunca foi
pela voz proclamada, não uma coisa que se dissesse em voz alta – mas
algo que sussurrava: os murmúrios das histórias que minha mãe me
contava. Era como se a história fosse meu leito, onde eu me deitava
naquele momento de transição entre a vigília e o dormir. A palavra me
conduzia.
Você já disse uma vez o silêncio é uma música em
estado de gravidez. Quando a papel está em branco ou a tela do editor de
textos aberta à sua frente, como você apura esse silêncio para tentar
transformar em encantamento?
A relação com o silêncio é importante para mim, porque
eu tive que aprender e isso teve uma importância decisiva. Não apenas
porque meu pai era um poeta, mas porque vivíamos em estado de poesia em
nossa casa. O meu pai ensinou uma coisa: olhar para as pequenas coisas,
ao jeito das lições de Manoel de Barros, procurando brilhos entre poeiras e cinzas do chão. Ele nos ensinou também a ouvir poetas em
noites de poesia com ele e poetas amigos. A palavra era como se fosse
música. A minha origem – parte de mim, que é meu pai – me ensinava que o
silêncio era um vazio, e era preciso ocupá-lo. Havia um medo do
silêncio e, esse mesmo medo fazia com que a gente conversasse para
ocupar o silêncio. Mas acho que a África me deu muitos silêncios e
algumas coisas eu não teria, se não fosse daquele lugar. Ali o silêncio
não é uma ausência, é uma presença. Alguém sempre está falando conosco
quando não dizemos nada. O trabalho foi de me fazer recuar diante do
medo, deixar de temê-lo e perceber que no silêncio há qualquer coisa
pedindo para ser escutada.
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
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