abril 11, 2014

"Em Gilberto Freyre, Brasil como presente da comida", por Raul Lody

PICICA: "Por que “Casa-Grande & Senzala” ajuda a compreender, também, papel da alimentação no desenho dos dramas e encantos do país"

Em Gilberto Freyre, Brasil como presente da comida


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Por que “Casa-Grande & Senzala” ajuda a compreender, também, papel da alimentação no desenho dos dramas e encantos do país

Por Raul Lody, colaborador do site Malagueta | Imagem: Jean-Baptiste Debret, Um jantar brasileiro (1927)

O livro germinal de Gilberto Freyre, que em Dezembro de 2013 completa 80 anos da sua primeira edição, tem a virtude de ser sensível diante da complexidade das suas grandes questões sobre um Nordeste fundado no açúcar. Gilberto se propõe a revelar “o seu” Nordeste ao leitor. Um Nordeste orientalizado a partir das matrizes lusas com os seus encontros com a China, Índia,

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Japão; e nas tradições moçárabes e judaicas.

Um nordeste da Zona da Mata de Pernambuco. Sim, Pernambuco como um foco possível e preferencial de Gilberto. O livro Casa-Grande & Senzala é também um depoimento vivencial de Gilberto, que mistura endoetnografias nos cenários do Recife.

Assim, ele traz leituras e experiências familiares; também dá interpretações sentimentais; e ainda busca os sinais de uma região orientada pelo patriarcado que nasce na cana sacarina.
É uma obra para muitas interpretações, para ser revisitada apontando-se para as cozinhas como experiências formais da identidade do brasileiro. Por ser um livro de vocação sensorial, sugiro ler algumas páginas ao sabor de um bolo de massa de mandioca, ou bebendo um boa cachaça, para que se possa assim ter um encontro hedonista ao gosto de Gilberto.


Ele se revela hedonista quando traz de Ruth Benedict os seus conceitos de “apolíneo” e de “dionisíaco”. São encontros desejáveis e necessários ao tema açúcar, um tema nem sempre tão “doce”.

Entender ainda que Gilberto tem suas preocupações literárias e estéticas com Casa-Grande & Senzala. Ele relata ambientes, festas, indumentárias, comidas, processos culinários, rituais de comensalidade. Gilberto tem um olhar iconográfico dominante, e recorre ao desenho e a pintura como processo de criação e de representação cultural.

Estes imaginários estão nos textos, e pode-se dizer que Casa-Grande & Senzala é um livro “cinematográfico”. E com este desejo visual, Gilberto mostra o melhor deste livro.

Tudo acontece em contexto ecológico, na Mata Atlântica e nos canaviais, temas que mais tarde são aprofundados no livro Nordeste. Esta sociedade do século XIX, exemplar em Casa-Grande & Senzala, é ampliada também em Sobrados e Mocambos, com um olhar mais urbano sobre a civilização que nasce do açúcar.

Casa-Grande & Senzala mostra as histórias das “casas” e das pessoas que vivem nestas casas.

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Relata religiosidade, maneiras de fazer a comida, escolher os ingredientes; as muitas receitas de um Portugal já globalizado com as “grandes navegações” que aproximaram o Oriente do Ocidente. Esta obra mostra as festas, os rituais do plantio e da colheita da cana sacarina; os encontros de portugueses africanizados pelo Magreb, de povos nativos, de milhares de africanos da Costa, que revelam novos gostos e interpretações de sabores que se espalham pelas cozinhas, pelas mesas, num Brasil à boca.

Gilberto quer apresentar um lugar possível do “trópico”. Mostrar uma civilização onde o poder formal está no mando masculino. Contudo, este poder está também nas cozinhas, territórios consagrados ao mando feminino. Cozinhas na “Casa-Grande”, lugar onde as relações sociais são formalizadas na intimidade de espaços geradores de comidas, de um poder que se projeta no ato da alimentação.

Gilberto revela os rituais das alimentações, inclusive dos “santos”, que são íntimos nestas relações sociais já à brasileira. O Menino Deus, para adoração e para o convívio com as crianças da “casa”, torna-se tão próximo que parece estar também se lambuzando de geleia de araçá.

Outros doces são marcantes e, em especial, os “bolos”, tema que fundamenta o seu livro Açúcar, também dos anos 1930. Gilberto mostra o doce como um preparo feminino, marcado pela mulher lusa como uma atividade especial, pois o doce tem um preparo que vai muito além do açúcar. É um preparo de memórias ancestrais da história colonial lusa.

O termo “doce” valoriza e qualifica aspectos sociais como, por exemplo, “você é um doce”; “te dou um doce”; tudo mostra o açúcar como formador de laços sociais, e isso também é retratado em Casa-Grande & Senzala.

As referências dos sabores, a nova forma para se construir o paladar, o reconhecimento do que é o gosto gostoso, daquilo que chega de Portugal com os “gostos do mundo”, e se misturam com este Brasil de mandioca, de peixes, de milho, de pimentas frescas, e de muitos outros produtos da “terra”, produtos nativos.

Gilberto, em Casa-Grande & Senzala, expõe uma sociedade que se revela à mesa. É assim que ele quer interpretar o brasileiro: “a partir da comida”. Casa-Grande & Senzala é uma construção formal de análise que está na tese Social life an Brazil in the middlle of the 19th Century para o título de Master Artium ou Master of Arts, Columbia University, 1922.

Com certeza, em Gilberto, estão todos os sentimentos do gourmet, do antropólogo e do artista, todos reunidos na sua maneira pessoal de gostar do Recife.

Comida de matriz africana em Casa-Grande & Senzala

Na busca de uma “unidade”  na formação colonial  marcada pela cana sacarina  no Nordeste, Gilberto recorre às bases étnicas, mantendo o pensamento dominante à época ( anos 1930) sobre a trilogia: europeu, africano e indígena.

Gilberto em Casa-Grande & Senzala expõe o que é europeu com ênfase no que é lusitano e ibérico; e ao que é “nativo”, indígena.  Já aquilo  que é africano assume um destaque intencional,  e ganha na obra um desejo de  maior aprofundamento.

O autor olha para as relações da África magrebina e a sua civilização afro-islâmica na península  ibérica  atuando na formação das cozinhas da Espanha e de Portugal.  Mostra o africano em condição escrava, e destaca os papéis sociais da mulher africana, entre eles, o de fazer comida, e vender nos “ganhos”,  e nas “quitandas”. Está na mulher o amplo repertório de sabedoria culinária e de memória cultural.  A mulher como yá bassê ( básè, em Yorubá, significa assistente de cozinha) é  a responsável pela cozinha sagrada dos terreiros da tradição Nagô, e assim  mantém  as receitas de uso religioso.

Gilberto destaca a ação civilizadora da mulher africana nas casas dos engenhos, nos ofícios das cozinhas,  na mistura das receitas de Portugal com os ingredientes da “terra” , e com os acréscimos que chegam das memórias africanas. São novos gostos, gostos  em construção, gostos brasileiros.

Ele olha para a cozinha no contexto  das relações interafricanas, dos  africanos em condição escrava, da crueldade da vida na plantation dos engenhos de se fazer açúcar, sem mergulhar numa “cordialidade” idealizada.

Embora o Nordeste seja exemplificado e aprofundado em Pernambuco, Gilberto mostra a Bahia como um território de força e de expressão africana, e ainda cita o Maranhão e o Rio de Janeiro. Porém está em Pernambuco o foco e a experiência etnográfica de Gilberto, que se inclui como um viajante da sua própria cidade, o Recife.

Em outras obras, o sociólgo destaca as comidas do terreiro Obá Ogunté, Seita Africana Obá Omim, do Recife, em Água Fria, e localiza o importante babalorixá Adão Costa. Relata experiências gastronômicas neste terreiro de Xangô da tradição Nagô, tido como o mais antigo do Recife.

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Gilberto valoriza [e certamente gosta] as comidas afrodescendentes, e assim chama  esses  acervos culinários de “manjar africano”.  Informa sobre o uso de folhas nos processos culinários africanos, e nesta verdadeira fusion, unem-se tecnologias de embalar e de produzir comida a partir de modelos milenares americanos dos “tamales”, com receitas que expõem uma cozinha de matriz africana onde se notabilizam o acaçá, o abará, e outras comidas embaladas em folha de bananeira.

Casa-Grande & Senzala detalha a feitura do acaçá, uma comida de milho branco, milho de mungunzá; uma massa cozida sem temperos para acompanhar vatapá, caruru de quiabos, peixes no dendê. Destaca assim os processos culinários com o uso da “pedra”, do pilão lítico, para processar o milho e o feijão,  bases do acaçá e do abará.

Na Bahia se valoriza a “pedra do acarajé”, que é o pilão, pois se considera que ele dá a melhor textura para as massas do acarajé, do abará e do acaçá. Nestas comidas estão as assinaturas das “baianas”, notabilizando o acarajé mais crocante, o abará melhor recheado; são comidas autorais de tabuleiro.

As comidas de “tabuleiro”, hoje identificadas pelos: acarajé, abará, cocada, bolinho de estudante; e também pela “passarinha”, estão nas ruas, praças, adros, no caso da cidade do São Salvador. Permanecem os imaginários dos ganhos. É um ofício, que hoje, na grande Salvador, reúne mais de três mil “baianas  e baianos de acarajé”.

Gilberto traz, em Casa-Grande & Senzala, os “bolos de tabuleiro”, certamente  criando  categorias para os bolos. Pois os bolos identificam um lugar especial da doçaria pernambucana.  Receitas dos conventos de Portugal, outras da confeitaria popular, e outras das comidas de rua que se encontra com a mandioca, e outros ingredientes da “terra”.

No Recife, em carrinhos de madeira, ainda hoje são vendidos bolos e biscoitos,  próximos em forma e  gosto das suas fontes portuguesas. Tortas enroladas que remetem as tortas do Azeitão (Portugal), bolos verdadeiramente ancestrais; base do tão querido “bolo de rolo”, na verdade “torta de rolo”.

Ainda, tão do gosto e do cotidiano das mesas do Nordeste,  estão as receitas de cuscuz. Tradição da África mediterrânea, da África magrebina, que ganha interpretações  com a farinha de milho, com a massa da mandioca , com o leite de coco, e com muitos outros acréscimos nas receitas.

Gilberto tem o desejo de marcar os territórios dessas matrizes do continente africano; ora afro-islâmica, ora das “Costas” – ocidental, austral, oriental –, e assim busca mostrar, preferencialmente pela comida, essas chegadas e  essas formas de civilizar o Brasil.

Sabores ibéricos em Casa-Grande & Senzala

Gilberto valoriza uma ancestralidade de sabores decorrentes da península ibérica, e assim louva Portugal com todos os sabores reunidos de um povo globalizado pelas grandes navegações.
Tudo está em um Portugal ibérico com territórios africanizados pelo Magreb afro-islâmicos. Do norte da África chegaram também civilizações do Mediterrâneo, a civilização da “oliva”, do “vinho”, do “queijo”. Pelas rotas das especiarias, Portugal retoma as rotas romanas que o levam para o Oriente, para a África das costas do Atlântico e do Índico; e ainda amplia as suas relações, e comércio, nas Américas e o no Caribe.

Com todos estes elementos de civilizações do Ocidente e do Oriente, chegam novas construções de sabores, de técnicas culinárias, de objetos de cozinha e de serviço à mesa; e receitas, muitas dos cardápios do cotidiano, e outras das festas, festas religiosas, essencialmente católicas.

Embora de um rico acervo de ingredientes, de receitas, de um Portugal de além-mar, Gilberto, em Casa-Grande & Senzala, aponta para questões econômicas, e os diferentes processos sociais que fazem parte da alimentação no Brasil colônia, e diz:  “Má nos engenhos e péssima nas cidades: tal a alimentação da sociedade brasileira nos séculos XVI, XVII, XVIII. Nas cidades péssima e escassa.”

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Gilberto, em Casa-Grande & Senzala, quer mostrar o Nordeste do século XIX sob o regime patriarcal que foi fundado no açúcar da cana sacarina, e uma análise da civilização ibérica no trópico. Assim, escolhe a comida para interpretar essa compreensão colonial. Mostra, com outro olhar, a “idealizada” contribuição holandesa na cozinha regional, e diz sobre o “brote”, um tipo de biscoito enquanto, talvez, uma possível “permanência” dos batavos em Pernambuco. Pois nestes momentos da “Maurícia”, passava-se fome no Recife, os soldados batavos caçavam inclusive ratos para comer.

Gilberto assim louva a farinha de mandioca e tudo que chega dela, e diz: “o próprio feijão já é luxo”. A maioria dos produtos da tradição alimentar ibérica: azeite de oliva, azeitona, vinho, farinha de trigo, e queijo chegavam de Portugal. Ainda, Gilberto diz que os cardápios mais comuns do cotidiano, da subsistência, estavam baseados na farinha de mandioca e no charque. Os desenhos das mesas repletas de comidas, num cenário de prataria, de sedas, de festas magníficas, estão, na maioria, em leituras ingênuas sobre estes processos econômicos e culturais sobre a comida possível no nordeste do Brasil colônia.

Contudo, Gilberto que exibir as mesas de celebrações, mesas com montes de açúcar, para indicar o poder do senhor de engenho. Sem dúvida, o açúcar é o orientador e formalizador das relações sociais. É também com o açúcar vêm as antigas receitas dos mosteiros de Portugal, que são realizadas e reinventadas nestes contextos da mandioca e das suas muitas possibilidades culinárias . Com a colonização, as referências das culturas de Portugal estão no idioma e na comida. Comida formada a partir de receitas moçárabes, de base muçulmana, como mostra Arte da Cozinha (1692) de Domingos Rodrigues: carneiro mourisco, galinha mourisca, entre outros. Também há a comida dos mosteiros medievais. Espaços consagrados as “regras” de alimentação e do “jejum”, uma orientação para a falta de comida, uma santificação para os períodos de comida rara, mesmo em Portugal.

Bolo do Azeitão 

Assim, os cardápios e as receitas especiais, que se juntam às tradições populares e as “cozinhas” sofisticadas dos moçárabes na península ibérica, vão construindo uma “cozinha” de formação tropical, e que recorre também aos imaginários medievais dos conventos e mosteiros. Ordem dos Agostinhos, dos Beneditinos, das Carmelitas, dos Jesuítas, entre outras.

Sabores “santos” que chegam às receitas de: morangos no vinagre, caldo de acelgas, bispos, leite frito, natas imaculadas, frango no vinho da missa, arroz com leite, entre muitas, muitas outras receitas conventuais. E alguns doces: amorzinhos de noviça, argola de abadessa, barrigas de freira, fatias celestiais, queijinhos do céu. E alguns exemplos que trazem os “pontos do açúcar”: de pasta, de fio, de cabelo, de pérola, do assoprado, de espadana, de rebuçado …

Filhoses da Ilha Terceira Azores 

Tudo traz os encontros e as criações, pois, “navegar” e principalmente comer é preciso. Invenções nas cozinhas e descobertas à mesa.

Fonte: OUTRAS PALAVRAS

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