abril 30, 2014

"Bichos Urbanos" (Porta Curtas)

PICICA: "Estudantes de cinema apelam para o pedantismo estético e extremismo ideológico na realização de seu primeiro filme."


Bichos Urbanos

Assista ao filme, leia o roteiro, comente 8, publique, Experimental, de João Mors, Karen Barros, Duração: 20 min, Plays 8.903
Gênero: Experimental
Diretor: João Mors, Karen Barros
Elenco: José Marinho
Duração: 20 min     Ano: 2002     Formato: 16mm
País: Brasil     Local de Produção: RJ
Cor: Colorido
Sinopse: Estudantes de cinema apelam para o pedantismo estético e extremismo ideológico na realização de seu primeiro filme.

"O aborto na fogueira eleitoral", por Eliane Brum

PICICA: "Todos os perigos parecem ainda morar no corpo da mulher, inclusive, de várias maneiras, para os políticos brasileiros em campanha"


O aborto na fogueira eleitoral

Todos os perigos parecem ainda morar no corpo da mulher, inclusive, de várias maneiras, para os políticos brasileiros em campanha


Aconteceu de novo. E logo cedo. Depois de assistir à missa de Páscoa no Santuário Nacional de Aparecida, no interior de São Paulo, Eduardo Campos, pré-candidato à presidência da República pelo PSB, foi confrontado com a pergunta do aborto. Contra ou favor? Era o colarinho do cardeal Dom Raymundo Damasceno, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), ao seu lado, que estava justo, mas foi Campos que espremeu a seguinte resposta: “Acho que a legislação brasileira é adequada e, como cidadão, minha posição é a de todos. Não conheço ninguém que seja a favor do aborto”. E acrescentou: “Como cristão, cidadão e pai de cinco filhos, minha vida já responde à pergunta”. Dias depois, Campos afirmou, durante uma coletiva de imprensa, que seu “ponto de vista é muito claro”, mas que “respeita o ponto de vista dos outros”. Disse ainda que sua posição sobre o aborto é “pública”, porque já foi candidato outras vezes, e sugeriu aos jornalistas que dessem “um Google” para buscar a resposta, o que é um tanto extraordinário.

Nos últimos anos, o tema se tornou uma moeda de barganha eleitoral. Todos os dias mulheres de todas as religiões fazem abortos no Brasil. Aos 40 anos, uma em cada cinco brasileiras já fez aborto. A cada dois dias uma mulher morre por aborto ilegal. Muitas deixam crianças órfãs, num ciclo de dor e miséria que mereceria a atenção de qualquer cidadão, mais ainda de alguém que pleiteia governar o país. Mas a questão do aborto, de fato, nenhum candidato parece querer discutir com a seriedade e a honestidade exigidas para algo com tanto impacto sobre o país. O assunto só aparece como instrumento de chantagem na busca inescrupulosa por todo o apoio possível, nesse caso o voto religioso. O ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha, pré-candidato do PT ao governo de São Paulo, foi outro que assistiu à missa de Páscoa em Aparecida.

A cada dois dias uma mulher morre por aborto ilegal. Mas a questão do aborto, de fato, nenhum candidato parece querer discutir com a seriedade e a honestidade exigidas para algo com tanto impacto sobre o país

Está aberta a temporada de beija-anel de bispo e cardeal. Logo, será a vez dos grandes pastores midiáticos. O Estado é laico, mas as últimas campanhas mostraram que parte dos candidatos impõe as mãos, rala os joelhos e rasga princípios no maior número de altares que conseguir. A transformação de vidas humanas em moeda eleitoral mostra o quanto o debate político é rebaixado no Brasil. Revela também o quanto o Estado brasileiro ainda é frágil diante da pressão das religiões. As igrejas podem defender comportamentos morais para os seus fiéis, mas não impor suas prescrições ao conjunto dos cidadãos brasileiros. Cabe ao Estado laico zelar para que os limites não sejam ultrapassados, o que se perde quando direitos fundamentais viram instrumento de chantagem.

A declaração de Campos – “não conheço ninguém que seja a favor do aborto” – provocou protestos nas redes sociais. Páginas foram criadas no Facebook nas quais pessoas se apresentam, ironicamente: “Prazer, Eduardo Campos, eu sou a favor da descriminalização do aborto e existo”. A frase usada por Campos é um conhecido truque retórico, como bem aponta a jornalista Carla Rodrigues em seu blog. Evoca a ideia de que ninguém seria a favor de eliminar embriões como método contraceptivo. Mas a questão, como Campos sabe muito bem, é ser a favor das mulheres que fazem aborto, assegurando seu direito de decidir sobre a própria maternidade e protegendo a sua saúde, para que não morram em procedimentos clandestinos. O tema que precisa ser enfrentado, como Campos sabe muito bem, é de como amparar as mulheres que têm morrido por não serem amparadas – mesmo nos casos em que o aborto já é permitido no país: risco de morte da mãe, gravidez por estupro, gestação de feto anencefálico.

A decisão sobre se pode ou não levar adiante uma gravidez é privada, pertence à cada mulher. É uma escolha íntima, em geral difícil. Essa decisão individual só assume uma dimensão pública na medida em que o Estado deixa de assegurar às mulheres os meios para ter sua escolha respeitada. Assim, a questão do aborto no Brasil, se não diz respeito apenas à saúde pública, é também de saúde pública. E uma das mais sérias, já que atinge as brasileiras mais pobres, que arriscam a vida no banheiro de casa, enquanto as mais ricas interrompem a gestação com razoável segurança em clínicas privadas. O direito ou não ao aborto no Brasil, como qualquer um que não é cínico sabe, tanto quanto o direito a sobreviver ou não a ele, é uma questão de ter ou não dinheiro para fazê-lo em condições seguras. Só é assim porque barganhar com a vida das mulheres pobres, que dependem do SUS, continua sendo um esporte lucrativo, tanto nas eleições quanto nos corredores do Congresso.

Em 2013, grupos evangélicos e também católicos, como o Pró-Vida e Pró-Família, ameaçaram Dilma Rousseff com a retirada de apoio na reeleição, alegando que ela estaria, “na prática, legalizando o aborto no Brasil”. A presidente havia acabado de sancionar sem vetos a lei, aprovada pela Câmara e pelo Senado, que obriga os hospitais a prestarem atendimento integral e multidisciplinar às vítimas de violência sexual. Entre outros direitos, a mulher que sofre estupro pode obter na rede pública a chamada pílula do dia seguinte, para não correr o risco de engravidar do estuprador. Era sobre isso que grupos religiosos radicais protestavam.

A decisão sobre se pode ou não levar adiante uma gravidez é privada, pertence à cada mulher. É uma escolha íntima, em geral difícil. Essa decisão individual só assume uma dimensão pública na medida em que o Estado deixa de assegurar às mulheres os meios para ter sua escolha respeitada
Na época, escrevi um artigo intitulado “O aborto e a má fé”, em que apontava para a possibilidade de que o nível da campanha de 2014 pudesse ser ainda mais baixo que o de 2010. É curioso, mas também triste, que a largada tenha sido dada por quem se apresenta como protagonista de uma “nova política”, e também como “socialista”. Novo, de fato, seria enfrentar a questão do aborto com a profundidade que o tema exige. E bem longe da simplificação de plebiscito, defendida na campanha anterior por Marina Silva (Rede), a anunciada vice de Eduardo Campos nas eleições presidenciais desse ano, que é evangélica.

Propor que o aborto seja matéria para um plebiscito é usar de má fé, ao tentar dar uma aparência democrática a um pensamento autoritário. Cabe à democracia respeitar a vontade da maioria, ao, por exemplo, eleger um presidente da República, governadores e legisladores, mas também cabe à democracia assegurar os direitos das minorias. Questões de ética privada, como o aborto e a união de pessoas do mesmo sexo, não são matérias de plebiscito. Referem-se à garantia dos direitos fundamentais de cada cidadão. Num debate político é menos importante saber o que cada candidato fará diante de uma escolha de ordem moral e privada em suas próprias vidas, do que saber claramente como vão cuidar das brasileiras que morrem porque o aborto é criminalizado no Brasil. A crença ou não crença religiosa de cada candidato só diz respeito ao eleitor se essa crença ou não crença interferir na garantia dos direitos fundamentais de quem fará escolhas diferentes no âmbito da sua vida privada. Homens ou mulheres públicos governam para assegurar os direitos fundamentais de todos – os que fariam a mesma escolha moral que eles e também os que não fariam. Ao transformar o aborto em moeda eleitoral para faturar o voto religioso, a democracia escorre para o esgoto.

Nas primeiras campanhas eleitorais após a ditadura, os candidatos costumavam evitar abordar o tema do aborto. Aos poucos, ao perceber o potencial eleitoral do crescimento dos evangélicos no Brasil, alguns oportunistas começaram a perceber que jogar o aborto na mídia e no palanque poderia ser conveniente. Tanto para conquistar o voto religioso quanto para derrubar opositores (cada vez mais raros) com escrúpulos de se tornar coroinhas de última hora. No período recente, ninguém fez isso com maior truculência do que José Serra (PSDB), na campanha eleitoral de 2010.

Para lembrar, porque é importante manter a memória viva. No final do primeiro turno de 2010, a internet e as ruas foram tomadas por uma campanha anônima, na qual se afirmava que Dilma era “abortista” e “assassina de fetos”. Dilma começou a perder votos entre os evangélicos e parte dos bispos e padres católicos exortou os fiéis a não votar nela. Serra empenhou-se em tirar proveito do ataque vindo das catacumbas, determinando o rumo da campanha dali em diante. E Dilma correu a buscar o apoio de religiosos, acabando por escrever uma carta declarando-se “pessoalmente contra o aborto”. Nela, comprometia-se, em caso de vencer a eleição, a não propor nenhuma medida para alterar a legislação sobre o tema. Logo, tanto Serra quanto Dilma despontaram no espetáculo eleitoreiro como devotos tomados por um fervor religioso até então desconhecido de quem acompanhava a sua trajetória. Serra apregoou que tinha “Deus no peito”. Dilma agradeceu “a Deus pela dupla graça” e, usando o mote dos grupos mais radicais do catolicismo, afirmou que fazia “uma campanha, antes de tudo, em defesa da vida”.

Questões de ética privada, como o aborto e a união de pessoas do mesmo sexo, não são matérias de plebiscito. Referem-se à garantia dos direitos fundamentais de cada cidadão
Nesse sentido, talvez a campanha de 2010 tenha sido o momento mais baixo desde a redemocratização do país. O que nela se passou escancarou as portas para todas as leviandades e recuos que vieram depois, nos temas relativos à saúde da mulher e ao respeito à diversidade sexual. Basta lembrar, entre outros, do cancelamento do kit anti-homofobia, que seria usado nas escolas públicas, e a retirada do ar do vídeo de uma campanha de prevenção a doenças sexualmente transmissíveis, na qual uma prostituta dizia ser “feliz”. O fato de uma mulher ser feliz e ser prostituta parece ter ferido mais a sensibilidade dos hipócritas de ocasião (e do governo) do que pessoas adoecerem ou mesmo perderem a vida por doenças evitáveis.

Os protagonistas desse rebaixamento do debate político jamais devem ser esquecidos. A coerência dos candidatos, assim como seu comportamento diante de temas espinhosos, mas de extrema importância, revelam como cada um deles vai atuar quando tiver o poder. Se a campanha eleitoral de 2014 superar a de 2010, na chantagem com temas que dizem respeito a vidas humanas – e isso num momento em que os brasileiros nas ruas exigem maior participação na política e maior responsabilidade daqueles que foram eleitos para cargos públicos – será assombroso. Quando Eduardo Campos afirma que não conhece “ninguém que seja a favor do aborto”, apenas reforça a suposição de que, em vez de uma alternativa à “velha política”, como seus marqueteiros se esforçam para difundir, ele seria mais um representante da política viciada e permeável às chantagens de ocasião.

A pergunta é por que, ainda hoje, no século 21, é tão crucial manter o controle sobre o corpo feminino

É importante pensar por que o aborto, mais uma vez, ameaça despontar numa eleição presidencial como instrumento de barganha para o apoio e o voto religioso – e não outro dos temas morais. Por que, de novo, é do corpo da mulher que se trata. Por que, outra vez, a disputa rasteira se dá sobre a topografia feminina. O que isso oculta? O que revela? A questão talvez seja menos o aborto, mas sim em que medida a religião pode controlar, via Estado, a reprodução das mulheres – e, especialmente, a sexualidade das mulheres. A pergunta é por que, ainda hoje, no século 21, é tão crucial manter o controle sobre o corpo feminino.

Parece que a visão medieval que localiza no corpo das mulheres a morada de todos os perigos continua atual. Inclusive para políticos em campanha. Enquanto isso, mulheres reais morrem porque, quem tem o dever de debater e promover políticas públicas para assegurar seus direitos fundamentais, chantageia com suas vidas. Cabe a cada cidadão impedir que a eleição de 2014 se torne uma trágica repetição da indignidade testemunhada em 2010, na qual votos foram negociados sobre cadáveres femininos.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Email:elianebrum.coluna@gmail.com. Twitter: @brumelianebrum

Fonte: El País - Brasil

"O homem de Schrödinger", por Mário Bentes

PICICA: "Somos gigantes ao mostrar, com nossa racionalidade e nossa ciência, do que podemos fazer ao transcender as barreiras da mitologia, da ignorância, do medo e do desconhecido; para saber e para ter novas dúvidas como combustível em nossa odisseia de novas descobertas; e não para acreditar em verdades pré-determinadas em um mundo assombrado por deuses e demônios. Somos grandes em estatura de inteligência, de capacidade crítica e de desenvolvimento. Somos a VY Canis Marjoris da mentalidade criativa e da sede do conhecimento.

Mas quando lançamos bananas a negros, em uma agressão racial, somos os fragmentos das partículas das partículas; a inteligência e a sabedoria quebradas em centenas de milhões de pedaços em um grande colisor social. Não passamos do status débil da quintessência da decadência, da obumbração, do retrocesso. O injustificável ódio racial, e qualquer outra forma de malquerença, é como lançar a si mesmo no vácuo do espaço, sem proteção à inteligência contra a radiação da ablepsia. É onde a luz se perde em definitivo nas trevas."


O homem de Schrödinger


Há um paradoxo científico, que tornou-se muito popular até mesmo entre quem não é de se interessar por esses assuntos, conhecido como Gato de Schrödinger. Foi proposto em 1935 pelo físico austríaco Erwin Schrödinger, como forma de demonstrar todos os possíveis estados do sistema de mecânica quântica. Trancado em uma caixa lacrada, um gato poderia estar vivo ou morto, dependendo de um evento aleatório precedente – no caso do experimento mental proposto pelo físico, tais eventos seriam a liberação (ou não) do veneno armazenado em um frasco.

O homem, em sua forma física, também é assim. Ele pode ser ou não ser, de acordo com eventos aleatórios diferentes, em momentos diferentes do espaço-tempo. Quando olho para o céu noturno, por exemplo, sinto-me pequeno. Uma insignificante partícula que observa o brilho das maiores estrelas do Universo, embora sua luz chegue aos meus olhos enfraquecida pela distância e pelas interferências do meio interestelar e até da atmosfera da Terra. Quem sou eu diante de VY Canis Marjoris, uma hipergigante vermelha que é tida como uma das maiores estrelas do profundo cosmos?

Ao propor seu paradoxo, Schrödinger tentava explicar a complexidade da mecânica quântica, que trata das menores coisas do Universo. O mundo das partículas, das bases da existência, dos elementos primordiais que formam tudo o que existe – incluindo eu e VY Canis Marjoris. Aí é que entra um possível segundo estado físico do homem, cuja variante é o referencial: se uma partícula, como o recém-descoberto Bóson de Higgs, pudesse me ver, eu seria a imensa estrela. Eu estou para VY Canis Marjoris como o Bóson de Higgs está para mim.

Nós, os seres humanos, podemos ser gigantes colossais e pequenas coisas insignificantes, ao mesmo tempo, dependendo dos fatores aleatórios que nos cercam. E não apenas do ponto de vista do mundo quântico ou da física clássica de Isaac Newton. Nossas atitudes também contém essa assinatura. Quando lançamos um rover ou uma sonda ao espaço, um equipamento mecânico e eletrônico que possui todo o conhecimento humano em forma de laboratório, ou as saudações humanas em todas as línguas gravadas em um disco banhado a ouro, na esperança de que outra civilização saiba de nós, nos tornamos gigantes.

Somos gigantes ao mostrar, com nossa racionalidade e nossa ciência, do que podemos fazer ao transcender as barreiras da mitologia, da ignorância, do medo e do desconhecido; para saber e para ter novas dúvidas como combustível em nossa odisseia de novas descobertas; e não para acreditar em verdades pré-determinadas em um mundo assombrado por deuses e demônios. Somos grandes em estatura de inteligência, de capacidade crítica e de desenvolvimento. Somos a VY Canis Marjoris da mentalidade criativa e da sede do conhecimento.

Mas quando lançamos bananas a negros, em uma agressão racial, somos os fragmentos das partículas das partículas; a inteligência e a sabedoria quebradas em centenas de milhões de pedaços em um grande colisor social. Não passamos do status débil da quintessência da decadência, da obumbração, do retrocesso. O injustificável ódio racial, e qualquer outra forma de malquerença, é como lançar a si mesmo no vácuo do espaço, sem proteção à inteligência contra a radiação da ablepsia. É onde a luz se perde em definitivo nas trevas.

O homem de Schrödinger, como o gato do experimento mental, possui muitos estados. Mas, ao contrário do felino, nós temos a escolha.

Também publicado no site do autor. A imagem de destaque foi a “selfie” feita pelo rover Curiosity, da Nasa, na superfície de Marte.

Sobre o autor

Mário Bentes

Jornalista, escritor e fotógrafo. Já passou por veículos como Portal Amazônia e Portal D24am. Em 2012, foi correspondente do jornal Diário do Amazonas em Brasília. É autor dos contos O pássaro verde e o velório ("Moedas para o Barqueiro" - Andross, 2010); Sobre as águas ("Histórias Liliputianas" - Andross, 2010); A quinta trombeta ("Moedas para o Barqueiro, Volume 2" - Andross, 2011); Insuspeito para um caso encerrado e O interrogatório do estranho menino ("Jogos Criminais" - Andross, 2011). É editor-chefe da Revista Babel.

Fonte: Revista Babel

"O debate não é mais sobre legalizar ou não, é sobre como legalizar", por André Cristi

PICICA: "[...] a Marcha pretendia aprofundar a discussão da legalização das drogas em vários aspectos. Segundo Júlio Delmanto, organizador da Marcha e membro do coletivo Desentorpecendo a Razão, “é claro que um dos pontos importantes é a questão da liberdade individual. Mas a Marcha discute mais do que isso. A gente acha fundamental, por exemplo, fazer a conexão do racismo com a guerra às drogas, que historicamente atinge sobretudo os negros”, afirmou." 

"O debate não é mais sobre legalizar ou não, é sobre como legalizar"

Na 7ª Marcha da Maconha, pais e filhos, professores e estudantes, gays, feministas, negros, punks, skatistas desfilaram de maneira pontual e tranquila.


André Cristi, fotos de Roberto Brilhante  Roberto Brilhante
A Avenida Paulista poucas vezes esteve tão perfumada quanto às 4h20 da tarde do último sábado (26), quando milhares de pessoas (de acordo com os organizadores, 15 mil; de acordo com a Polícia Militar, 3 mil) realizaram a sétima Marcha da Maconha de São Paulo. Pais e filhos, professores e estudantes, gays, feministas, negros, punks, skatistas. Usuários ou não, cantavam marchinhas:

“Se você acha que a maconha mata
a maconha não mata, não
quem mata pobre é a polícia
a Rota e o Caveirão.”

Desfilando de maneira pontual, tranquila e bem organizada, a Marcha tinha cada um de seus manifestantes com um panfleto trazendo orientações de segurança.

Poucos policiais acompanharam a manifestação, que terminou sem detenções. Ao anoitecer, quando a manifestação já se aproximava da Praça Roosevelt, fez-se um minuto de silêncio às vítimas da guerra às drogas.

   
A Marcha tinha cada um de seus manifestantes com um panfleto trazendo orientações de segurança.

Guerra às drogas é guerra aos negros e pobres

Como mostra o minuto de silêncio, a Marcha pretendia aprofundar a discussão da legalização das drogas em vários aspectos. Segundo Júlio Delmanto, organizador da Marcha e membro do coletivo Desentorpecendo a Razão, “é claro que um dos pontos importantes é a questão da liberdade individual. Mas a Marcha discute mais do que isso. A gente acha fundamental, por exemplo, fazer a conexão do racismo com a guerra às drogas, que historicamente atinge sobretudo os negros”, afirmou.



                               
                                                   Júlio Delmanto

Maconha é uma palavra de origem quimbundu, de Angola. Era uma prática tradicional da senzala. De acordo com Henrique Carneiro, professor de História da USP, há uma relação direta entre proibicionismo e racismo. "A primeira lei contra a maconha é de 1830, contra um hábito, por parte dos escravos, que tinha até uma carga de devoção religiosa. Há um elemento racista na proibição que permance até hoje porque as populações pobres e faveladas continuaram a ter nessa planta um instrumento de lazer, até de uso medicinal", disse.

Para Renato Cinco, vereador da cidade Rio de Janeiro pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol), há uma relação direta entre a crise de segurança pública no Rio de Janeiro e a guerra às drogas. “A gente vive uma situação esquizofrênica: o Estado cria leis que fortalecem grupos que depois ele dirá que quer combater. Na verdade, o que a gente observa é que guerra às drogas é uma estratégia de criminalização da pobreza. A guerra às drogas não existe, o que existe é uma guerra aos pobres”, afirmou.


                       
Participaram pais e filhos, professores e estudantes, gays, feministas, negros, punks, skatistas.

O Uruguai na ponta-de-lança

"O Uruguai começou bem, mas tem que avançar." As palavras, parecidas com as de um comentarista esportivo, são de Renato Cinco. Segundo o psolista, Mujica deu dois passos fundamentais: legalizou a maconha e estatizou a grande produção. No entanto, diz ele, "o debate tem que ser sobre a regulamentação do mercado de drogas. Enquanto houver substâncias proibidas, haverá violência, corrupção. Proibir uma droga é abrir mão de fazer o que é possível: regulamentar. Proibindo-se, não se pode regulamentar", defendeu.



                                     
                                 "O Uruguai começou bem, mas tem que avançar."

Para Henrique Carneiro, o paradigma da proibição já foi ultrapassado. "Acho que agora o debate não é mais sobre legalizar ou não, é sobre como legalizar."

Entre os modelos de legalização, o professor considera o uruguaio como mais inspirador. De acordo com Henrique, ao direito ao plantio, ao pequeno comércio, às empresas cooperativas deve ser combinado um abastecimento estatizado "para evitar que grandes empresas multinacionais açambarquem esse mercado e queiram aumentar cada vez mais seu lucro, como já ocorre com o tabaco e o álcool."
 

Fonte: Carta Maior

abril 29, 2014

"O espírito das leis em Natal", por Edilson Freire Maciel

PICICA: "O poder monocrático tem perpassado historicamente as diversas oligarquias, desde o Brasil República, que tem dominado a política do estado. Tal pragmatismo político desses grupos tem como tradição e tática de perpetuação do poder desenvolver uma política de governo, não de estado; criar no povo a ilusão permanente de melhoria social através do apelo demagógico do voto, que sempre acompanha o período eleitoral, quando acontece a troca de poder.

Esse revezamento decorrente das eleições tem como princípio o favorecimento político dos financiadores de campanhas políticas dos partidos, que exigem a contrapartida na participação econômica nos projetos milionários do governo, passando a favorecer o executivo, na pessoa do gestor público com uma comissão pelas obras ou serviços prestados mediante um percentual, quase sempre dez por cento, fruto da simbiose promíscua do interesse privado com a administração pública."

O espírito das leis em Natal

28/04/2014
Por Edilson Freire Maciel


Por Edilson Freire Maciel, para a UniNômade

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A nossa cidade tradicionalmente tem como fator de geração de emprego o funcionalismo público, reserva estratégica de hegemonia política. Essa hegemonia gira em torno de si, desgasta-se repetidamente, de forma deletéria e autofágica. Sua nutrição é parasítica e progressiva, solapando a máquina administrativa do estado, utilizada na barganha do voto, situação modificada com a aplicação do Artigo 37, parágrafo ll, da Constituição: a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público, salvo cargo comissionado…

O poder monocrático tem perpassado historicamente as diversas oligarquias, desde o Brasil República, que tem dominado a política do estado. Tal pragmatismo político desses grupos tem como tradição e tática de perpetuação do poder desenvolver uma política de governo, não de estado; criar no povo a ilusão permanente de melhoria social através do apelo demagógico do voto, que sempre acompanha o período eleitoral, quando acontece a troca de poder.

Esse revezamento decorrente das eleições tem como princípio o favorecimento político dos financiadores de campanhas políticas dos partidos, que exigem a contrapartida na participação econômica nos projetos milionários do governo, passando a favorecer o executivo, na pessoa do gestor público com uma comissão pelas obras ou serviços prestados mediante um percentual, quase sempre dez por cento, fruto da simbiose promíscua do interesse privado com a administração pública.

O fluxo de interesses de mercado, manipulado pelos financiadores de campanha política partidária passa muito longe do interesse coletivo e do ideal clássico propugnado pelos filósofos da ética política, que marcaram a história do Ocidente, desde Aristóteles, até os filósofos iluministas, dentre eles, Locke, Kant, Spinoza, Montaigne, Montesquieu, que muito contribuíram para o aprimoramento do homem e da sociedade.

Como exemplo disso, a teoria aprimorada por Montesquieu, A independência dos Poderes, marco da sociedade de direito, conquistado com a Revolução Francesa e parte dos Direitos do Homem, no Artigo l5ª da Constituição francesa, contida na Constituição brasileira de l89l, no seu Artigo XV, que os poderes legislativo, executivo e judiciário são harmônicos entre si.

A harmonia dos poderes se complementa nos doze princípios básicos da Administração Pública, tornando nossas instituições:  cidadãs, republicanas no cumprimento da legalidade, da moralidade, da impessoalidade ou da finalidade, do contraditório, da proporcionalidade, da publicidade, da eficiência, da razoabilidade, da ampla defesa, da segurança jurídica, da motivação e da supremacia do interesse público.

A não observância desses princípios normativos atenta contra a transparência da Administração Pública através de condutas comissivas ou omissivas que violem os deveres da honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições, incorrendo no crime de improbidade administrativa, Lei, N. 8.429/92, correspondente à união, estados, e municípios.

Motivação e supremacia do interesse público, eis a máxima da Administração Pública. Ademais, cumprir simplesmente a lei na frieza do seu texto não é o mesmo que atendê-la na sua letra e no seu espírito. Por isso a administração deve ser orientada pelos princípios do direito e da moral, para que ao legal se ajunte o honesto, e o conveniente aos interesses sociais (Hely Lopes Meireles). Direito Administrativo Brasileiro, pág. 86-88-33ª edição. Editora Malheiros, SP.

Quanto à frieza da lei e sua ética, Montesquieu respondera com Do Espírito das Leis. Para que ela seja justa, é necessário saber interpreta-la. O que não ocorreu quanto à proibição dos atos de protestos na BR 101, que corta a Zona Sul da cidade, palco das diversas manifestações.

Paradoxalmente, o protagonista dessa medida de interdição foi um juiz federal, cujo juízo fundamentou-se no Artigo 5ª da nossa Carta Magna, que trata do direito fundamental de ir e vir do cidadão, pela qual determinou a ilegalidade das manifestações.

A restrição jurídica indignou os manifestantes que, em maio de 2013, foram brutalmente reprimidos pela polícia e, naquele momento, estavam admoestados pela justiça. Porém um grupo de advogados ativistas entrou com uma ação no STJ, no sentido de derrubar a decisão ajuizada.

A referida decisão, de tão esdrúxula, foi apelidada pelos manifestantes, com larga exposição nas redes sociais, de lei SETURN, Sindicato das Empresas de Transportes Urbanos do Rio-Grande-do-Norte.

A despeito da proibição judicial, e sem a decisão definitiva do STJ, uma vintena de estudantes da Revolta do Busão, dentre eles vários adolescentes, portavam uma faixa com a inscrição: Amanhã Será Maior! Numa clara alusão ao crescimento do movimento social, quanto à decisão do juiz, a supressão das estações de transferências, e o corte de algumas linhas de ônibus, fruto das retaliações do SETURN, por ter sofrido forte pressão popular, que impediu o aumento da passagem.

Esse pequeno número de estudantes pretendia fazer um roletaço na BR 101, para somar forças com os estudantes de Parnamirim, região metropolitana de Natal, a ter por objetivo a melhoria no transporte metropolitano daquela cidade.

Diante disso, porém, foram impedidos por uma forte operação de guerra, nunca vista, tamanha demonstração e desproporção de força contra poucos estudantes, pacíficos e magricelas, que foram obrigados a se retirar da BR por um pelotão da Polícia Rodoviária Federal, armado até os dentes.

Impedidos de permanecer na BR, os manifestantes, sob intensa chuva, dirigem-se para um ato ecológico, que ocorria na Avenida Roberto Freire, estrada de Ponta Negra, em defesa do parque ecológico, tombado pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade, que será comprometido em pouco mais de trinta metros, a partir da margem da estrada, em função das obras da Copa.

Após entusiástica participação no ato ecológico, o grupo dirigiu-se ao Shopping Via Direta, no intuito de fazer um roletaço, de retorno para casa. Mais uma vez, a Polícia Rodoviária Federal o impediu. Em substituição, foi realizado um ato lúdico de encerramento, com canções e danças, sob vigilância constante do pelotão de policiais que, castigados pela chuva, cumpriam com fidelidade canina a “lei SETURN”.

Finalmente a sociedade, resguardada no amparo da lei, é contemplada na sua cidadania com o veredicto do ministro do STJ. Herbert Benjamin, que pôs por terra a bizarra “lei SETURN”, alegando ser constitucional a ação dos manifestantes, por reivindicarem o direito de ir e vir da maioria da população.

Dias após essa decisão do STJ, uma estação de radiodifusão local anunciava que dois ministros do STF tinham se pronunciado nesses termos a respeito da “Lei SETURN” – ocupar BRs, praças, ruas e avenidas é constitucional, legítimo, cívico, cidadão, democrático e patriótico, pois defende o direito de ir e vir da maioria da população, e, toda manifestação tem o objetivo de incomodar, chamar a atenção dos governantes e não faria sentido fazer protesto na praia.

Também a mídia impressa e online não ficou para trás; noticiaram a relação familiar do juiz federal com as empresas interessadas na proibição das manifestações na BR 101, declinando o nome do pai e da tia do magistrado como advogados do SETURN.

Esse mesmo sindicato das empresas de ônibus teve uma dívida suavemente parcelada de sete milhões de reais para com o governo federal em pouco mais de seis gerações, isto é; oitenta anos, pelo juiz autor da “lei SETURN”.

Diante de tamanha imoralidade para com a República, se há de perguntar, apesar do anacrônico axioma romano: “não basta ser honesto; é preciso também parecer honesto.”

Quo usque tandem, Júlio César?!

Até quando?

Divulgue na rede


Fonte: Universidade Nômade Brasil

Beatriz Preciado: "Campceptualismos del sur. Ocaña y la historiografia española"

PICICA: "La Doctora Beatriz Preciado homenajea a Ocaña en su conferencia "Campceptualismos del sur. Ocaña y la historiografía española".
19 de noviembre del 2012.
http://www.macba.cat/es/seminario-tro...

Beatriz Preciado. Filósofo/a y activista queer. Doctora en Filosofía y Teoría de la Arquitectura por la Universidad de Princeton y master en Filosofía y Estudios de Género por The New School for Social Research de Nueva York."


"Crianças e redes sociais", por Marcus Tavares

PICICA: "A professora Nélia Mara defendeu, em fevereiro deste ano, sua tese de doutorado, em Educação, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Com o título Você tem face?, o estudo pesquisou as experiências infantis com as redes sociais online, tendo como plataformas de investigação o Orkut e o Facebook."

ENTREVISTA / NÉLIA MARA

Crianças e redes sociais

Por Marcus Tavares em 22/04/2014 na edição 795

Reproduzido da revistapontocom, 17/4/2014; título original “Estudo indica novas relações e desafios”


A professora Nélia Mara defendeu, em fevereiro deste ano, sua tese de doutorado, em Educação, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Com o título Você tem face?, o estudo pesquisou as experiências infantis com as redes sociais online, tendo como plataformas de investigação o Orkut e o Facebook.

“Em 2009, meus alunos de seis anos, na classe alfabetização, perguntavam frequentemente se eu tinha Orkut e revelavam, com frequência, novidades sobre seus perfis. Enquanto isso, o grupo de pesquisa do qual faço parte desde 2005, Grupo de Pesquisa Infância e Cultura Contemporânea, coordenado pela professora Rita Ribes, na UERJ, voltava seu foco de estudos para a relação das crianças com as mídias digitais, oportunizando a sistematização teórica e metodológica das minhas questões nascidas na escola. Buscava entender porque as crianças estavam no Orkut, como acessavam e o que gostavam de fazer nas redes sociais online. Dois anos depois, as crianças migraram para o Facebook e, em pouco tempo, muitas tinham suas primeiras experiências com as redes sociais nele. Por isso, os dois sites foram as principais plataformas de análise”, conta.

Segundo Nélia, o grande desafio foi conseguir construir uma metodologia que não desprezasse a dimensão técnica do fenômeno que pretendia estudar e que conseguisse captar, de alguma forma, a fugacidade das relações online e, em última instância, a dinâmica da cultura contemporânea. “Foi assim que nasceu uma pesquisa online, em que eu conversei com crianças entre oito e onze anos através dos chats, além de observar constantemente todas as atualizações nos perfis infantis”, destaca.

Em entrevista à revistapontocom, Nélia conta detalhes do estudo e suas principais conclusões sobre a relação das crianças com as redes sociais online. “Desejo que a entrevista seja o começo de uma conversa com quem se interesse pelo tema e que traduza também num convite para a leitura da tese”, afirma.

Acompanhe a entrevista:

O que leva as crianças a participarem, cada vez mais, das redes sociais?

Nélia Mara – As redes sociais despontam na fase atual da cibercultura como uma potência que inaugura novas experiências nas formas de se relacionar, aprender, conviver, se expressar… Quando me interessei pelo tema, busquei selecionar os sites que as crianças mais acessavam, como forma de conhecer suas experiências e preferências na internet. Queria ir onde elas estivessem. E apesar de, em 2009, época em que surgiram os primeiros movimentos da pesquisa, eu ter conhecido alguns sites de rede social voltados especialmente para crianças, estes não eram sequer citados pelas crianças quando as indagava sobre o que faziam na internet. Talvez esse seja um bom exemplo para pensar que as crianças não vivem num mundo apartado dos adultos, mas estão inseridas na cultura e dela participam ativamente. As crianças querem estar onde todos estão.

Como podemos definir as crianças que participam das redes sociais?

N.M. – São crianças que inauguram experiências que situam a infância em um lugar social inédito na cultura. A pesquisa me permite afirmar que a presença e a participação das crianças nas redes sociais online possibilitam que as vozes das crianças habitem o ciberespaço numa relação de horizontalidade com as vozes dos adultos. Estão todos lá, convivendo, interagindo, comunicando. Isto quer dizer que a possibilidade de as crianças serem emissoras de conteúdo guarda uma potência que liberta a infância dos estatutos modernos calcados na ideia de menoridade e inferiorização em relação ao adulto. São crianças que burlam os protocolos dos sites – que é bom lembrar, ostentam uma proibição hipócrita, visto que atraem as crianças de forma velada –, criam e se apropriam cada vez mais de novas linguagens, novas formas de ser criança e de viver a infância. Para essas crianças, as redes sociais representam hoje, sobretudo, novas formas de interação e sociabilização. Elas jogam, brincam, conversam, assistem a vídeos, produzem vídeos, se informam, aprendem coisas novas, consomem. No entanto, é importante não perder de vista que a cibercultura, essa cultura em rede que vivemos hoje, nos afeta não só materialmente, mas, sobretudo, simbolicamente. Está em jogo a produção de novas linguagens, subjetividades, de novas formas de aprender, de se relacionar, novas relações com o tempo e com o espaço, o que é também vivido por quem não tem, necessariamente, um perfil no Facebook.

São grandes as diferenças de formação, oportunidade, experiência e conhecimento entre crianças que acessam e as que não acessam as redes?

N.M. – Pesquisas oficiais de cunho quantitativo sobre crianças e internet, como as realizadas pelo Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação (CETIC) em todo o território nacional, têm demonstrado o quanto a condição socioeconômica é fator que determina o acesso à internet, a frequência com que ocorre, bem como a posse de aparatos técnicos. Renda familiar, classe social e região do país – dada desigualdade no investimento das condições técnicas para a distribuição da conexão, se compararmos os dados da região norte com a sudeste, por exemplo – são elementos que interferem de maneira decisiva para a participação das crianças nas redes sociais. No caso específico da pesquisa que realizei, é importante dizer que não se adotou um recorte de classe, pois se buscou, inicialmente, dialogar com crianças que já possuíam perfis em sites de redes sociais e, num segundo momento, crianças que fizessem parte da minha rede de contatos. Dito isto, a pesquisa que realizei não se debruçou sobre um estudo comparativo entre as crianças que têm acesso e as que não têm. No entanto, se aceitamos a ideia de que a cibercultura nos afeta simbolicamente, a questão se complexifica e exige aprofundamento. Mas é inegável que a oportunidade de entrar em contato com o mundo através do seu próprio celular posiciona a criança no mundo de maneira diferente daquela que, sequer, tem o que comer. São, sem dúvida, experiências de infância distintas qualitativamente. Penso que autonomia e criatividade estão no centro da participação nas redes sociais online. Inclusive, as crianças precisam, muitas vezes, criar datas de nascimento fictícias para terem acesso a uma conta no site. Precisam criar um perfil com inúmeras informações sobre si. O próprio ato de apenas “curtir”, no Facebook, alguma postagem, já evidencia uma expressão. Solidariedade e ética são noções por demais subjetivas para serem definidas aqui como algo propiciado pelas redes sociais. As crianças que estão nas redes sociais estão em diálogo com o mundo – elas têm acesso à informação, são encorajadas a se mostrar, a emitir opiniões, a compartilhar o que gostam, a conversar. Mas a formação se dá a todo momento: para a leitura, para a escrita, para a relação com o outro, para a construção da própria identidade, para a construção das noções de privacidade, formação para o consumo… Por isso, ao mesmo tempo em que é indiscutível reconhecer a centralidade que ocupam hoje as redes sociais na vida de muitas crianças, é indispensável pensar em formas articuladas de oferecer uma mediação que possam amplificar e qualificar todas estas fontes de in(formação).

Quando falamos de mediação pensamos no papel dos adultos. As crianças estão sozinhas na rede?

N.M. – Não, elas não estão sozinhas, ainda que acessem a internet sem ninguém por perto fisicamente. Penso que o grande desafio, hoje, para pais, professores e pesquisadores é pensar em novas formas de mediação online. Dado o caráter diferenciado das tecnologias digitais, a mediação não pode ser pensada sobre as mesmas bases, já consolidadas, das mídias eletrônicas. A mobilidade, por exemplo, é uma realidade e uma tendência também entre as crianças, já que a miniaturização dos aparelhos produz também condições para um uso mais individualizado. Se, por um lado, a impossibilidade de acompanhar fisicamente os acessos das crianças à rede pode sugerir menos possibilidade de acompanhamento dos adultos ao que as crianças acessam, há que se compreender que, online, as crianças nunca estão sozinhas. Estar nas redes sociais pressupõe estar em diálogo com alguém, seja um amigo, um familiar, um estranho ou mesmo uma empresa. O “estar com” é a essência do “estar em rede”. Por isso, friso, nosso papel enquanto adultos é buscar o diálogo com as crianças também online, fazendo-se presente também nas redes sociais. Há responsáveis que, sim, marcam sua presença de diferentes formas nos perfis de seus filhos; outros não. Há uma diversidade nas formas como a permissão do acesso às redes sociais acontece nas casas das crianças: há pais que criam os perfis dos filhos, incentivando que coexistam em rede; também há filhos que criam contas para seus pais, em busca de “atualizá-los”. Há famílias, por exemplo, que impõem uma idade mínima para que a criança conquiste o direito de estar numa rede social online, entendendo que é preciso crescer para ganhar novas responsabilidades, mesmo que não seja uma idade inferior à recomendada por sites como o Facebook ou o Orkut. Há pais que usam seus perfis com os filhos, um uso compartilhado. Em outros casos, e aqui já me posiciono como forma de dizer que penso ser a postura mais interessante, cada indivíduo da família possui um perfil, mas os pais e demais adultos interagem online com a criança frequentemente, além de conversarem em casa sobre o assunto. É uma forma de estar junto em rede, de acompanhar o que a criança faz, com quem interage, o que comunica, mas permitindo que ela tenha seu espaço, que ela construa seu perfil com suas características, preferências, fotos que gosta, podendo expressar a singularidade da sua identidade na internet.

E quanto à escola?

N.M. – A escola, de maneira geral, ainda não consegue ocupar o espaço de quem pode e deve colocar esse assunto como questão curricular porque ainda se baseia na lógica da vigilância, da proibição ou mesmo da didatização das tecnologias sob um viés, algumas vezes, empobrecedor e distante dos usos que as crianças fazem fora das salas de aula. Há instituições que, inclusive, proíbem o uso de aparelhos em suas dependências, parecendo fechar-se a uma realidade que está posta. Em paralelo, crianças postam, em seus perfis, fotos na escola em tempo real, o que denuncia que, a despeito de normas meramente burocráticas, as crianças estão em rede, se conectam de seus dispositivos móveis e, na maioria das vezes, a escola não se oferece para o diálogo.

E ao contrário do que se pensa, as crianças têm conhecimento dos perigos da internet, não é isso?

N.M. – As crianças demonstram ter muita informação sobre os perigos a que, possivelmente, estamos todos expostos na internet e nas redes sociais. Essas informações e ressalvas chegam de variadas fontes: a família conversa e instrui, a televisão noticia casos variados sobre o assunto e, mais timidamente, mas progressivamente, a escola também vai se envolvendo neste debate, ainda que o uso desites de redes sociais seja comumente proibido em seus espaços. As crianças mostraram que elegem critérios para aceitar ou recusar pedidos de amizade e eu fui, inclusive, recusada por muitas quando busquei realizar a pesquisa com crianças indicadas por amigos, desconhecidas para mim. As recusas me obrigaram a redesenhar os critérios de escolha dos interlocutores e foram fundamentais no percurso da pesquisa. Ao longo do processo, também me dei conta, em diálogo com outras pesquisas a que fui tendo acesso, que as redes sociais são espaços de encontro entre pessoas que têm ou já tiveram algum tipo de relação face a face. Assim, sob esta lógica, as recomendações dos pais aos filhos sobre os perigos de dar atenção a pessoas estranhas é incorporada também para a vida online. É possível que esta constatação na minha tese, que nem sempre emerge em outros estudos, tenha a ver com a abordagem teórico-metodológica que adotei na pesquisa. A minha premissa foi de que as crianças estão de forma ativa e autônoma nos sites de redes sociais e me interessou ver o que fazem, como usam, por que usam e, em última instância, o que comunicam sobre suas experiências quando estão em rede, enquanto sujeitos criativos e produtores de cultura que são. Há outros estudos que, embora se detenham em temática similar, se fundamentam em concepções de infância que remetem aos pilares modernos de vulnerabilidade, inabilidade e menoridade, já elencando como premissa que há perigos, há uma proibição burocrática e, portanto, as crianças não deveriam estar lá. Penso que falamos, portanto, de lugares distintos; logo, nos posicionamos de formas diferentes em relação às crianças e às experiências de infância, conduzindo as pesquisas por caminhos que, nem sempre, se encontram. É preciso enfatizar aqui que reconhecer que as crianças entendem os perigos a que estamos expostos na internet não representa ignorar a importância do adulto no que diz respeito ao seu papel de proteção da criança. Friso que é fundamental que o adulto assuma o seu lugar de quem se oferece ao diálogo e aponta o caminho seguro. No entanto, me preocupa observar como essa relação se traveste, muitas vezes, em controle e vigilância por parte dos pais. Se é certo admitir que estamos todos, adultos e crianças, aprendendo a viver em rede, também é preciso compreender que a produção compartilhada de sentidos sobre o que nos desafia é um processo que se dá em diálogo.

A participação de crianças e adultos no ambiente online vem estabelecendo um novo tipo de relacionamento?

N.M. – Essa pergunta conduz ao debate pertinente em torno da questão geracional que marca os estudos sobre crianças e tecnologias digitais. Quando nos espantamos com a intimidade dos bebês com um tablet nas mãos, evidenciamos que a questão geracional está posta. Mas é importante não perder de vista que a relação com as mídias sempre esteve atravessada por essa tensão. O que parece complexificar a questão no contexto cibercultura é que a velocidade das transformações e a obsolescência como marca dessa era nos coloca, enquanto adultos, num lugar frágil de quem também se vê inseguro e rendido pelas constantes novidades, tão bem recebidas e incorporadas pelas crianças. Elas lidam com os aparatos de forma lúdica, criativa e desbravadora, enquanto o adulto, com um olhar mais cristalizado para a realidade, se relaciona de forma menos espontânea. Mas, se as redes sociais podem ser concebidas como lugares de encontro, podemos percebê-las na potência do encontro entre adultos e crianças, e não como algo que produz algum tipo de impacto negativo, ou que gera um abismo geracional.

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Marcus Tavares é jornalista, editor da revistapontocom, doutor em Educação pela PUC-Rio, colunista do jornal O Dia, professor da Escola Técnica Estadual Adolpho Bloch, do Colégio José Leite Lopes – NAVE e da UniverCidade 

"Metrópole latino-americana e a fragmentação urbana" (Observatório das Metrópoles)

PICICA: "Neste artigo Michael Chetry aborda um tema muito presente na literatura latino-americana, mas pouco definido conceitualmente: a fragmentação urbana. Este termo se refere às mudanças na organização social do espaço urbano como consequências da inserção cada vez maior das metrópoles na globalização. A abordagem diz respeito ao desenvolvimento da noção de fragmentação nos estudos dedicados às cidades na América Latina, enfatizando os seus limites, bem como as suas contribuições na análise das diferenciações socioespaciais em relação a outros conceitos utilizados comumente, como os de centro-periferia ou de segregação."

Metrópole latino-americana e a fragmentação urbana
 
Cidade do México Crédito: Web/Reprodução

Neste artigo Michael Chetry aborda um tema muito presente na literatura latino-americana, mas pouco definido conceitualmente: a fragmentação urbana. Este termo se refere às mudanças na organização social do espaço urbano como consequências da inserção cada vez maior das metrópoles na globalização. A abordagem diz respeito ao desenvolvimento da noção de fragmentação nos estudos dedicados às cidades na América Latina, enfatizando os seus limites, bem como as suas contribuições na análise das diferenciações socioespaciais em relação a outros conceitos utilizados comumente, como os de centro-periferia ou de segregação.

Michael Chetry é pesquisador do Observatório das Metrópoles via bolsa de Pós-Doutorado da FAPERJ no IPPUR/UFRJ, possui doutorado em Geografia e Planejamento Urbano pela Université Jean Moulin - Lyon 3 (França) e mestrado em Planejamento Urbano pela Institut d’Urbanisme de Lyon (2004). O artigo dele “Os conceitos da metrópole latino-americana contemporânea” é um dos destaques da edição nº 16 da Revista eletrônica e-metropolis.

Leia também:

O nascimento da Métropole du Grand Paris
A ciência e a cidade: diálogo com Christian Topalov


INTRODUÇÃO

Por Michael Chetry

A fragmentação urbana tem sido objeto, durante os últimos vinte anos, de uma literatura abundante, sendo apresentada atualmente como uma característica comum a todas as grandes cidades, tanto do norte como do sul. Raramente, uma noção tem sido tão presente em tantas disciplinas, revelando o seu caráter altamente multidimensional, desdobrando-se em componentes espaciais, econômicos, políticos e sociais. As diferentes abordagens sobre fragmentação estabelecem uma conexão entre as dinâmicas espaciais relacionadas com a metropolização e a globalização (mobilidade, dispersão,...) e os processos de “estouro” da unidade social urbana. Ou seja, “a noção de fragmentação pode servir então como resumo dos efeitos socioespaciais da globalização sobre o urbano” (GERVAIS-LAMBONY, 2004, p. 59). Essa acepção, um pouco vaga, faz com que a noção seja usada numa diversidade de sentidos, o que certamente contribui para sua riqueza, mas lhe confere também certa ambiguidade.

Assim, na América Latina, como em outros lugares, a fragmentação se instalou na pesquisa urbana sem ter sido submetida a uma reflexão crítica. Este artigo não tem como objetivo fazer uma análise epistemológica propriamente dita da fragmentação, mas, mais modestamente, levantar alguns pontos sobre sua aplicação no contexto latino-americano e trazer alguns esclarecimentos conceituais a fim de fornecer elementos ao debate em torno deste tema. Além de se basear na literatura latino-americana, serão utilizados trabalhos científicos realizados no meio acadêmico francês, nos quais o uso da fragmentação é acompanhado, de uma forma ou de outra, de uma tentativa de desconstrução do conceito.

USO E ÂMBITO DE APLICAÇÃO DA NOÇÃO DE FRAGMENTAÇÃO NA AMÉRICA LATINA

Um novo padrão de segregação Na América Latina, o surgimento e a difusão do termo fragmentação na literatura dedicada à cidade está associado à aparição de novas formas de segregação socioespacial nas grandes metrópoles. A noção foi utilizada pela primeira vez por Milton Santos (1990a, 1990b), em referência ao aumento da pobreza no centro de São Paulo, que ele interpretou como um processo de “involução urbana”1. Em paralelo, obser- va-se um movimento contrário, aquele de difusão das
classes médias e altas nos municípios periféricos. Embora esse fenômeno possa ser interpretado como uma diminuição da segregação na esfera metropolitana, para alguns autores, ele corresponde apenas a uma simples redistribuição espacial e, no pior dos casos, a um agravamento da pobreza (ROLNIK et al., 1990). Esta evolução é acompanhada por novas formas de urbanização com o surgimento de áreas residenciais ou comerciais exclusivas, como os condomínios fechados e os shoppings centers.
Em outras palavras, as tendências que ocorrem nas cidades latino-americanas convergiriam para instalar um “novo padrão de segregação”, fragmentado e excludente, resultando na transformação, por um lado, da escala da segregação com a redução da distância física entre ricos e pobres e, por outro, na natureza da segregação com a formação de enclaves no tecido urbano, seja pela autossegregação das camadas superiores e médias, seja pela crescente estigmatização dos espaços de pobreza com espaços da violência (LAGO, 2002). Vários estudos confirmam que outras grandes cidades da América Latina experimentam uma mudança similar de um padrão de segregação para um modelo fragmentado: Buenos Aires (PRÉVÔT-SCHAPIRA, 2001), Santiago do Chile (SABATINI, 1999), Montevidéu (VEIGA, 2005), Caracas (CARIOLA e LACABANA, 2001), São Paulo (CALDERIA, 2000).

A invalidação do modelo da cidade dual?

Essas mudanças são particularmente perceptíveis na América Latina devido ao fato de que o conjunto desses processos coloca em questão o modelo dual centro-periferia que não parece mais capaz de compreender a nova organização do espaço urbano. Muito provavelmente, o encontro dessa descoberta com um terreno fértil propiciou o sucesso da noção de fragmentação no continente. O padrão centro-periferia foi o modelo dominante no período desenvolvimentista dos anos 1940 até os anos 1980, para descrever e explicar a dinâmica de organização das metrópoles latino-americanas. Ele opunha o centro, lugar de concentração do capital, dos investimentos e das categorias superiores e médias, à periferia pobre e desprovida de infraestruturas e de equipamentos. No entanto, esse conceito, elaborado no âmbito do pensamento econômico marxista, não significa a exclusão, mas sim uma forma de integração desigual entre um centro dominante e de uma periferia dominada.

Portanto, para muitos autores, as mudanças que ocorrem no espaço urbano das grandes cidades a partir dos anos 1980 são interpretadas como uma ruptura fundamental nos modos de produção da cidade, ou até mesmo como o nascimento de uma nova ordem urbana. Outros interrogam, em vez disso, certa continuidade dos processos anteriores que “aprofundariam na era neoliberal, uma brecha aberta pelo planejamento e a industrialização fordista” (CAPRON & ALBA, 2007). Lago (2002) demonstra, no caso do Rio de Janeiro, que os anos 1980 foram marcados, por um lado, pela reprodução da lógica segregadora nas políticas de investimento em equipamento e serviços urbanos, que continuam a beneficiar o centro em detrimento da periferia; e, por outro, pela relativa estabilidade da estrutura socioespacial.

De fato, muitos autores vêm adotando uma posição intermediária, analisando essas mudanças como uma superposição de novos processos sobre o modelo centro-periferia em vez de invalidá-lo. Embora a dúvida quanto a saber se a noção de fragmentação corresponde realmente a uma transformação dos fatos já existentes ou apenas reflete uma nova leitura deles aparecesse muito cedo, a reflexão em torno dessas questões vai contribuir para consolidar o termo de fragmentação (ao lado de outros como partição, ruptura etc.) para caracterizar esta nova organização do espaço urbano.

Acesse o artigo completo "Os conceitos da metrópole latino-americana contemporânea", na edição nº 16 da Revista e-metropolis.

Fonte: Observatório das Metrópoles

abril 28, 2014

"Em defesa do cinema desagradável", por José Geraldo Couto

PICICA: "Triste e desolado, “Cães errantes”  expõe, entre elipses, ambiguidades e pontos sem explicação, personagens movendo-se nas bordas da metrópole capitalista"

Em defesa do cinema desagradável


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Triste e desolado, “Cães errantes”  expõe, entre elipses, ambiguidades e pontos sem explicação, personagens movendo-se nas bordas da metrópole capitalista

Por José Geraldo Couto, no blog do IMS

Cães errantes ganhou o grande prêmio do júri no Festival de Veneza do ano passado, mas está longe de ser uma unanimidade de crítica e, muito menos, um sucesso de público. Como todo o cinema do malaio (radicado em Taiwan) Tsai Ming Liang, é um filme duro, radical, exigente.

Já nas primeiras imagens – um plano fixo de vários minutos que mostra um menino e uma menina dormindo numa choça, enquanto em primeiro plano uma mulher sentada penteia sem parar os longos cabelos, de modo que mal vemos seu rosto – o diretor mostra seu rude cartão de visitas, como se estabelecesse ali um pacto com o espectador: “Deixai toda esperança, vós que entrais”. Quem quiser diversão ou conforto, que vá procurar em outra sala.


Na continuação da narrativa, essa mulher sai de cena e passamos a acompanhar, de modo fragmentado e lacunar, o dia-a-dia dessas duas crianças e de seu pai, um alcoólatra que ganha a vida segurando tabuletas de propaganda nas esquinas de Taipei. São eles, evidentemente, os “cães errantes” do título, ainda que cachorros vadios “literais” apareçam ocasionalmente num galpão abandonado, alimentados por uma mulher.

A forma é o conteúdo

Mas a ideia de uma narrativa linear, progressiva, se esgarça por conta das elipses, das ambiguidades, dos pontos sem explicação. A longuíssima duração dos planos-sequência, quase sempre fixos, esvazia-os da função de tijolos numa construção narrativa, devolvendo-os, por assim dizer, à condição de pedra bruta, intratável, insubstituível.

Ao comentar recentemente o filme Sem essa, aranha, de Rogério Sganzerla, Julio Bressane disse que, depois de alguns minutos de plano-sequência o olhar do espectador é atraído para a materialidade da imagem, para o grão, para a textura, a composição, a luz. Os valores da forma, em suma, ganham relevo, deixando de servir meramente a um “conteúdo”. Melhor dizendo, o conteúdo passa a ser a própria forma.

No caso de Cães errantes, mais do que contar a história daqueles poucos seres, o que importa, ao meu ver, é a construção de uma ambiência, de um estado. Os personagens se movem nas bordas, ou antes, nas frestas da metrópole capitalista. Os becos, terrenos baldios, barracos, construções abandonadas, não apenas são estranhamente contíguos à paisagem natural (árvores, rios), como são invadidos por ela, como as touceiras de mato que surgem nas rachaduras do cimento ou do asfalto.

Seres sem lugar

Essa condição de seres sem lugar, intervalares, que ocupam esse espaço ambíguo entre a metrópole e o mato, a natureza e a cultura, o animal e o humano, é o que unifica o filme e é, provavelmente, o que fica, ao fim da sessão e depois, na sensibilidade do espectador que estiver disposto a se abrir à experiência.

Num dos episódios mais desconcertantes do filme, a menina, que perambula sozinha por um enorme supermercado, leva para casa um repolho e o transforma numa boneca, pintando-lhe um rosto, dando-lhe um nome. Uma noite, depois de chegar em casa bêbado, o pai da menina primeiro beija lubricamente o repolho (como se fosse uma boneca inflável ou algo do tipo) e em seguida o devora com voracidade, cru mesmo, e o despedaça brutalmente. Um prato cheio para quem gosta da palavra “ressignificação”.

Excluídos do mercado capitalista e das maravilhas do consumo, os personagens de Cães errantes vivem das suas sobras, que eles reciclam e adaptam para construir o seu mundo – como o estranho subsolo abandonado em que esboçam, já perto do fim, o arremedo de um lar e de uma família.

O mundo de Tsai Ming Liang é triste e desolado como a chuva num barraco de lona plástica ou as manchas de uma parede descascada. Não é agradável. Mas quem disse que a arte tem que ser agradável?

O infortúnio necessário

Numa carta que escreveu em 1904 a seu amigo Oskar Pollak, Kafka disse o seguinte: “Penso que devemos ler somente os livros que nos mordam e piquem. Se o livro que estamos lendo não nos sacode e acorda como um golpe no crânio, por que nos darmos o trabalho de lê-lo? Para que nos faça feliz, como você diz? Ora, seríamos felizes da mesma forma se não tivéssemos livros. Livros que nos façam felizes, em caso de necessidade, poderíamos escrevê-los nós mesmos. Precisamos é de livros que nos atinjam como o pior dos infortúnios, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos, que nos façam sentir como se tivéssemos sido banidos para a floresta, longe de qualquer presença humana, como um suicídio”.

Podemos substituir a palavra “livro” por “filme” ou qualquer outro meio de expressão artística. Não vou tão longe a ponto de achar, como Kafka, que toda obra deva afligir e atormentar. Que seria de nós sem as delícias do cinema de entretenimento? Mas de vez em quando um infortuniozinho cai bem para nos lembrar da nossa triste condição de humanos num mundo desumano.


Fonte: OUTRAS PALAVRAS

"Paranóia ou mistificação?" / "A exposição Anita Malfatti" (OUTRAS PALAVRAS)

PICICA: "O Brasil avançava materialmente, no entanto, no plano da cultura, um passado insiste em determinar os rumos do imaginário, com os seus mitos, o seu bem-dizer, a sua fala empolada, e as costas viradas para o país.

Era necessário dar um giro com o calcanhar a fim de olhar para o Brasil.

No entanto, o elemento mais dramático e provavelmente que melhor anuncia mudanças está na exposição de Anita Malfatti, inaugurada na tarde de 12 de dezembro daquele ano."

Paranóia ou mistificação?


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Chocado com exposição de Anita Malfatti, escritor dispara: “talento fora do comum”, porém “a serviço duma nova espécie de caricatura”
140426-SeloOswald 
Por Monteiro Lobato | Imagem: Anita Malfatti, Nu Cubista (1916)


1917. A Europa vivencia o impacto da I Grande Guerra, acontece a revolução russa e São Paulo se eletriza com a maior greve de sua história: 70 mil operários convulsionam o estado e abalam os alicerces da aristocracia rural.


Nesse mesmo ano, ocorrem fatos marcantes para a “história do movimento renovador literário e artístico que culminaria na Semana de Arte Moderna”.1


Mário de Andrade, com o pseudônimo de Mário Sobral, estreia na poesia com o livro “Há uma gota de sangue em cada poema”. Não é uma obra propriamente moderna, pois ainda está marcada pela estética dominante; no entanto, já podemos encontrar aqui e ali, alguns elementos novos. 


Manuel Bandeira comparece com o livro de poesias,“A Cinza das Horas”, e Menotti Del Picchia obtém consagração com “Juca Mulato”.


De qualquer maneira, no dizer de Mário da Silva Brito, ainda é uma “hora cinzenta de transição”2. As velhas escolas – o parnasianismo e simbolismo – ainda estão muito presentes.


O Brasil avançava materialmente, no entanto, no plano da cultura, um passado insiste em determinar os rumos do imaginário, com os seus mitos, o seu bem-dizer, a sua fala empolada, e as costas viradas para o país.


Era necessário dar um giro com o calcanhar a fim de olhar para o Brasil.


No entanto, o elemento mais dramático e provavelmente que melhor anuncia mudanças está na exposição de Anita Malfatti, inaugurada na tarde de 12 de dezembro daquele ano.3


A artista, além do expressionismo que aprendera na Alemanha e já tivera oportunidade de mostrar numa outra exposição, em 1914, traz ainda na bagagem a sua experiência nos Estados Unidos, sem falar em toda a sua própria originalidade.


Estamos diante de uma arte que se exibe em traços fortes demais para o convencionalismo de uma São Paulo provinciana. Jornais e revistas comentam os quadros, ressalvando o descompasso entre a artista e o grande público. A exposição cresce em escândalo, embora muitos quadros sejam adquiridos.


No entanto, a temperatura sobe quando Monteiro Lobato, já jornalista consagrado, publica o artigo, que ficaria conhecido como “Paranoia ou mistificação?”4, na edição noturna d’ O Estado de São Paulo.


A crítica violenta de Lobato reflete desastrosamente sobre a exposição e a vida familiar de Anita. A artista recebe de volta muito dos quadros que tinham sido vendidos, e evidentemente sofre bastante com tudo isso.


Este acontecimento contudo cria as bases para uma espécie de divisor de águas.


Dessa maneira, o artigo de Monteiro Lobato tem a capacidade de congregar aqueles vários artistas e intelectuais insatisfeitos com os rumos de uma tradição de pensamento e de arte, servindo como um dos estopins da Semana de Arte Moderna de 1922. (Theotonio de Paiva)



Paranóia ou Mistificação


Por Monteiro Lobato


Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que veem normalmente as coisas e em consequência disso fazem arte pura, guardados os eternos ritmos da vida, e adotados para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos grandes mestres.


Quem trilha por esta senda, se tem gênio, é Praxiteles na Grecia, é Rafael na Itália, é Rembrandt na Holanda, é Rubens na Flandres, é Reynolds na Inglaterra, é Lenbach na Alemanha, é Zorn na Suécia, é Rodin na França, é Zuloaga na Espanha. Se tem apenas talento vai engrossar a plêiade de satélites que gravitam em torno desses sóis imorredouros.


A outra espécie é formada dos que veem anormalmente a natureza, e interpretam à luz das teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência; são frutos de fim de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um instante, as mais das vezes com a luz do escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento.


Embora eles se deem como novos, precursores duma arte a vir, nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranoia e com a mistificação.


De há muito já que a estudam os psiquiatras em seus tratados, documentando-se nos inúmeros desenhos que ornam as paredes internas dos manicômios. A única diferença reside em que nos manicômios essa arte é sincera, produto lógico de cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses; e fora deles, nas exposições públicas, zabumbadas pela imprensa e absorvidas por americanos malucos, não há sinceridade nenhuma, nem nenhuma lógica, sendo tudo mistificação pura.


Todas as artes são regidas por princípios imutáveis, leis fundamentais que não dependem do tempo, nem da latitude.


As medidas de proporção e equilíbrio, na forma ou na cor, decorrem do que chamamos sentir. Quando as sensações do mundo externo transformam-se em impressões cerebrais, nós “sentimos”; para que sintamos de maneira diversa, cúbica ou futurista, é forçoso ou que a harmonia do universo sofra completa alteração, ou que o nosso cérebro esteja em “pane” por virtude de alguma grave lesão.

Enquanto a percepção sensorial se fizer normalmente no homem, através da porta comum dos cinco sentidos, um artista diante de um gato não poderá “sentir” senão um gato, e é falsa a “interpretação” que do bichano fizer um totó, um escaravelho ou um amontoado de cubos transparentes.


Estas considerações são provocadas pela exposição da sra. Malfatti onde se notam acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso e companhia.

Essa artista possui um talento vigoroso, fora do comum. Poucas vezes, através de uma obra torcida para má direção, se notam tantas e tão preciosas qualidades latentes. Percebe-se de qualquer daqueles quadrinhos como a sua autora é independente, como é original, como é inventiva, em que alto grau possui um sem número de qualidades inatas e adquiridas das mais fecundas para construir uma sólida individualidade artística.


Entretanto, seduzida pelas teorias do que ela chama arte moderna, penetrou nos domínios dum impressionismo discutibilíssimo, e põe todo o seu talento a serviço duma nova espécie de caricatura.

Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e “tutti quanti” não passam de outros ramos da arte caricatural. É a extensão da caricatura a regiões onde não havia até agora penetrado. Caricatura da cor, caricatura da forma – caricatura que não visa, como a primitiva, ressaltar uma ideia cômica, mas sim desnortear, aparvalhar o espectador.


A fisionomia de quem sai de uma dessas exposições é das mais sugestivas.


Nenhuma impressão de prazer, ou de beleza denunciam as caras; em todas, porém, se lê o desapontamento de quem está incerto, duvidoso de si próprio e dos outros, incapaz de raciocinar, e muito desconfiado de que o mistificaram habilmente.


Outros, certos críticos sobretudo, aproveitam a vasa para épater les bourgeois. Teorizam aquilo com grande dispêndio de palavrório técnico, descobrem nas telas intenções e subintenções inacessíveis ao vulgo, justificam-nas com a independência de interpretação do artista e concluem que o público é uma cavalgadura e eles, os entendidos, um pugilo genial de iniciados da Estética Oculta.


No fundo, riem-se uns dos outros – o artista do crítico, o crítico do pintor e o público de ambos.

“Arte moderna”, eis o escudo, a suprema justificação.


Na poesia também surgem, às vezes, furúnculos dessa ordem, provenientes da cegueira nata de certos poetas elegantes, apesar de gordos, e a justificativa é sempre a mesma: arte moderna.


Como se não fossem moderníssimos esse Rodin que acaba de falecer, deixando após si uma esteira luminosa de mármores divinos; esse André Zorn, maravilhoso “virtuose” do desenho e da pintura, esse Brangwyn, gênio rembrandtesco da babilônia industrial que é Londres, esse Paul Chabas, mimoso poeta das manhãs, das águas mansas e dos corpos femininos em botão.


Como se não fosse moderna, moderníssima, toda a legião atual de incomparáveis artistas do pincel, da pena, da água-forte, da “dry-point” que fazem da nossa época uma das mais fecundas em obras primas de quantas deixaram marcos de luz na história da humanidade.


Na exposição Malfatti figura, ainda, como justificativa da sua escola, o trabalho de um “mestre” americano, o cubista Bolynson. É um carvão representando (sabe-se disso porque uma nota explicativa o diz) uma figura em movimento. Está ali entre os trabalhos da sra. Malfatti em atitude de quem diz: eu sou o ideal, sou a obra prima, julgue o público do resto tomando-me a mim como ponto de referência.


Tenhamos a coragem de não ser pedantes; aqueles gatafunhos não são uma figura em movimento; foram, isto sim, um pedaço de carvão em movimento. O sr. Bolynson tomou-o entre os dedos das mãos, ou dos pés, fechou os olhos, e fê-lo passear pela tela às tontas, da direita para a esquerda, de alto a baixo. E se não fez assim, se perdeu uma hora da sua vida puxando riscos de um lado para outro, revelou-se tolo e perdeu o tempo, visto como o resultado seria absolutamente o mesmo.


Já em Paris se fez uma curiosa experiência: ataram uma brocha na cauda de um burro e puseram-no de traseiro voltado para uma tela. Com os movimentos da cauda do animal a brocha ia borrando a tela.


A coisa fantasmagórica resultante foi exposta como um supremo arrojo da escola cubista, e proclamada pelos mistificadores como verdadeira obra prima que só um ou outro raríssimo espírito de eleição poderia compreender.


Resultado: o público afluiu, embasbacou, os iniciados rejubilaram e já havia pretendentes à tela quando o truque foi desmascarado.


A pintura da sra. Malfatti não é cubista, de modo que estas palavras não se lhe endereçam em linha reta; mas como agregou à sua exposição uma cubice, leva-nos a crer que tende para ela como para um ideal supremo.


Que nos perdoe a talentosa artista, mas deixamos cá um dilema: ou é um gênio o sr. Bolynson e ficam riscados desta classificação, como insignes cavalgaduras, a corte inteira dos mestres imortais, de Leonardo a Stevens, de Velazquez a Sorolla, de Rembrandt a Whistler, ou… vice versa. Porque é de todo impossível dar o nome de obra de arte a duas coisas diametralmente opostas como, por exemplo, a Manhã de Setembro de Chabas, e o carvão cubista do sr. Bolynson.


Não fosse a profunda simpatia que nos inspira o formoso talento da sra. Malfatti, e não viríamos aqui com esta série de considerações desagradáveis.


Há de ter essa artista ouvido numerosos elogios à sua nova atitude estética.


Há de irritar-lhe os ouvidos, como descortês impertinência, esta voz sincera que vem quebrar a harmonia de um coro de lisonjas.


Entretanto, se refletir um bocado, verá que a lisonja mata e a sinceridade salva. O verdadeiro amigo de um artista não é aquele que o entontece de louvores, e sim, o que lhe dá uma opinião sincera, embora dura, e lhe traduz chãmente, sem reservas, o que todos pensam dele por detrás.


Os homens têm o vezo de não tomar a sério as mulheres. Essa é a razão de lhes darem sempre amabilidades sempre quando elas pedem opinião.


Tal cavalheirismo é falso, e sobre falso, nocivo. Quantos talentos de primeira água se não transviaram arrastados por maus caminhos, pelo elogio incondicional e mentiroso? Se víssemos na sra. Malfatti apenas uma “moça prendada que pinta”, como há centenas por aí, sem denunciar centelha de talento, calar-nos-íamos, ou talvez lhe déssemos meia-dúzia desses adjetivos “bombons”, que a crítica açucarada tem sempre à mão em se tratando de moças.


Julgamo-la, porém, merecedora da alta homenagem que é tomar a sério o seu talento dando a respeito da sua arte uma opinião sinceríssima, e valiosa pelo fato de ser o reflexo da opinião geral do público sensato, dos críticos, dos amadores, dos seus colegas e… dos seus apologistas.


Dos seus apologistas, sim, dona Malfatti, porque também eles pensam deste modo… por trás.


Publicado, em 20/12/1917,
em O Estado de São Paulo, edição da noite


1 Brito, Mario da Silva. “A Revolução Modernista”. In: Coutinho, Afrânio (direção); Coutinho, Eduardo (co-direção). A literatura no Brasil. 7ª. ed., v. 5, São Paulo: Global, 2004, p. 6. Como sabemos, o evento aconteceria cinco anos mais tarde, em fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo.


2Idem, p. 8.


3É importante lembrar que, em 1913, sem provocar grandes alardes, se realizou em São Paulo, a primeira exposição de pintura não acadêmica realizada no Brasil. Lasar Segall apresenta a sua exposição individual num salão alugado à Rua São Bento, 85, São Paulo. Nela o artista mostra trabalhos de transição entre o impressionismo e um estilo pessoal que começava a se afirmar.



4 Na verdade, o artigo tinha um título meio insosso, “A propósito da exposição Malfatti”, na coluna Artes e Artistas. A tradição, no entanto, consagra o título que ora usamos.

Fonte: OUTRAS PALAVRAS 

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PICICA: "Este artigo de Oswald de Andrade é um pequeno documento histórico. Publicado no Jornal do Comércio, no início de 1918, é a única voz que se contrapõe de uma forma manifesta às idéias e concepções de Monteiro Lobato, a propósito da exposição de Anita Malfatti."

A exposição Anita Malfatti


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Resposta a Lobato: “Suas telas chocam o preconceito fotográfico (…) Sua arte é a negação da cópia, a ojeriza da oleografia”

140426-SeloOswaldPor Oswald de Andrade | Imagem: Anita Malfatti, Paisagem de Santo Amaro

Este artigo de Oswald de Andrade é um pequeno documento histórico. Publicado no Jornal do Comércio, no início de 1918, é a única voz que se contrapõe de uma forma manifesta às idéias e concepções de Monteiro Lobato, a propósito da exposição de Anita Malfatti.

Conforme o leitor poderá verificar, no corpo da série Oswald 60, em texto publicado quase um mês antes, no jornal O Estado de São Paulo, Lobato se insurge de uma maneira violenta contra aquilo que enxerga como uma grosseira mistificação.

Pelos estragos promovidos, observa-se com isso o peso de um determinado pensamento conservador, diga-se de passagem, muito bem estruturado em suas ambições estéticas, aliado a uma inquestionável força do mais importante jornal paulista da época.


Não é difícil imaginar o seu alcance naquele meio cultural e político. Além do mais, é sabido que o texto de Lobato contava com a anuência da direção do jornal.

Por outro lado, verifica-se, igualmente, na contramão da visão hegemônica, a capacidade que um movimento de transformação artístico-cultural possui quando as condições objetivas estão dadas.

Muitos anos depois, ao editar o seu livro de memórias, em 1950, o escritor modernista iria comentar: “A exposição de Anita Malfatti, em 17, provocara o coice monumental de Monteiro Lobato, inteiramente ignaro e maldoso. Sou o único a defender timidamente Anita pelo Jornal do Comércio com iniciais. Agora em 19, encontro-a com Di, Guilherme de Almeida e outros literatos”.* Os tempos começam a ser outros. (Theotonio de Paiva)



A exposição Anita Malfatti

Por Oswald de Andrade

Encerra-se hoje a exposição da pintora paulista sra. Anita Mafatti, que durante um mês levou ao salão da Rua Líbero Badaró, 111, uma constante romaria de curiosos.

Exigiria longos artigos discutir-se a sua complicada personalidade artística e o seu precioso valor de temperamento. Numa pequena nota cabe apenas o aplauso a quem se arroja a expor no nosso pequeno mundo de arte pintura tão pessoal e tão moderna.

Possuidora de uma alta consciência do que faz, levada por um notável instinto para a notável eleição dos seus assuntos e da sua maneira, a brilhante artista não temeu levantar com seus cinquenta trabalhos as mais irritadas opiniões e as mais contrariantes hostilidades. Era natural que elas surgissem no acanhamento da nossa vida artística. A impressão inicial que produzem os seus quadros é de originalidade e de diferente visão. As suas telas chocam o preconceito fotográfico que geralmente se leva no espírito para as nossas exposições de pintura. A sua arte é a negação da cópia, a ojeriza da oleografia.

Diante disso, surgem desencontrados comentários e críticas exacerbadas. No entanto, um pouco de reflexão desfaria, sem dúvida, as mais severas atitudes. Na arte, a realidade na ilusão é o que todos procuram. E os naturalistas mais perfeitos são os que melhor conseguem iludir. Anita Malfatti é um temperamento nervoso e uma intelectualidade apurada, a serviço de seu século. A ilusão que ela constrói é particularmente comovida, é individual e forte e carrega consigo as próprias virtudes e os próprios defeitos da artista.

Onde está a realidade, perguntarão, nos trabalhos de extravagante impressão que ela expõe?

A realidade existe mesmo nos mais fantásticos arrojos criadores e é isso justamente o que os salva.

A realidade existe, estupenda, por exemplo, na liberdade com que se enquadram na tela as figuras número 11 e número 11; existe, impressionante e perturbadora, na evocação trágica e grandiosa da terra brasileira que é o quadro 172; existe, ainda, sutil e graciosa, nas fantasias e estudos que enchem a exposição.

A distinta artista conseguiu, para o meio, um bom proveito, agitou-o, tirou-o da sua tradicional lerdeza de comentários e a nós deu uma das mais profundas impressões de boa arte.

[Publicado no “Jornal do Comércio”,
São Paulo, 11/1/1918, um dia após o término da exposição]


* Andrade, Oswald. Um homem sem profissão. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976, p. 135.

1O Homem Amarelo e Lalive são respectivamente as telas 11 e 1

2Paisagem de Santo Amaro é o número 17