PICICA: "O Brasil avançava materialmente, no entanto,
no plano da cultura, um passado insiste em determinar os rumos do
imaginário, com os seus mitos, o seu bem-dizer, a sua fala empolada, e
as costas viradas para o país.
Era necessário dar um giro com o calcanhar a fim de olhar para o Brasil.
No entanto, o elemento mais dramático e provavelmente que melhor anuncia mudanças está na exposição de Anita Malfatti, inaugurada na tarde de 12 de dezembro daquele ano."
Por
Redação –
on 26/04/2014
Chocado com exposição de Anita Malfatti, escritor dispara: “talento fora do comum”, porém “a serviço duma nova espécie de caricatura”
Por Monteiro Lobato | Imagem: Anita Malfatti, Nu Cubista (1916)
1917. A Europa vivencia o impacto da I Grande
Guerra, acontece a revolução russa e São Paulo se eletriza com a maior
greve de sua história: 70 mil operários convulsionam o estado e abalam
os alicerces da aristocracia rural.
Nesse mesmo ano, ocorrem fatos marcantes para a
“história do movimento renovador literário e artístico que culminaria na
Semana de Arte Moderna”.1
Mário de Andrade, com o pseudônimo de Mário
Sobral, estreia na poesia com o livro “Há uma gota de sangue em cada
poema”. Não é uma obra propriamente moderna, pois ainda está marcada
pela estética dominante; no entanto, já podemos encontrar aqui e ali,
alguns elementos novos.
Manuel Bandeira comparece com o livro de poesias,“A Cinza das Horas”, e Menotti Del Picchia obtém consagração com “Juca Mulato”.
De qualquer maneira, no dizer de Mário da Silva Brito, ainda é uma “hora cinzenta de transição”2. As velhas escolas – o parnasianismo e simbolismo – ainda estão muito presentes.
O Brasil avançava materialmente, no entanto,
no plano da cultura, um passado insiste em determinar os rumos do
imaginário, com os seus mitos, o seu bem-dizer, a sua fala empolada, e
as costas viradas para o país.
Era necessário dar um giro com o calcanhar a fim de olhar para o Brasil.
No entanto, o elemento mais dramático e provavelmente que melhor anuncia mudanças está na exposição de Anita Malfatti, inaugurada na tarde de 12 de dezembro daquele ano.3
A artista, além do expressionismo que aprendera na
Alemanha e já tivera oportunidade de mostrar numa outra exposição, em
1914, traz ainda na bagagem a sua experiência nos Estados Unidos, sem
falar em toda a sua própria originalidade.
Estamos diante de uma arte que se exibe em traços
fortes demais para o convencionalismo de uma São Paulo provinciana.
Jornais e revistas comentam os quadros, ressalvando o descompasso entre a
artista e o grande público. A exposição cresce em escândalo, embora
muitos quadros sejam adquiridos.
No entanto, a temperatura sobe quando Monteiro
Lobato, já jornalista consagrado, publica o artigo, que ficaria
conhecido como “Paranoia ou mistificação?”4, na edição noturna d’ O Estado de São Paulo.
A crítica violenta de Lobato reflete
desastrosamente sobre a exposição e a vida familiar de Anita. A artista
recebe de volta muito dos quadros que tinham sido vendidos, e
evidentemente sofre bastante com tudo isso.
Este acontecimento contudo cria as bases para uma espécie de divisor de águas.
Dessa maneira, o artigo de Monteiro Lobato tem a
capacidade de congregar aqueles vários artistas e intelectuais
insatisfeitos com os rumos de uma tradição de pensamento e de arte,
servindo como um dos estopins da Semana de Arte Moderna de 1922. (Theotonio de Paiva)
–
Paranóia ou Mistificação
Por Monteiro Lobato
Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que
veem normalmente as coisas e em consequência disso fazem arte pura,
guardados os eternos ritmos da vida, e adotados para a concretização das
emoções estéticas, os processos clássicos dos grandes mestres.
Quem trilha por esta senda, se tem gênio, é
Praxiteles na Grecia, é Rafael na Itália, é Rembrandt na Holanda, é
Rubens na Flandres, é Reynolds na Inglaterra, é Lenbach na Alemanha, é
Zorn na Suécia, é Rodin na França, é Zuloaga na Espanha. Se tem apenas
talento vai engrossar a plêiade de satélites que gravitam em torno
desses sóis imorredouros.
A outra espécie é formada dos que veem anormalmente a
natureza, e interpretam à luz das teorias efêmeras, sob a sugestão
estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da
cultura excessiva. São produtos do cansaço e do sadismo de todos os
períodos de decadência; são frutos de fim de estação, bichados ao
nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um instante, as mais das vezes
com a luz do escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento.
Embora eles se deem como novos, precursores duma arte
a vir, nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu
com a paranoia e com a mistificação.
De há muito já que a estudam os psiquiatras em seus
tratados, documentando-se nos inúmeros desenhos que ornam as paredes
internas dos manicômios. A única diferença reside em que nos manicômios
essa arte é sincera, produto lógico de cérebros transtornados pelas mais
estranhas psicoses; e fora deles, nas exposições públicas, zabumbadas
pela imprensa e absorvidas por americanos malucos, não há sinceridade
nenhuma, nem nenhuma lógica, sendo tudo mistificação pura.
Todas as artes são regidas por princípios imutáveis, leis fundamentais que não dependem do tempo, nem da latitude.
As medidas de proporção e equilíbrio, na forma ou na
cor, decorrem do que chamamos sentir. Quando as sensações do mundo
externo transformam-se em impressões cerebrais, nós “sentimos”; para que
sintamos de maneira diversa, cúbica ou futurista, é forçoso ou que a
harmonia do universo sofra completa alteração, ou que o nosso cérebro
esteja em “pane” por virtude de alguma grave lesão.
Enquanto a percepção sensorial se fizer normalmente
no homem, através da porta comum dos cinco sentidos, um artista diante
de um gato não poderá “sentir” senão um gato, e é falsa a
“interpretação” que do bichano fizer um totó, um escaravelho ou um
amontoado de cubos transparentes.
Estas considerações são provocadas pela exposição da
sra. Malfatti onde se notam acentuadíssimas tendências para uma atitude
estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso e companhia.
Essa artista possui um talento vigoroso, fora do
comum. Poucas vezes, através de uma obra torcida para má direção, se
notam tantas e tão preciosas qualidades latentes. Percebe-se de qualquer
daqueles quadrinhos como a sua autora é independente, como é original,
como é inventiva, em que alto grau possui um sem número de qualidades
inatas e adquiridas das mais fecundas para construir uma sólida
individualidade artística.
Entretanto, seduzida pelas teorias do que ela chama
arte moderna, penetrou nos domínios dum impressionismo discutibilíssimo,
e põe todo o seu talento a serviço duma nova espécie de caricatura.
Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e
“tutti quanti” não passam de outros ramos da arte caricatural. É a
extensão da caricatura a regiões onde não havia até agora penetrado.
Caricatura da cor, caricatura da forma – caricatura que não visa, como a
primitiva, ressaltar uma ideia cômica, mas sim desnortear, aparvalhar o
espectador.
A fisionomia de quem sai de uma dessas exposições é das mais sugestivas.
Nenhuma impressão de prazer, ou de beleza denunciam
as caras; em todas, porém, se lê o desapontamento de quem está incerto,
duvidoso de si próprio e dos outros, incapaz de raciocinar, e muito
desconfiado de que o mistificaram habilmente.
Outros, certos críticos sobretudo, aproveitam a vasa para épater les bourgeois.
Teorizam aquilo com grande dispêndio de palavrório técnico, descobrem
nas telas intenções e subintenções inacessíveis ao vulgo, justificam-nas
com a independência de interpretação do artista e concluem que o
público é uma cavalgadura e eles, os entendidos, um pugilo genial de
iniciados da Estética Oculta.
No fundo, riem-se uns dos outros – o artista do crítico, o crítico do pintor e o público de ambos.
“Arte moderna”, eis o escudo, a suprema justificação.
Na poesia também surgem, às vezes, furúnculos dessa
ordem, provenientes da cegueira nata de certos poetas elegantes, apesar
de gordos, e a justificativa é sempre a mesma: arte moderna.
Como se não fossem moderníssimos esse Rodin que acaba
de falecer, deixando após si uma esteira luminosa de mármores divinos;
esse André Zorn, maravilhoso “virtuose” do desenho e da pintura, esse
Brangwyn, gênio rembrandtesco da babilônia industrial que é Londres,
esse Paul Chabas, mimoso poeta das manhãs, das águas mansas e dos corpos
femininos em botão.
Como se não fosse moderna, moderníssima, toda a
legião atual de incomparáveis artistas do pincel, da pena, da
água-forte, da “dry-point” que fazem da nossa época uma das mais
fecundas em obras primas de quantas deixaram marcos de luz na história
da humanidade.
Na exposição Malfatti figura, ainda, como
justificativa da sua escola, o trabalho de um “mestre” americano, o
cubista Bolynson. É um carvão representando (sabe-se disso porque uma
nota explicativa o diz) uma figura em movimento. Está ali entre os
trabalhos da sra. Malfatti em atitude de quem diz: eu sou o ideal, sou a
obra prima, julgue o público do resto tomando-me a mim como ponto de
referência.
Tenhamos a coragem de não ser pedantes; aqueles
gatafunhos não são uma figura em movimento; foram, isto sim, um pedaço
de carvão em movimento. O sr. Bolynson tomou-o entre os dedos das mãos,
ou dos pés, fechou os olhos, e fê-lo passear pela tela às tontas, da
direita para a esquerda, de alto a baixo. E se não fez assim, se perdeu
uma hora da sua vida puxando riscos de um lado para outro, revelou-se
tolo e perdeu o tempo, visto como o resultado seria absolutamente o
mesmo.
Já em Paris se fez uma curiosa experiência: ataram
uma brocha na cauda de um burro e puseram-no de traseiro voltado para
uma tela. Com os movimentos da cauda do animal a brocha ia borrando a
tela.
A coisa fantasmagórica resultante foi exposta como um
supremo arrojo da escola cubista, e proclamada pelos mistificadores
como verdadeira obra prima que só um ou outro raríssimo espírito de
eleição poderia compreender.
Resultado: o público afluiu, embasbacou, os iniciados
rejubilaram e já havia pretendentes à tela quando o truque foi
desmascarado.
A pintura da sra. Malfatti não é cubista, de modo que
estas palavras não se lhe endereçam em linha reta; mas como agregou à
sua exposição uma cubice, leva-nos a crer que tende para ela como para
um ideal supremo.
Que nos perdoe a talentosa artista, mas deixamos cá
um dilema: ou é um gênio o sr. Bolynson e ficam riscados desta
classificação, como insignes cavalgaduras, a corte inteira dos mestres
imortais, de Leonardo a Stevens, de Velazquez a Sorolla, de Rembrandt a
Whistler, ou… vice versa. Porque é de todo impossível dar o nome de obra
de arte a duas coisas diametralmente opostas como, por exemplo, a Manhã de Setembro de Chabas, e o carvão cubista do sr. Bolynson.
Não fosse a profunda simpatia que nos inspira o
formoso talento da sra. Malfatti, e não viríamos aqui com esta série de
considerações desagradáveis.
Há de ter essa artista ouvido numerosos elogios à sua nova atitude estética.
Há de irritar-lhe os ouvidos, como descortês impertinência, esta voz sincera que vem quebrar a harmonia de um coro de lisonjas.
Entretanto, se refletir um bocado, verá que a lisonja
mata e a sinceridade salva. O verdadeiro amigo de um artista não é
aquele que o entontece de louvores, e sim, o que lhe dá uma opinião
sincera, embora dura, e lhe traduz chãmente, sem reservas, o que todos
pensam dele por detrás.
Os homens têm o vezo de não tomar a sério as
mulheres. Essa é a razão de lhes darem sempre amabilidades sempre quando
elas pedem opinião.
Tal cavalheirismo é falso, e sobre falso, nocivo.
Quantos talentos de primeira água se não transviaram arrastados por maus
caminhos, pelo elogio incondicional e mentiroso? Se víssemos na sra.
Malfatti apenas uma “moça prendada que pinta”, como há centenas por aí,
sem denunciar centelha de talento, calar-nos-íamos, ou talvez lhe
déssemos meia-dúzia desses adjetivos “bombons”, que a crítica açucarada
tem sempre à mão em se tratando de moças.
Julgamo-la, porém, merecedora da alta homenagem que é
tomar a sério o seu talento dando a respeito da sua arte uma opinião
sinceríssima, e valiosa pelo fato de ser o reflexo da opinião geral do
público sensato, dos críticos, dos amadores, dos seus colegas e… dos
seus apologistas.
Dos seus apologistas, sim, dona Malfatti, porque também eles pensam deste modo… por trás.
Publicado, em 20/12/1917,
em O Estado de São Paulo, edição da noite