abril 16, 2014

"Além da economia, a subjetividade", por Bruno Cava

PICICA: "A economia entendida como “ciência dos comportamentos” (Foucault) ou “produção de subjetividade” (Deleuze/Guattari). O “econômico” é concreção de relações sociais e repercute o estado de uma relação de força, ora travestida como pacto, ora como conflito aberto entre tendências políticas. Aqui, o objetivo é abordar e problematizar o que se convencionou chamar de “economia”, como campo do conhecimento, além de qualquer demarcação disciplinar ou positivismo metodológico. Sem ressentir o pensamento nalgum saber especialista que, por meio de dogmáticas e propedêuticas, procure se blindar das intervenções políticas. Estamos propondo apresentar textos a respeito de outra economia, uma altereconomia. Uma alternativa à economia hegemônica aplicada na gestão dos estados e do capital, bastante blindada perante à crítica filosófica ou ação democrática, que costuma classificar como inadequadas diante do “fenômeno econômico”, suas exigências, lógicas e leis. E libertar as forças produtivas, assim, de sua concha estatal e capitalista."
 
Além da economia, a subjetividade
 
Apresentação da Seção Economia & subjetividade, publicada no número 41 da Revista Lugar Comum (set-dez 2013), em 14/4/2014.

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A economia entendida como “ciência dos comportamentos” (Foucault) ou “produção de subjetividade” (Deleuze/Guattari). O “econômico” é concreção de relações sociais e repercute o estado de uma relação de força, ora travestida como pacto, ora como conflito aberto entre tendências políticas. Aqui, o objetivo é abordar e problematizar o que se convencionou chamar de “economia”, como campo do conhecimento, além de qualquer demarcação disciplinar ou positivismo metodológico. Sem ressentir o pensamento nalgum saber especialista que, por meio de dogmáticas e propedêuticas, procure se blindar das intervenções políticas. Estamos propondo apresentar textos a respeito de outra economia, uma altereconomia. Uma alternativa à economia hegemônica aplicada na gestão dos estados e do capital, bastante blindada perante à crítica filosófica ou ação democrática, que costuma classificar como inadequadas diante do “fenômeno econômico”, suas exigências, lógicas e leis. E libertar as forças produtivas, assim, de sua concha estatal e capitalista.

A luta contra essa economia gera sua própria verdade segundo um saber menor, desviante principalmente da camisa-de-força da economia clássica e neoclássica. Na história da luta de classe, as duas últimas dedicaram-se a abstrair as suas próprias “objetividades”, num complexo processo de interdições, esquecimentos, dogmatizações, normalizações do conhecimento, sempre produzido de dentro dos conflitos. A lei da oferta e da procura, a figura do indivíduo, e o paradigma da escassez, a divinização do mercado – produtos conceituais resultantes de um teatro das relações de força – aos poucos se normalizaram como “fatos” do econômico, usado então para legitimar o estado moderno e o capitalismo que lhe corresponde. Daí decorreu um paradoxal realismo político, pautado pelas imperiosas racionalidades econômicas, respaldado pelos arcanos e mistérios do Mercado. Nesse realismo político que se apresenta neutralizado em relação à política, assentam-se as tecnologias de poder do capitalismo tardio: a nova sociedade do trabalho pós-fordista e o vagalhão ideológico que muitos preferem chamar “neoliberalismo”.

Na modernidade, o “econômico” apareceu para resolver as contradições entre o “político” e o “social”. Situado a meio termo, a alta síntese do “econômico” propicia um terreno de pacificação dos conflitos, delimitando as condições ao redor do que o embate pode chegar a consensos, à assunção de um mínimo operativo. Trata-se um modelo dialético oscilante entre os pares “público” e “privado”. Ao privado caberia a busca da produtividade e competitividade, terra da iniciativa de indivíduos empreendedores; enquanto ao público competiria regular o processo, assegurar o provimento das funções de estado tão indispensáveis à coletivização do capital, a seu funcionamento segundo a paz dos proprietários. A economia clássica e neoclássica é forjada, dentro desse diagrama de poder, como um saber e uma técnica debruçados sobre a produção de equilíbrio geral do sistema, fechamento operativo e uma “pré-história” econômica para garantir sua própria justeza.

Outra tendência teórico-política, que termina por compartilhar lençóis com a primeira, consiste na reedição de um malthusianismo – com tintas agora ecológicas. Diferentemente da primeira, esta não é uma corrente hegemônica, apesar de desviar parte das energias de transformação segundo um duelo idealista de posições, o que evidentemente interessa à conservação da ordem econômica. Grosso modo, abstraindo o homem da natureza, ela termina por reforçar a armadilha antropocêntrica que pretensamente combate, ao opor dois termos que não podem funcionar em separado. Como se houvesse um Homem destruindo o Planeta que precisasse ser contido! Ou, então, que vivêssemos num mundo com recursos limitados e uma voracidade ilimitada do Homem pela satisfação. Trata-se, aí, de combater o desejo, o que seria a essência de um capitalismo como franja expansiva de voracidades antinaturais. Nessa reedição de um humanismo autoritário, o desejo acaba criminalizado no lugar do capital, Gaia passa a personalizar a natureza; e o Homem termina por substituir forças histórico-políticas muito consistentes e bastante localizadas, produtoras de sofrimento mas também de revolta e transformação. Gaia anula a natureza naturante, numa regressão mítica à “Mãe Natureza” – um produto ideológico em tempos de “fim da história”. Nessa concepção transcendente do mundo, as dores da luta não aparecem, as agruras e desafios da terra são substituídas por uma consciência flutuante acima dos conflitos, purificada, “limpa”, e que se pretende universalista.

Os decrescimentistas respondem ao capitalismo negando o desejo, em vez de buscar libertá-lo. Contestam as relações de produção sem se situar nas forças produtivas. Exercem uma crítica negativa sem movimento real que lhes dê suporte, o que transforma o embate político numa discussão sobre limites e culpas. Sem o desejo, sem a capacidade de identificar dentro da configuração capitalista as tendências de fuga, só lhes resta mesmo a impotência e mesmo o culto à impotência, – disfarçado doravante de conveniente subtração da cena política ou, máxima patologia, a resignação fatalista do fim do mundo.

Diante disso, como primeiro tema abordado nesta seção, trazemos o debate teórico-político do “aceleracionismo”. Tomado em seu viés marxista, ou seja, como crítica da economia política hoje, o aceleracionismo pode vir a ser uma aposta promissora. A hipótese aceleracionista não só contesta o fechamento da economia, – segundo a medida e imagem do valor, como concreção do social e pacificação do político, – como também rejeita o dogma da escassez, para retraçar as coordenadas e polivalências do mundo da produção segundo a matriz da superabundância. Uma economia pensada pela abundância, contra a racionalidade distributiva. Uma “antieconomia” da subjetividade, contra as objetividades simétricas dos limites e das insaciedades.

Porque é o capitalismo que, como já indicavam em fagulhas do pensamento Deleuze e Guattari, especialmente no Anti-Édipo, precisa erigir e salvaguardar instâncias de antiprodução. Os elementos de antiprodução – a divisão artificial entre “trabalho produtivo” e “trabalho improdutivo”, ou entre funções de produção e funções de poder – não frustram o capitalismo. As antiproduções existem a fim de conter a multiplicação delirante e explosiva de qualidades, virtudes e diferenças. O valor, dessa maneira, é um “menos”. O capital não funciona mediante uma expansão infinita – pauta-se, isso sim, por uma expansão mitigada, ou melhor, por uma alavancagem, devidamente acompanhada de mecanismos de controle, e formas cada vez mais sofisticadas e abstratas de extrair valor. Essa alavancagem se apropria das potencialidades próprias da abstração, para impregnar a exploração em formas gradativamente mais difusas e abscônditas. O patrão se dissolve numa rede de explorações moduladas, e o comum é expropriado na desmedida da produção biopolítica. Parte da lógica estatal, por sua vez, é transposta à esfera dinâmica do mercado, em oposição dialética.

O aceleracionismo propõe não recuar, mas ir em frente até o fim. Propõe radicalizar as tendências explosivas do desejo de que o capitalismo tanto precisa, e tanto teme. Um desejo cujas concatenações são forças produtivas, e cuja ontologia constituinte muda a cada vez, resultado e causalidade de lutas, reinvenções e conspirações, a cada vez.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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