maio 01, 2014

"“Esquenta!”, DG e a disputa pela representação da nova classe trabalhadora", por João Telésforo

PICICA: "UPPs, governos e Rede Globo (e suas concorrentes da grande mídia) estão, como é bastante notório, unidos nesse projeto. Controlar territórios pobres de modo militarizado, não para garantir a segurança daquela população, mas para discipliná-la como público consumidor e assujeitado. O “Esquenta” de hoje, ao não enfrentar a falência das UPPs ou enfrentar o tema da violência policial, mostrou-se como dimensão contraditória desse projeto. Contraditória porque esse programa, justamente por ser uma tentativa de disputar a representação simbólica da classe subalterna em ascensão (como parte do esforço de domesticá-la), precisa mostrá-la como sujeito, de alguma maneira – mesmo uma versão bastante parcial e disciplinada desse sujeito. Ao fazer isso, abre um terreno de disputa menos desvantajoso para a autoexpressão desse sujeito e de suas lutas do que a programação “comum” da Rede Globo e das demais grandes emissoras de TV.

Como disse o megainvestidor norte-americano Warren Buffett, lembrado outro dia pelo Vladimir Safatle: “Quem disse que não há luta de classe? Claro que há, e nós estamos vencendo”. Não sei quem está vencendo, sei que precisamos refinar nossos instrumentos de análise, pois tanto as estratégias de resistência e produção subalterna, como as de tentativa de seu apassivamento, apropriação e direcionamento, têm se sofisticado. Mais útil do que celebrar as pequenas aberturas como se fossem revolucionárias, ou lamentar de modo impotente o fato de que não o são, é investigar a realidade dialeticamente, para pensar estratégias que alarguem a materialidade dessas frestas e evitem seu disciplinamento." 


“Esquenta!”, DG e a disputa pela representação da nova classe trabalhadora


A mãe de DG foi ao Esquenta, mas não teve espaço para vocalizar as críticas que vem fazendo às UPPs.
A mãe de DG foi ao Esquenta, mas não teve espaço para vocalizar as críticas que vem fazendo às UPPs.

Vejo o “Esquenta” como um dos retratos do empoderamento conquistado por uma classe subalterna durante os anos Lula, e também de seus limites (que parecem cada vez mais incontornáveis nos moldes da atual governabilidade conservadora).

Esse empoderamento veio, como se sabe, pela conquista de aumento do poder de consumo. Um empoderamento que pode ser frágil e sem dúvida algum contraditório, mas foi empoderamento, porque o acesso a esses bens ampliou as condições materiais de autocomunicação e auto-organização desses setores – veja-se os “rolezinhos”, um dos exemplos mais marcantes desse fenômeno. Frágil, porque é preciso analisar o peso do endividamento das famílias nessa expansão do consumo, e mais ainda porque basicamente não se tocou nas estruturas que concentram poder – material e ideológico – nas classes e setores dominantes.

Porém, embora não se tenha enfrentado essas estruturas, elas não ficaram imunes à maior inclusão desse setor subalterno no mercado de consumo. Não se promoveu a democratização dos meios de radiodifusão nem se mexeu, aparentemente, nos privilégios fiscais de Globo e cia, mas fica cada vez mais difícil para a Globo e cia ignorarem a existência dessa classe em relativa ascensão econômica.

Engana-se redondamente quem pensa que basta, para não perder a hegemonia ideológica e de mercado sobre esse setor, fazer propaganda dirigida para ele (o que tem acontecido bastante, claro). A Globo sabe que seu grande concorrente, cada vez mais, é a internet, com suas redes de autoprodução e difusão de cultura e entretenimento, inclusive entre esse segmento de trabalhadores pobres. Prova disso é a reformulação que está fazendo em diversos programas para tentar torná-los mais “interativos” e parecidos com as redes sociais – não assisti ao Fantástico de ontem, mas dizem que foi mais um marco nesse sentido. Então, preocupada com a hegemonia de audiência e ideológica sobre o setor pobre consumidor, o ‘consumitariado’, a Globo sabe que, cada vez mais, não bastará mostrá-lo como objeto; é preciso, tal como acontece nas redes sociais, promover sua inclusão como sujeitos produtores de cultura e entretenimento, em alguma medida.

O “Esquenta” é a principal resposta da Globo, até aqui, a esse duplo movimento: à ascensão consumidora de uma classe, e às mudanças forçadas pela nova lógica social de produção e comunicação, em escala global (cujas raízes não cabe examinar neste texto), que têm como grande símbolo as redes sociais.

Não é por acaso, então, que Douglas Silva, o DG, um dos jovens negros assassinados numa favela do Rio de Janeiro nessa semana, fosse um dançarino de destaque do Esquenta, e não do Fantástico, Domingão do Faustão, do programa do Luciano Huck, Fátima Bernardes, Ana Maria Braga ou Serginho Groisman. Obviamente, nesses outros programas também devem trabalhar jovens pobres e negros de favelas do Rio de Janeiro. Porém, muito provavelmente, não na mesma proporção do Esquenta, e o mais importante: não tanto diante das câmeras, e muito menos em posições de destaque e como porta-vozes da estética produzida pelos segmentos da periferia, como no programa de Regina Casé. Estética essa que não é homogênea, claro, e que é seletivamente recortada nas suas representações admitidas e priorizadas no “Esquenta!”.

O Esquenta é, pois, uma pequena abertura conquistada pelas lutas dessa classe em relativa ascensão. Conquistada pelas lutas, sim: as pequenas grandes conquistas do ciclo lulista – não só Bolsa-Família, mas, mais ainda, políticas como o aumento real sustentado do salário-mínimo – foram arrancadas do poder: respostas do Estado para tentar se legitimar diante de anos e anos de mobilização popular por justiça social. É claro que a resposta lulista foi limitada, deu-se nos marcos de não promover reformas estruturantes; e por isso mesmo, parece delinear-se não só sua precariedade, como seu esgotamento. Porém, isso não muda o fato de que esses parcos avanços foram obtidos pelas lutas, como tentativas dos poderosos de “dar os anéis (ou nem isso) para não perder os dedos”. De modo análogo, o programa “Esquenta”.

Dada a função que cumpre e sua composição social de classe (no palco e na audiência), o Esquenta não tinha como não se dedicar, hoje, à morte de seu dançarino Douglas DG, não tinha como não contextualizá-la como mais um episódio brutal da violência contra a juventude pobre e negra das periferias do Rio de Janeiro e do Brasil… Devemos comemorar, pois, que se tenha falado nesses assuntos, ainda que de modo passageiro e superficial, no programa de Regina Casé de hoje. Trata-se de um furo do bloqueio midiático sobre a discussão desses temas, conquistado pelas lutas dos movimentos negros, das periferias, de cultura, populares.

Porém, basta olhar com um pouco mais atenção para a edição de hoje do Esquenta para se perceber os limites e o caráter contraditório da “abertura” em que ele consiste. Praticamente não se falou da violência policial sistemática dirigida contra a população pobre e negra das favelas. Não se tocou no fato de que o Estado é um dos grandes instrumentos desse ciclo de criminalização da pobreza e da juventude negra.

O tom geral foi o de se falar da violência em abstrato, sem denunciar as políticas de segurança pública como parte fundamental desse quadro violento. Contraditoriamente, o discurso genérico “contra a violência” que marcou o programa de hoje pode alimentar justamente a legitimação da resposta policialesca que é parte do problema, e não de sua solução.  A resposta do governo do Rio à morte de DG, que tem indícios sérios de responsabilidade da polícia, é bastante eloquente sobre isso: na repressão ao protesto da população indignada da comunidade do Pavão-Pavãozinho, mais um jovem morto pela ação da PM: Edilson da Silva.

Não é uma coincidência que o Esquenta de hoje não tenha falado sobre Edilson. Não era conveniente para os interesses da Globo lembrar que insistir na resposta policial à violência só vem agravando-a ainda mais (perdi o começo do programa e posso ter tido algum lapso de atenção, mas, caso alguém tenha tocado no tema por lá, foi de modo extremamente passageiro e sem desdobrar a crítica). Mais conveniente era falar de combater a violência, em abstrato, e até mesmo a impunidade (!), como o fez Jô Soares no programa (e não para falar de impunidade de policiais…). Ou seja: a solução seria punir ainda mais… Como se os jovens das favelas já não estivessem sendo punidos, muitas vezes com a morte, por sua condição social e identidade racial.

Significativas, também, foram outras falas do Esquenta, como a de Fátima Bernardes. A apresentadora disse que o Estado tem de estar presente na favela também com educação. É claro que já é alguma coisa reconhecer-se a necessidade de superação da desigualdade no acesso à educação, saúde, etc. Porém, a armadilha desse tipo de discurso é que critica a omissão do Estado, mas silencia diante da outra face complementar dela: o inchaço de seu aparato repressor. Esse é o discurso que se tenta construir, agora, para legitimar a ocupação militarizada das favelas: o problema não estaria exatamente nela, mas na ausência das políticas sociais. Ou seja, uma vez que se “compense” a violência sistemática, a criminalização da pobreza, com “políticas sociais” (“UPP social”), aí o problema estaria resolvido… Como se não fosse preciso mudar radicalmente as políticas de segurança pública, como se elas e a omissão do braço social do Estado não fossem parte de uma mesma política.

O fato é que são. O projeto das UPPs mostra muito bem isso, como parte de uma lógica de gestão neoliberal da pobreza. Neoliberal?! Sim. O neoliberalismo produz a “ascensão do Estado penal”, “em resposta à crescente inseguridade social, e não à insegurança criminal”, diz o sociólogo Loïc Wacquant, autor da já clássica obra “Punir os pobres: o governo neoliberal da inseguridade social” (2009). O “neoliberalismo realmente existente”, diz Wacquant, consiste não na redução do Estado (conforme sua propaganda ideológica), mas em sua reengenharia, na “construção de um Estado forte capaz de opor-se de modo efetivo à resistência social à mercantilização e de moldar culturalmente subjetividades em conformidade com isso”. Trata-se, diz ainda o francês radicado nos Estados Unidos, de uma “articulação entre Estado, mercado e cidadania que direciona o primeiro para impor o selo da segunda na terceira”.

O Estado não diminui, mas ganha um novo perfil, ainda mais forte como máquina de estratificação social a serviço da mercantilização. No caso da “ocupação” das favelas, isso fica bastante claro: o projeto das UPPs envolve não apenas o disciplinamento político de uma classe via repressão explícita, mas também uma disputa econômica pelo controle do mercado consumidor e produtivo dos territórios “pacificados”… A retórica é de que o controle territorial pelo Estado teria por fim “levar serviços básicos” às favelas, mas o que se tem registrado não é isso.

A disputa pelo controle da economia dos territórios das favelas alcança não apenas a concorrência comercial pela prestação de alguns serviços, mas, de modo bastante central, a ofensiva de inclusão daquelas terras no mercado imobiliário dominado pelas grandes empresas “do asfalto”. Não por acaso, tem se registrado alta brutal de preços dos imóveis de favelas “pacificadas”, o que tem expulsado a pobreza para áreas mais periféricas do Rio e gerado lucros exorbitantes para o capital imobiliário.

Vale lembrar que em janeiro deste ano, o secretário de segurança pública do Rio de Janeiro foi homenageado pelo Esquenta devido ao seu trabalho com as UPPs. Foram blocos e mais blocos que falavam dos benefícios das Unidades, contradizendo outros muitos veículos midiáticos populares que trataram do assunto.

UPPs, governos e Rede Globo (e suas concorrentes da grande mídia) estão, como é bastante notório, unidos nesse projeto. Controlar territórios pobres de modo militarizado, não para garantir a segurança daquela população, mas para discipliná-la como público consumidor e assujeitado. O “Esquenta” de hoje, ao não enfrentar a falência das UPPs ou enfrentar o tema da violência policial, mostrou-se como dimensão contraditória desse projeto. Contraditória porque esse programa, justamente por ser uma tentativa de disputar a representação simbólica da classe subalterna em ascensão (como parte do esforço de domesticá-la), precisa mostrá-la como sujeito, de alguma maneira – mesmo uma versão bastante parcial e disciplinada desse sujeito. Ao fazer isso, abre um terreno de disputa menos desvantajoso para a autoexpressão desse sujeito e de suas lutas do que a programação “comum” da Rede Globo e das demais grandes emissoras de TV.

Como disse o megainvestidor norte-americano Warren Buffett, lembrado outro dia pelo Vladimir Safatle: “Quem disse que não há luta de classe? Claro que há, e nós estamos vencendo”. Não sei quem está vencendo, sei que precisamos refinar nossos instrumentos de análise, pois tanto as estratégias de resistência e produção subalterna, como as de tentativa de seu apassivamento, apropriação e direcionamento, têm se sofisticado. Mais útil do que celebrar as pequenas aberturas como se fossem revolucionárias, ou lamentar de modo impotente o fato de que não o são, é investigar a realidade dialeticamente, para pensar estratégias que alarguem a materialidade dessas frestas e evitem seu disciplinamento.

PS: este texto foi aprimorado pelo diálogo com o professor Edson Farias e por sugestões da Anne Botelho. Obviamente, porém, as opiniões registradas aqui, com as imprecisões que possam ter, são de responsabilidade unicamente minha.

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