maio 05, 2014

"O Anti-Édipo" (Razão Inadequada)

PICICA: "A idéia é que o livro seja usado como uma máquina de guerra, destruindo conceitos propostos pela psicanálise e colocando outros no lugar. “O que colocamos em questão é a edipianização furiosa a que se dedica a psicanálise” (Deleuze, Anti-Édipo). Não se trata de uma negação da psicanálise, mas uma superação de estruturas limitantes para o homem e seu desejo. Uma forma de psicanálise política, social e militante."


O Anti-Édipo


anti-édipo
“Não nos dirigimos aos que consideram que a psicanálise vai bem e tem uma visão justa do inconsciente. Nós nos dirigimos àqueles que acham que toda essa história de Édipo, castração, pulsão de morte…, etc. é bem monótona, e triste, um romrom. Nós nos dirigimos aos inconscientes que protestam. Buscamos aliados. Precisamos de aliados” – Deleuze, Conversações

Anti-Édipo é um livro escrito à quatro-mãos, Deleuze e Guattari, lançado em 1972. “Escrevemos o Anti-Édipo a dois. Como cada um de nós era vários, já era muita gente” (Deleuze & Guattari, Mil Platôs I). Mais um fruto de maio de 68, movimento libertário que ocorreu na França e no qual os dois autores participaram ainda sem se conhecer. Anti-Édipo é uma reação à psicanálise de Freud e Lacan (ainda muito influente na França) e se propõe a explorar novos caminhos para o inconsciente e o desejo. No lugar do modelo neurótico, Deleuze e Guattari trazem o modelo do esquizofrênico, como aquele que resiste ao Édipo e busca novas possibilidades.

A idéia é que o livro seja usado como uma máquina de guerra, destruindo conceitos propostos pela psicanálise e colocando outros no lugar. “O que colocamos em questão é a edipianização furiosa a que se dedica a psicanálise” (Deleuze, Anti-Édipo). Não se trata de uma negação da psicanálise, mas uma superação de estruturas limitantes para o homem e seu desejo. Uma forma de psicanálise política, social e militante.

“Contra a psicanálise dissemos somente duas coisas: ela destrói todas as produções de desejo, esmaga todas as formações de enunciados” (Deleuze, Diálogos). Com esta afirmação, Deleuze e Guattari dão mostra do tamanho de suas críticas ao modelo psicanalítico, este seria fruto de nossa sociedade moderna e funcionaria como mais um aparelho de repressão, desta vez agindo diretamente em nossa produção desejante. Édipo como forma de estruturação do sujeito, como doença inoculada na criança, como ilusão e canalização do desejo. Édipo existe, mas é uma criação. Édipo existe, mas deve ser destruído. A produção edípica consiste em rebater todas as imagens sociais do capitalismo sobre a família: tudo vira papai-mamãe, tudo passa pela triangulação. Deitado no divã, pela transferência, só se tem as mesmas imagens, fantasmas, repetições, não se cansa nunca, não se cura nunca. O social adquire significação, as dores se tornam significantes, toda produção morre em um monólogo procurando identificar papai e mamãe (o chefe é o pai, a mulher é a mãe e etc…). Ao invés de “como isso funciona?” perde-se no monótono “o que isso significa?”.

Para Deleuze e Gattari, o desejo é revolucionário, todo desejo é produção do real e transborda para fora do sujeito transformando a realidade. “Para a psicanálise, pode-se dizer que há sempre desejos demais. Para nós, ao contrário, nunca há desejos o bastante” (Deleuze, Cinco proposições sobre a psicanálise). Ao contrário do que dizem os psicanalistas, não falta nada ao desejo (ver Deleuze e o Desejo). Mas esta produção desejante no sujeito ameaça as estruturas de nossa sociedade, então o capitalismo impede o desejo de fugir, ele se apropria do desejo. Com Édipo, há o esmagamento do desejo. O inconsciente produtivo e as máquinas desejantes que são o modelo original de ser do homem (veja aqui) se reduzem ao modelo neurótico de conduta. O complexo de Édipo é o processo pela qual as crianças passam que enquadra o desejo do indivíduo, funcionando como sobreposição às produções desejantes originais; em suma, a criança é impedida de experimentar.

“O incurável familialismo da psicanálise, enquadrando o inconsciente em Édipo, ligando-o de um lado e do outro, esmagando a produção desejante, condicionando o paciente a responder papai-mamãe, a consumir sempre papai-mamãe” – Deleuze, Anti-Édipo

Mas como exatamente isso funciona? Édipo é uma instituição, uma forma, uma conduta. A criança em seu quarto, o papai no escritório, a mamãe na cozinha. A mamãe proteje, o papai é lei, a criança acata. A criança come Édipo e respira Édipo dentro de casa. Quando ela brinca, a caverna é a mamãe, o monstro é o papai; ou então, o trem maior é o papai, o menor é ela e a estação é a mamãe (para utilizar um exemplo de Klein). Há todo um processo de identificação, Freud descobriu o inconsciente, mas o transformou em uma teatro grego, com uma peça que se repete interminavelmente.

Quando a criança se torna adulta, já está infectada, ela vê Édipo em tudo: seu chefe é seu pai, o ditador é seu pai, o poder é seu pai; sua casa é sua mãe, seu psicanalista é sua mãe. “Produz-se uma espécie de esmagamento graças à psicanálise, que dispõe de um código pré-existente. Este código é constituído por Édipo, pela castração, pelo romance familiar” (Deleuze, cinco proposições sobre a psicanálise). Depois de todo um esforço interpretativo, depois de toda uma repressão e reorientação do desejo, a máquina desejante (que é o homem) passa a reproduzir Édipo sem se dar conta.

O que Freud não percebeu é que Édipo é efeito, e não causa. Esta é uma das teses da esquizoanálise: o inconsciente provém do campo social, não do familiar. A sociedade se serve de Édipo para nos transformar em neuróticos castrados. O divã é a última territorialidade, a última cartada, o lance final de dados: diga papai e mamãe, você precisa dizer apenas papai e mamãe. E assim, o indivíduo passa a vida inteira repetindo, sem saber criar. Sua vida se torna desintensificada, lhe falta algo. A produção de intensidades lhe é roubada, ele passa uma vida inteira de entorpecimento, comprando produtos que não precisa, procurando coisas que não achará. O neurótico não usa seu corpo para si, ele virou uma máquina social, máquina gregária, fecharam-se todas as saídas da máquina desejante. Ele tem medo. O complexo de Édipo é uma organização social capitalista que adestra as máquinas desejantes e impede o homem de experimentar. Produzindo um homem doentio, moribundo, dócil, as estruturas sociais estão protegidas.

Neste ponto, Deleuze e Guattari contrapõe o modelo esquizofrênico. Freud nunca gostou dos esquizofrênicos, eles resistem ao Édipo. Não a esquizofrenia como doença, mas um processo de produção esquizofrênico como modo de vida. “O passeio do esquizofrênico: é um modelo melhor do que o neurótico deitado no divã” (Deleuze, Anti-Édipo). O esquizofrênico é um nômade, não se deixa capturar, não cria raízes. Ele não se deixa ser interpretado (“ok, ok , isso é meu pai… mas é também minha mãe, e eu também, e você também!”). A experimentação é mais importante que a interpretação. Ele não se sacia com a repetição, as intensidades lhe são essenciais, este é o único modo de desorganizar-se e criar para si um corpo sem órgãos (veja aqui). O esquizofrênico foge à classificação e à organização do poder, ele não possui uma conduta gregária: perder-se é encontrar-se, mas sempre com o cuidado de não perder-se definitivamente. Esta é a diferença da esquizofrenia como doença (hospitalizada) e esquizofrenia como modo de vida (militante).

Foucault disse certa vez que o “Anti-Édipo” era para ele como um tratado de ética. Sendo assim, entendemos que este livro é muito mais que um punhado de conceitos, ou um manifesto político, é antes um modo de vida, uma possibilidade de existência.


“O que nos interessa é o que não é interessante à psicanálise: o que são as tuas máquinas desejantes? Qual é a tua maneira de delirar o campo social? A unidade de nosso livro está em que as insuficiências da psicanálise nos parecem estar ligadas tanto a sua profunda pertença à sociedade capitalista quanto ao seu desconhecimento do fundo esquizofrênico” – Deleuze, Conversações
deleuzeyguattari

Fonte: Razão Inadequada

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