setembro 08, 2014

"Sus! é o SUS", por Fernando da Mota Lima

PICICA: "Paciente no Brasil, notadamente do SUS, existe para isso mesmo: para ser paciente."

Sus! é o SUS 

 

Paciente no Brasil, notadamente do SUS, existe para isso mesmo: para ser paciente.

O político ou publicitário que rebatizou o sistema de saúde brasileiro é por certo um erudito. O que não sei é se tramou a sigla sombria movido pela ironia sádica ou a compaixão cristã, uma das virtudes brasileiras que Gilberto Freyre louvava num dos seus surtos líricos. Como não sou erudito (tendo bem mais para o erro dito), vou logo desmanchando o mistério diante do leitor intrigado ao ler o título desta crônica. Descobri há muitos anos, quando era leitor apaixonado da poesia de Manuel Bandeira, esta interjeição intrigante: sus! Ele a enfiou num dos seus poemas, cujo título já não lembro. Fui do poema ao dicionário e assim fiquei sabendo que sus quer dizer eia, ânimo, coragem!

Os azares da vida e da idade tangeram-me há dois dias para o posto médico do bairro. Parado diante da fachada aterrorizante – recoberta por sujeira, buracos e ferrugem – li num arrepio a sigla do Sistema Único de Saúde: SUS. A interjeição há tanto esquecida, eco do poema de Manuel Bandeira, repicou na minha memória. Armando-me de coragem, sobretudo resignação, subi lentamente a escada que conduz ao primeiro andar. Sus!, segui subindo os degraus toscos enquanto suava escada acima. Do térreo vazavam, através de uma porta, o ruído e a poeira de uma reforma. Onde quer que eu ande constato esta verdade dolorosa: vivemos arruinando a civilização que fomos incapazes de construir. Chego afinal à sala de espera e deparo o quadro previsível: gente pobre e feia, gente resignada e sofrida, gente vergada ao peso da opressão social que a castiga do berço ao túmulo. Enquanto uns tagarelam na sala quente e desconfortável, outros quedam desanimados, como que imersos num pesado torpor. A única coisa que me surpreendeu foi o fato de não divisar um aparelho de TV pendurado na parede ou preso a um cabo suspenso do teto. Sus!

Minha reação habitual é murar-me no meu egoísmo humilhado. Mas logo me lembrei de que o remédio mais eficaz para nossa dor egoísta é a dor alheia. Assim, virei-me para as pacientes mais próximas e comecei a entabular conversa. Logo fiquei sabendo que a Dra. Vera falta com freqüência. Como é de praxe nos consultórios, públicos ou privados, ninguém dá satisfação ao paciente, que no Brasil justifica o substantivo. Paciente no Brasil, notadamente do SUS, existe para isso mesmo: para ser paciente, apanhar calado, esperar sentado ou de pé exposto à vontade e aos caprichos médicos com a resignação fatalista de boi de matadouro. A Dra. Vera falta há três semanas e há três semanas dona Maria vem, espera e depois faz o caminho de volta resignada a voltar na próxima semana amparada pela esperança de que na próxima vez a Dra. Vera virá aliviá-la das suas dores. Sus!

Se eu fosse psiquiatra do SUS, prescreveria para meus pacientes este remédio milagroso: se quer esquecer sua desgraça, abra os ouvidos para ouvir a desgraça alheia. Não digo que se compadeça dela, já que nosso egoísmo é cada vez mais espesso e rugoso; basta ouvi-la com atenção suficiente para esquecer a própria. É um santo remédio e não custa nada. De quebra, o paciente infeliz que verte sua dor no nosso ouvido atento fala de si comovido com a nossa atenção. Quem não quer e precisa ser ouvido, ainda mais na adversidade? Abra os ouvidos para a dor do paciente ao lado e logo você esquecerá a sua. Foi o que fiz e assim perdi noção do tempo escoado naquele ambiente desolador.

Quando dei por mim, sentindo dor na minha coluna egoísta, foi porque gritaram meu nome do corredor. A Dra. Virgínia atendeu-me muito atenciosamente. Nada fez por mim, nem o SUS permitiria que fizesse, mas me atendeu com atenção e respeito. Preencheu um formulário informando-me de que estava me encaminhando a um oftalmologista, pois nada poderia fazer para desembaraçar os trâmites do meu processo. É claro que antes do oftalmologista virá uma nova fila cedo da manhã para obter uma ficha, se evidentemente muitos outros pacientes não se anteciparem ao meu relógio. Depois disso, outras horas de espera, outros transtornos previstos e imprevistos. Encurtando a consulta, como felizmente tenho o privilégio de trocar a burocracia fria e sórdida do SUS pelo dinheiro que gastarei comprando tudo no mercado, despedi-me da Dra. Virgínia com um buraco no bolso, mas muitas horas de vida e indignação poupadas. Sus! é preciso ser muito pobre ou demasiado avarento para obter remédio caro no SUS, ou qualquer outro serviço. Sus!

Quem diz que o Brasil é uma democracia social, ou que Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff (arengas ideológicas à parte) elevaram-no a esta invejável condição, é inconsciente, iludido ou beneficiário irresponsável do sistema de dominação há séculos instaurado neste cativeiro tropical. Quem louva nossa suposta democracia social é quem nunca precisa mourejar dependendo de transporte coletivo, depositar sua segurança nas nossas instituições públicas, educar-se nas nossas escolas públicas, adoecer assistido pelo SUS. Sus! pois a servidão social continua viva e poderosa neste país formado sob os tacões do Estado patrimonial, do colonialismo e da escravidão.

Fernando da Mota Lima

 
 Foi professor de sociologia na Universidade Federal de Pernambuco.


Fonte: Amálgama

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