outubro 10, 2012

"Paes e o lulismo", por Bruno Cava

PICICA: "[...] O lulismo tem mesmo mil máscaras. Algumas delas atuam numa farsa que pretende repetir a história.

Nesse palco, o texto do Alexandre acerta, ao dizer que não adianta culpar os pobres por sua escolha. Como se não entendessem de política, fossem desinformados, ou vendidos, e agora terão o prefeito que merecem. Ai, não sabem o que fazem, esses simplórios, manipulados pela TV ou teleguiados pelas igrejas… Bruto preconceito. Nenhuma composição social vota com mais sabedoria do que os pobres. São capazes de verdade, já dizia Maquiavel. Eles sabem muito bem o que significa eleger o Lula e não o Alckmin. O que significa continuidade de uma política. Assistiram durante gerações aos ricos e à “velha classe média” defendendo seus umbigos e votando exclusivamente por seus interesses, muito embora espertamente costumem universalizá-los como “interesse geral” e “bem maior”. Ouviram durante muito tempo a sua condição violentamente desigual ser justificada como falta de “mérito e esforço”, e sentiram o gosto amargo da condescendência de uma esquerda elitista, que só sabia lhes oferecer “educação e emprego” subalterno.

Finalmente começaram a mudar a própria condição, graças às lutas, às mobilizações e ao próprio voto feito ferramenta, e alguns hoje vêm culpá-los por pensar somente em si e não ser “radicais” o suficiente. Os pobres não têm escrúpulos em usar as armas de seus senhores. Eles vão agarrar o que vier e firmeza, aproveitarão ao máximo. Hoje não estão tão preocupados em fermentar ou distribuir o bolo, porque chegou a hora em que eles podem comê-lo pela primeira vez. Então eles comem.

Não é por aí que se deve enfrentar a questão." 

Paes e o lulismo
Tive a felicidade de ler a primeira reflexão inteligente sobre o resultado das eleições para a prefeitura do Rio. Foi o artigo de Alexandre Mendes ao site da Universidade Nômade, publicado hoje. Este texto segue-lhe o rastro.



Aqui no Rio, Eduardo Paes se reelegeu com 65 % dos votos válidos, mais de 2 milhões, contra 28% de Marcelo Freixo, o único candidato que poderia ameaçá-lo. Como mostra o mapa eleitoral, Paes ganhou em 95 das 96 zonas, perdendo apenas em Laranjeiras/Cosme Velho. Embora tenha ganhado nos bairros mais ricos e nos mais pobres, o quadro mostra claramente uma votação mais forte entre os pobres. Em Acari, Bangu ou Pavuna, por exemplo, ele atingiu mais de 70% dos votos. A distribuição geográfica dos votos de Paes é similar à das eleições de Lula e Dilma: forte incidência em regiões habitadas pelas categorias de renda C, D e E, seguida de uma curva decrescente em direção às A e B. O inverso, para Freixo.

Paes é o mesmo que está à frente de uma política higienizadora que remove os pobres de favelas, quilombos, ocupações urbanas, ruas e praças. No “Um Rio” de Paes, não há lugar para todo um rio negro de corpos e histórias singulares, — senão em abrigos de recolhimento forçado, prisões, internatos, valas para indigentes, ou então depositados bem longe, em moradias populares que mais parecem sombrios paneláks do socialismo real. Não que, nesta linda cidade insubmissa, tenha sido diferente noutros tempos, mas nunca antes a violência racial e o ódio contra pobre foram institucionalizados segundo um consenso tão granítico. Tão despudorado que o controle é exercido sob a legenda “Choque de Ordem”. Isso num país onde há menos de 40 anos a ditadura eletrocutava seus dissidentes.

O grande xis da questão é que esse mesmíssimo Paes é uma das faces do lulismo. O lulismo cujas políticas sociais massificadas efetivamente transformaram a sociedade brasileira. O lulismo cujo produto mais sintomático, — ao mesmo tempo mais conhecido e mais elusivo, — é essa nova figura sem nome: a dita “classe C”, a “nova classe média”, um contingente de mais de 100 milhões de pessoas com um acesso inédito à renda e consumo. O que forma a sua própria opinião e decide as eleições. Paes fez sua leitura particular do lulismo e emulou a relação de amor com que Lula, como animal político, nunca deixou de se conduzir diante dessa classe sem nome. O lulismo tem mesmo mil máscaras. Algumas delas atuam numa farsa que pretende repetir a história.

Nesse palco, o texto do Alexandre acerta, ao dizer que não adianta culpar os pobres por sua escolha. Como se não entendessem de política, fossem desinformados, ou vendidos, e agora terão o prefeito que merecem. Ai, não sabem o que fazem, esses simplórios, manipulados pela TV ou teleguiados pelas igrejas… Bruto preconceito. Nenhuma composição social vota com mais sabedoria do que os pobres. São capazes de verdade, já dizia Maquiavel. Eles sabem muito bem o que significa eleger o Lula e não o Alckmin. O que significa continuidade de uma política. Assistiram durante gerações aos ricos e à “velha classe média” defendendo seus umbigos e votando exclusivamente por seus interesses, muito embora espertamente costumem universalizá-los como “interesse geral” e “bem maior”. Ouviram durante muito tempo a sua condição violentamente desigual ser justificada como falta de “mérito e esforço”, e sentiram o gosto amargo da condescendência de uma esquerda elitista, que só sabia lhes oferecer “educação e emprego” subalterno.

Finalmente começaram a mudar a própria condição, graças às lutas, às mobilizações e ao próprio voto feito ferramenta, e alguns hoje vêm culpá-los por pensar somente em si e não ser “radicais” o suficiente. Os pobres não têm escrúpulos em usar as armas de seus senhores. Eles vão agarrar o que vier e firmeza, aproveitarão ao máximo. Hoje não estão tão preocupados em fermentar ou distribuir o bolo, porque chegou a hora em que eles podem comê-lo pela primeira vez. Então eles comem.

Não é por aí que se deve enfrentar a questão.

Os pobres não votam por propostas ou abstrações. Não vão eleger o mais socialista, o mais de esquerda. Socialismo para eles também é o coletivista “Minha Casa, Minha Vida”. É o trator passando por cima de suas casas em nome do interesse geral. É o “Choque de Ordem” garantindo a ordem pública na calçada, contra camelô, morador de rua, mesa de boteco ou negros em geral à toa “dando chance”. Os pobres votam por processos políticos em que podem inscrever seus afetos e desejos, e assim construir um projeto de vida, comunidade e cidade. Sem segredo, isso se chama materialismo.

A questão a se pensar está na outra face do lulismo. A face revolucionária. A máscara do pobre que se obstina e passa a afirmar a própria condição, a despeito das constrições e dos sofrimentos. O paradoxo do pobre que não é só carência, mas potência. Somente uma visão catastrófica poderia nivelar as políticas sociais como novas estratégias de sujeição e controle. Porque elas também geram contraefeitos de empoderamento, que no decorrer do tempo condensam como uma força que não pode ser contornada. Se essas políticas sociais procedem através de estruturas antidemocráticas (o estado, a milícia/máfia, a igreja, a grande imprensa, o mercado, o sistema representativo como um todo),  isto não significa que não seja possível um efeito de reapropriação dessas mesmas estruturas, transformando-as. Quanto mais se alargam os horizontes de produtividade, desejo e mobilização dos pobres, mais eles reúnem condições para se reapropriar do processo como um todo. Quer formulando alternativas de baixo para cima, potencializando os elementos de sua autonomia constitutiva. Quer contestando as próprias mediações e estruturas, que os separam do gozo direto da riqueza social e do poder de agir, por eles próprios criados e mantidos. Não é filosofia da história, é luta de classe.

Se a campanha do Freixo foi um sucesso como inovação, — o que necessariamente significa ir além do PSOL e do esquerdismo, — esteve em fortalecer uma rede de resistências e criatividade que já acontece, enredá-la com mais sujeitos sociais, com mais pautas alternativas ao “Um Rio” desigual, integrado e ordeiramente violento do Paes. O Rio insubmisso de tantos corpos e histórias ainda vive. Essa alternativa em marcha ainda pode (e precisa) adensar muito, ganhar capilaridade por territórios adentro, aderir e ser aderida a outras sensibilidades, formas de organizar, pensar, agir politicamente. Precisa sobretudo se entender com a face potente do lulismo, essa máscara que o Paes não sabe, não quer, nem poderia vestir. Os 99% só podem ser exprimidos como antagonismo ao 1%, segundo uma organização política aberta à diferença radical de quem luta, reexiste e cria a cidade dos livres. Esta, a tarefa de formiguinha corajosa para o dia a dia, para além das campanhas eleitorais.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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