outubro 20, 2012

"Sessão de Terapia: Campo e Contracampo", por Renato Tardivo

PICICA: "[...] é preciso que se leve em conta a especificidade da linguagem, isto é, trata-se de um produto para televisão que busca capturar o espectador pela via do entretenimento. Essa especificidade, óbvia na aparência, serve para que o espectador não seja levado a crer que as sessões de terapia, tal como mostradas na série, sejam cópias fieis de sessões de terapia reais. Nem todas (se tomadas isoladamente, talvez uma pequena parte) as sessões de terapia de verdade são interessantes (entenda-se “prazerosas de assistir”) como as da série. Na vida real, não há um roteiro prévio a ser filmado: o roteiro se desenha ao longo do processo. Daí, do meu ponto de vista, o que menos importa é tecer considerações sobre a verossimilhança das sessões da série."

Sessão de Terapia: Campo e Contracampo

A série desmistifica a noção ultrapassada e reducionista do terapeuta enquanto uma tela em branco na qual os pacientes projetam suas angústias, medos, sofrimentos etc.

por Renato Tardivo (19/10/2012)
em Televisão



O sucesso mundial Bi Tuful, série criada pelo israelense Hagai Levi (In Treatment, nos EUA, em sua versão mais conhecida), ganhou produção no Brasil, com direção de Selton Mello. Como na versão original, a série de televisão mostra o terapeuta, Theo (Zécarlos Machado) em quatro atendimentos por semana (um em cada dia) e, às sextas-feiras, é Theo quem se encontra com a terapeuta Dora (Selma Egrei).

Inicialmente, é preciso que se leve em conta a especificidade da linguagem, isto é, trata-se de um produto para televisão que busca capturar o espectador pela via do entretenimento. Essa especificidade, óbvia na aparência, serve para que o espectador não seja levado a crer que as sessões de terapia, tal como mostradas na série, sejam cópias fieis de sessões de terapia reais. Nem todas (se tomadas isoladamente, talvez uma pequena parte) as sessões de terapia de verdade são interessantes (entenda-se “prazerosas de assistir”) como as da série. Na vida real, não há um roteiro prévio a ser filmado: o roteiro se desenha ao longo do processo. Daí, do meu ponto de vista, o que menos importa é tecer considerações sobre a verossimilhança das sessões da série. O contexto da psicologia – ou, mais especificamente, da psicanálise, se considerarmos a maior parte da conduta do terapeuta e os livros captados vez ou outra pela câmara: Freud, Lacan, Roudinesco – talvez funcione mais como o continente, isto é, uma espécie de pano de fundo para que conteúdos (via de regra atrelados ao sofrimento, no entanto, como disse, com vistas ao entretenimento) possam aflorar.

Esse cuidado faz justiça à própria série, que deve ser avaliada dentro da sua linguagem, bem como à dinâmica que se estabelece no contexto complexo de uma psicoterapia; dinâmica sobre a qual o público leigo não possui referências bastantes para opinar (mais ou menos como não se esperaria um parecer técnico do espectador leigo em uma série, por exemplo, que abordasse o ofício de um engenheiro).

O consultório do terapeuta – o que no Brasil não é muito comum – é um dos cômodos de sua própria casa: uma ampla sala de estar com sofás, poltronas, divãs, mesa com computador, estantes para livros. Os pacientes, no entanto, não circulam pelas demais áreas da casa. São eles: Júlia (Maria Fernanda Cândido), Breno (Sérgio Guizé), Nina (a estreante Bianca Muller) e o casal João e Ana (André Frateschi e Mariana Lima). Além do próprio Theo, que, às sextas, se senta no sofá de Dora, cujo consultório segue o mesmo conceito do dele, embora mais suntuoso e sofisticado.

A propósito dos encontros com Dora, há certa confusão na configuração da relação entre eles – trata-se de uma conversa entre amigos/colegas, de supervisão ou de análise? Theo fazia supervisão com Dora – situação em que o terapeuta recorre a um colega, via de regra com mais experiência, a fim de obter um outro olhar com vistas a auxiliá-lo na condução de um caso clínico. No entanto, cerca de 8 anos atrás, após um rompimento traumático, ele deixa de procurá-la. Ocorre que, na quinta-feira da primeira semana da série, após sessões difíceis em seu consultório, Theo sente-se impelido a procurar Dora novamente.

A confusão sobre a relação entre eles já se revela no ato falho inicial de Theo, que, ao entrar no consultório de Dora, senta-se na poltrona da terapeuta. Após ser colocado no seu lugar, por meio da intervenção de Dora, a conversa entre eles aponta para aquilo que (como sabemos) será o espaço de análise para o próprio terapeuta – levado por questões que experimenta com seus pacientes mas que, inevitavelmente, os afetam também em sua humanidade. Aliás, essa inversão talvez seja o aspecto mais interessante da série: o protagonista é o terapeuta; não os clientes. Em reuniões clínicas, relatos de caso, supervisões etc., conquanto a humanidade do terapeuta esteja sempre presente (também enquanto protagonista do processo), toma-se devidamente uma série de cuidados para não se avançar o sinal e tocar em questões que devem ser trabalhadas pelo analista em sua própria análise.

Na série, no entanto, a câmara invade o setting; mostra o terapeuta momentos antes de receber o cliente (por exemplo, desmascarando a farsa do filho de 8 anos, que simulava uma febre para faltar à aula) e momentos após o término das sessões. E, nessa medida, a série desmistifica a noção ultrapassada e reducionista do terapeuta enquanto uma tela em branco na qual os pacientes projetam suas angústias, medos, sofrimentos etc. No âmbito da psicanálise, o analista precisa manter certa distância entre sua vida pessoal e os seus clientes a fim de poder ocupar os mais diversos lugares diante dos pacientes na dinâmica da transferência, isto é, para que, sem se fixar em apenas um lugar, possa acompanhar os clientes nos mais variados aspectos e relações a partir dos quais eles (clientes) se constituem. Isso não significa, no entanto – e muito ao contrário –, que os aspectos obscuros do próprio terapeuta não façam parte do jogo. Daí a importância da supervisão e análise pessoal, ou seja, o cuidado de si (terapeuta) é condição para o cuidado do outro (paciente).

E a série, ao colocar a câmara no consultório do terapeuta e mostrá-lo em diferentes situações clínicas, vai abrindo frestas em sua rigidez profissional, ao modo de um vouyer que se deleita com a sua vida pessoal, e o acompanha em seu próprio sofrimento. Com efeito, se a dinâmica das sessões nem sempre é verossímil, se as atuações, tomadas do ponto de vista documental, deixam a desejar (Theo, por vezes, é inexpressivo; aqui ou ali há algum excesso por parte dos pacientes, por exemplo, o amor de transferência que irrompe na sessão com Júlia, paciente de Theo há um ano), do ponto de vista da dramaturgia as atuações funcionam bem. A sobriedade do terapeuta (gestos, fala, figurino) e da direção de Selton Mello contribui para que a imagem de Theo se construa na relação entre os fragmentos trabalhados com os clientes e em sua análise; fragmentos, aliás, muito bem executados pelo trabalho de câmara e pela edição, sobretudo nas possibilidades da relação campo e contracampo.

E, neste aspecto, campo e contracampo talvez se encontrem: ao problematizar a imagem segundo a qual o terapeuta é aquele que tudo sabe, o espectador tem a chance de habitar o seu interior e, por meio da fruição, constatar que o cuidador é também um ser faltante. Para o público especializado, é igualmente importante quebrar a crença da onipotência do analista e/ou da linha teórica que ele segue; do contrário, em vez de cuidado, adoeceriam ambos: campo e contracampo.

Renato Tardivo


Doutorando em Psicologia Social da Arte pela USP, psicanalista e escritor. Publicou em 2010 o livro de contos Do avesso, e em 2012, Porvir que vem antes de tudo: Literatura e cinema em Lavoura Arcaica.


Fonte: Amálgama

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