outubro 26, 2012

"Occupy, o partido e a revolução", por Bruno Cava

PICICA: "Pra começar, a autora critica a tendência procedimentalista, isto é, a percepção de que bastaria fundar uma ágora pública em que todos são iguais e livres, para a democracia direta florescer por si só. O caso é assegurar o funcionamento da autogestão, a existência de uma assembléia, e decidir sobre situações concretas. Isso, para ela, não passa da miniaturização da própria lógica liberal, onde a vontade individual está acima da coletiva, e a materialidade da desigualdade se dissolve nas abstrações dos processos deliberativos. Isso se ensina nas faculdades de direito.Essa lógica não reconhece sequer como o próprio indivíduo é um produto, tensionado social e politicamente, inclusive corporalmente, por divisões internas de gênero, raça, origem, sexualidade, condição física etc. Divisões que reaparecem na praça e nas assembléias, e que não devem ser colocadas em segundo plano a título de convergência e consenso.

A comunicação humana, aliás, não detém nenhuma tendência natural a conduzir ao consenso: pode também levar a mais dissenso, a tendências antissociais e mesmo a reprodução das mesmas divisões e assimetrias que sustentam a ordem capitalista em primeiro lugar. O provérbio “comunicando a gente se entende” vale igualmente no sentido inverso: e também a gente se desentende. O processo político é mais complexo, e bem mais cortado diagonalmente pelas forças sociais, do que fazem crer alguns procedimentalistas ou consensualistas." 

Occupy, o partido e a revolução
Resenha de DEAN, Jodi. The communist horizon. NY: 2012, Verso.



Jodi participou da Occupy Wall Street em Nova Iorque. Militante e professora de teoria política em Colúmbia, seu blogue foi um espaço para uma constante reflexão insider a esse movimento de grande repercussão, que já mudou o vocabulário político dos Estados Unidos. Da primavera árabe de revoluções populares ao verão europeu de acampadas e mobilizações maciças, até chegar no “outono quente” do Occupy norte-americano, com suas centenas de ocupações de praças e parques, passeatas, protestos, greves, bloqueios de portos — apenas algumas dentre as ações coletivas que foram brutalmente reprimidas pela polícia e outros aparelhos do estado, num país onde nas ruas a democracia é proibida.
No momento da pior crise desde o crack de 1929, quando o governo dos EUA, — inclusive com Obama e o Partido Democrata na Casa Branca, — resolveu salvar os bancos e não as pessoas, ele demonstrou além de dúvida razoável como o estado e o capital, o público e o privado não passam de duas faces da mesma moeda, a mesma moeda viciada que dá sempre a favor do 1% de privilegiados. A desigualdade é total onde quer que se olhe. Alguns criticaram o slogan como divisionista, mas ninguém teve a descaradez de negar que essa divisão, de fato, procede. O inimigo piscou então é hora de sacar. A pauta só podia ser mesmo pelo confronto, para converter as indignações dispersas e espontâneas em antagonismo direto.

A professora e blogueira não usa meias palavras. O Occupy foi e é um movimento anticapitalista. O slogan We are the 99% resgatou a luta de classe para a arena política norte-americana. Ele quer dizer: nós, os 99%, contra o 1%. Nós, os despossuídos, precários e ignorados versus os ricos; é o “povo que resta” levantando-se contra os usurpadores capitalistas. O horizonte é uma alternativa não-capitalista: um comunismo, um novo comunismo que nada tem a ver com o socialismo real da URSS, China ou Coréia do Norte.

Portanto, nada de apelos prafrentex para mudança de mentalidade ou estilo de vida. Nada de chamadas para atos efêmeros e facilmente reassimiláveis pela democracia representativa,  e que acabam servindo apenas para desanuviar a má consciência pequeno-burguesa e preencher o noticiário esquerda-bacaninha. Ademais, o Occupy norte-americano não se resumiu a uma demanda por maior inclusão e participação na vida política. Os ativistas não estão pleiteando direitos, não se consideram “excluídos”, aspirando por uma migalha maior da mesa farta do 1%. Nunca foi uma luta por inclusão social. É para mudar a estrutura social, sua “inclusão” intraduzível significaria nada menos que o fim do capitalismo, ou em termos marxistas: “o movimento real pela abolição do estado de coisas”.

O ponto está mesmo num princípio da divisão, do dissenso radical e irreconciliável diante da sociedade que aí está. É contra o estado e a sociedade civil que lhe serve de espelho. Nesse sentido, o Occupy diverge do mote da campanha eleitoral de Obama (e retoma a verve mais conflitiva das ocupações de Wisconsin).  Na verdade, coloca-se na contramão de Obama. Na campanha presidencial dos democratas, o bordão Yes We Can visava a cimentar uma nova união, um novo pacto americano, o que passa longe da crua realidade sob a crise do mundo capitalista, o nosso.

O livro de Jodi não é exclusivamente apologético. Não se exime de abordar temas polêmicos, enfrentar impasses e oferecer uma avaliação parcial e parcializante de como as coisas efetivamente funcionaram no Occupy Wall Street.

Pra começar, a autora critica a tendência procedimentalista, isto é, a percepção de que bastaria fundar uma ágora pública em que todos são iguais e livres, para a democracia direta florescer por si só. O caso é assegurar o funcionamento da autogestão, a existência de uma assembléia, e decidir sobre situações concretas. Isso, para ela, não passa da miniaturização da própria lógica liberal, onde a vontade individual está acima da coletiva, e a materialidade da desigualdade se dissolve nas abstrações dos processos deliberativos. Isso se ensina nas faculdades de direito.Essa lógica não reconhece sequer como o próprio indivíduo é um produto, tensionado social e politicamente, inclusive corporalmente, por divisões internas de gênero, raça, origem, sexualidade, condição física etc. Divisões que reaparecem na praça e nas assembléias, e que não devem ser colocadas em segundo plano a título de convergência e consenso.

A comunicação humana, aliás, não detém nenhuma tendência natural a conduzir ao consenso: pode também levar a mais dissenso, a tendências antissociais e mesmo a reprodução das mesmas divisões e assimetrias que sustentam a ordem capitalista em primeiro lugar. O provérbio “comunicando a gente se entende” vale igualmente no sentido inverso: e também a gente se desentende. O processo político é mais complexo, e bem mais cortado diagonalmente pelas forças sociais, do que fazem crer alguns procedimentalistas ou consensualistas.

Outro impasse verificado está no princípio da ausência de lideranças. Ela relata que, num primeiro momento, com efeito, esse princípio favoreceu um sentido de empoderamento a quem nunca havia se mobilizado politicamente à vera. Porém, no decurso das semanas, acabou incitando uma paranoia irrespirável nos ambientes do movimento, multiplicando acusações de cúpulas ocultas, consensos pressupostos e lideranças ilegítimas. Travou a pauta política. A autora defende que mais acertado seria simplesmente reconhecer a primazia de algumas pessoas na organização das ações e ocupas, simultaneamente a mecanismos de transparência, rodízio e avocação (“recall”) para os postos organizacionais, nos casos de má condução dos assuntos.

E, pace anarquistas, ela não hesita em chamar de vanguarda os grupos mais dedicados, disciplinados, e mesmo totalmente engajados em seu tempo vital, no movimento Occupy. Sem eles, o movimento teria se desmanchado no ar nos primeiros enfrentamentos e desafios. A vanguarda, diz ela, foi legítima porque assentada numa percepção muito ampla e profunda de descrença e falência do sistema político-econômico. A vanguarda canalizou essa dissensão na base do Occupy; sua subjetividade repercute, dá forma e potencializa a indignação popular. A argumentação em tom leninista vai mais longe: não é possível converter os conflitos latentes da sociedade em antagonismo direto senão por meio desse tipo de disciplina, paciência, dedicação, certa “verticalização e diagonalização”, e envolvimento árduo com um movimento revolucionário. Novamente, ela não poupa palavras: a vanguarda é necessária para dar direção política.

Pela própria dificuldade, por sinal indescritível, em suportar, individual e coletivamente, uma acampada tão complexa e precária, contra a polícia, o comércio, o frio, as brigas, o cansaço, a prefeitura, o sono, o desencanto à espreita, os rostos consternados dos jornalistas e a severidade do concreto de cimento Portland; o Occupy foi muito além do que ela chama de ativismo do clique. Jodi agora está criticando o “clicktivismo”. Hoje, tem-se a impressão que só precisamos de um mouse e algum tempinho entre as atividades “realmente” fundamentais da vida: o trabalho, a família, o lazer. Apóio isto ou aquilo, mas não me mexo da poltrona. Você passa os dias nas redes sociais tuitando e curtindo e compartilhando, não sai de sua zona de conforto, talvez sequer do próprio apartamento, e ainda assim se julga um militante de 3º dan. Há aí uma espécie de transe impotente, um aprisionamento da consciência, no ciclo 24-7 de postagens, comentários e compartilhamentos indignados da verdadeira esquerda. Para Jodi, o Occupy demonstra mais uma vez como a organização política tem um tempo próprio além dos frenesis vazios do “capitalismo comunicativo”, o “tempo longo” da atividade militante de base.

A crítica da economia política dela vai também nessa direção. A proliferação desenfreada de informação e cliques apenas reproduz a mesma tentativa de captura total de nossa atenção e tempo de vida pela exibição ininterrupta de imagens, marcas, sensações e produtos, — ante os quais somos instados a opinar, curtir, divulgar, comprar, nos identificar. Dessa forma, o “capitalismo comunicativo” pretende colonizar o desejo da população em todos os momentos. Captura-o em loops infinitos de pulsões insaciáveis, um circuito fechado e autorreferente, remetendo-o sempre para mais além do aqui e agora, nesse tempo dissolvido dos fluxos de imagem, capital simbólico e publicidade. Por isso, ela não concorda que o excesso em si mesmo seja constitutivo de comunismo, que o desejo possa libertar pela própria força interna, ou que a proliferação de singularidades e capacidades produtivas tenha uma potência revolucionária de per si. Existe escape, claro, aqui nenhum azo para catastrofismos, mas essa linha de fuga depende da decisão, do princípio da divisão colocado em marcha por um movimento real. Não há, para Jodi, verdadeiro antagonismo sem uma decisão resoluta e persistida de ruptura, mantida pela organização política. Se, na tradição marxista, — crítica imanente do real que é, — o antagonismo não pode descolar-se do processo produtivo de que ele irrompe; por outro lado, tampouco pode perder de vista a manutenção e fortalecimento de uma vontade política de fazer a luta de classe no “tempo longo” da organização.

Certamente, o ponto mais polêmico está no capítulo final, Ocupação e o Partido (meu primeiro impulso foi ler …e a Festa, traduzindo errado “Party”…). A professora recusa a ideia de que o movimento Occupy seja contra qualquer forma de representação. Diz que, primeiro de tudo, isso simplesmente não corresponde à realidade. Uma coisa é contestar a democracia representativa e o jogo dos partidos existentes, como inteiramente funcional ao mercado capitalista. Outra é afirmar a irrepresentabilidade do movimento, — que ninguém pode representar qualquer outro, ou que ninguém pode representar o movimento como um todo, em circunstância alguma, quase sob pena de alta traição. Para ela, o princípio erigido a dogma não só reforça o supracitado problema da paranoia sufocante, como também contorna o fato que o Occupy se autorrepresentou desde o dia um, e continua se fazendo representar por participantes e mídias. Na produção de informação em geral, nos streamings difundidos pelo mundo, mediante perfis no Facebook ou via tuíter, ou ainda através de declarações nos sites, com manifestos, convocatórias, moções, enfim, mesmo quando institui o “não nos representa” como princípio, — tudo isso não deixa de representar certa vontade geral do movimento, sua imagem e conteúdo, numa vontade que inspira a vinculação e lhe informa uma maneira de agir e se organizar. Estivemos mesmo além da representação como um todo?

É nesse capítulo final que Jodi Dean propõe, diferindo pontualmente de filósofos como Antonio Negri ou Alain Badiou, pela transformação do Occupy (e outras dinâmicas similares) em um partido de novo tipo. O evento singular do Occupy, como recomposição da luta anticapitalista e do horizonte comunista, já está formulando uma nova forma de representação, um processo que pode ser aprofundado. Decerto não, ainda outro partido integrado ao jogo eleitoral da democracia representativa, essa sim, rejeitada de a a pelo movimento. Uma que permita articular a ação coletiva e dizer Nós”, numa positividade comum. À repetição do idêntico vazio pelo “capitalismo comunicativo”, uma organização vanguardista capaz de enunciar o que significa a luta de classe hoje, e como fazer diferente, escapar e confrontar. Uma repetição da divisão fundamental entre capitalismo e comunismo, duas forças heterogêneas e inconciliáveis. E, mais importante, dar duração e prolongar essa divisão em estrita correspondência à força produtiva e popular que lhe pode conferir as bases materiais: o povo que resta. É sem dúvida mais um retorno a Lênin e Marx.

Provocação e ousadia consequentes, ou entendeu tudo errado? Um livro a ser discutido por quem se movimenta.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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