junho 17, 2014

"Quando as greves selvagens se juntam ao #NãoVaiTerCopa", por Ricardo Gomes

PICICA: "[...] a greve demonstra de uma vez por todas que o público não é mais o oposto do privado, ou melhor, eles são opostos sim, mas não um ao outro. Eles fazem parte do movimento abstrato que tem sua síntese no Estado. Síntese que permeia a disseminação real do capital. Contra isso, nada melhor do que algo ‘para além disso’, algo que já está no meio de uma processo outro, de luta material e produção livre. O amor e a alegria da produção das singularidades que cola diversas iniciativas e permite uma tática transversal e eficiente contra os poderes, além de garantir uma ‘multidão’ radicalmente democrática, uma ‘multidão’ que faz jus a este conceito. Assim, as greves, as novas iniciativas dentro das greves e os protestos contra gastos da copa se juntam, contra e fora dos partidos e seus sistemas burocratizados, desencadeados pelas relações do capital e disseminadas por todo campo social e, por conta disso, e não por uma essência a ser mais uma vez apresentada no sindicalismo ou em qualquer outro lugar, estas lutas conseguem manter o clico de lutas, deslocamentos e experimentações políticas que explodiram em junho de 2013."

Quando as greves selvagens se juntam ao #NãoVaiTerCopa

Foto de Lu Ornellas.
Foto de Lu Ornellas.

Por Ricardo Gomes
As greves estouraram e seguem tentando desestruturar as alianças e acordos que os poderes públicos e privados desenvolvem no intuito de manter as regras gerais para o bom funcionamento do capital. Há um crescimento das greves, que no ano de 2002 apresentou o menor número desde 19961, assim como há um salto, dentro das greves, próprio de quem experimentou as intensidades políticas de Junho de 2013. Portanto procuramos identificar no aumento das greves não o suposto desvelamento de uma essência revolucionária na quantidade mas sim, procuramos, dentro dos nossos limites, fazer uma investigação material sobre as novidades destas greves selvagens e sua relevante efetividade.

Os metroviários de São Paulo denunciaram falhas graves no funcionamento em várias linhas do metrô2 e ao mesmo tempo (e é fundamental que seja ao mesmo tempo, pois retira da pauta da corrupção sua generalidade impotente) lembraram dos envolvidos em escândalos de licitação dos trens e concessões publicas, tanto do lado do Estado quanto do lado das empresas3. Os garis do Rio de Janeiro voltam às ruas depois de uma greve vitoriosa porque os poderes públicos, em parceria com os sindicato dos trabalhadores de limpeza urbana, não querem cumprir as demandas pela quais lutavam4. Os professores, no meio da greve, praticam uma ação direta contra a privatização da educação encabeçada pelo Estado4. Invadem uma sala de aula em que os novos diretores estão sendo apresentados e treinados no projeto de privatização do ensino. Os conteúdos e as formas, precárias mas afetivas, de se desdobrar o conhecimento serão varridas  pelo bem da produtividade. A escola participando da disseminação da fábrica na sociedade. Cabe ainda lembrar, no meio destes exemplos de greves selvagens contra os poderes constituídos, que os metroviários de São Paulo deram ao governador a oportunidade de que não houvesse paralisação das linhas, bastava o governador concordar com a liberação da catraca para os usuários. Mas o governador não podia barrar a exploração e o lucro das empresas, mesmo sendo um serviço coletivo essencial, ele não concordou5. Os metroviários seguiram em greve até que a justiça mais uma vez considerou a greve como ilegal e anunciou a demissão de 60 funcionários, os supostos líderes da greve. Os trabalhadores recorreram ao governo federal, demonstrando que esta greve era legítima e legal e este não lhe deu nenhum apoio.  Para qualificar melhor estas greves é preciso dizer que elas se desenvolvem contra os sindicatos e os aliados partidários mais tradicionais. Assim foi na greve dos agentes de limpeza pública, dos rodoviários e mesmo dentro SEPE, um sindicato combativo, houve um confronto intenso contra a direção do sindicato para viabilizar a greve e sua continuidade. Isto evidencia a burocratização e as alianças políticas sob as quais estes sindicatos se encontram. Porem não criticaremos um aparelhamento, porque o sindicato as vezes é peça e as vezes maquina, ou seja, de qualquer forma, participa de uma maquinação política onde aparelhos complexos atuam e não simplesmente e passivamente sofrem um aparelhamento. Os desejos são mais fortes, inclusive de submissão.

Os exemplos evidenciam a insuficiência desta instância chamada de ‘publica’ para acatar as demandas e desejos dos trabalhadores e precários em geral. De um lado, não recebe bem a greve, por outro lado não permite mudanças no sistema de transporte coletivo das metrópoles. As instâncias estatais atuam da mesma forma com os professores, precarizando os serviços, privatizando os espaços, conteúdos e formas e, por fim, violentando literalmente os professores em greve, contra a politização das questões que motivam as greves. Portanto o trabalho entre Estado e os empresários, donos das cidades, é conjunto e os objetivos também o são, a saber, manter os lucros e sistematizar espaços privados em todos os espaços, principalmente os coletivos, o que equivale a agenciar as relações numa maquina de produção servil, onde tudo está a serviço do capital.

Mas é necessário destrinchar melhor as formas de exploração. Como vemos nos exemplos acima, temos duas formas de manutenção do lucro. A primeira, mais violenta e visível, impede a catraca livre e joga, com os policiais e o judiciário, contra as greves. A segunda, mais sutil e complexa, destitui os locais de troca coletiva e livre e suas formas de produção comum. Esta situação circular é retroalimentada pela formação constante de novos conteúdos e produtores de conteúdos disciplinado pela ética do mercado. Não podemos deixar de dizer que se o Estado parece ter feito esta parceria inquestionável e de longo prazo com o mercado, parece que pouco importa o partido que controla o aparelho estatal, já que as experiências recentes demonstram que mesmo um partido dito de esquerda e que já foi constituído por grupos internos independentes, se esforça em manter e em proteger essa parceria, defendendo ardorosamente os desejos e imposições da FIFA, entre outras tantas coisas7.

Porem, sabemos bem e é preciso afirmar sempre, tudo foge e assim são efetivadas as junções monstruosas. Insistimos nessa hipótese por acreditar que ela tem se tornado cada vez mais forte, mesmo entre os grupos de lutas mais tradicionais, e sobretudo porque é justamente esta junção efetivada pelas fugas das estruturas sociais que renova as greves e suas possibilidades positivas. Por exemplo, alguns garis, antes das greves do início do ano, frequentavam as assembleias populares e horizontais da cidade do Rio de Janeiro e disseram ter ficado bem impressionados com o processo. Ao mesmo tempo, a greve dos ônibus no Rio foi fortemente apoiada e fortalecida pelo MPL da cidade, o que abriu a possibilidade de outras lutas e apoios. Da mesma forma vem acontecendo em São Paulo. Por fora disso mas não contra isso, existem uma série de protestos que tem na copa seu alvo principal, o conhecido #NãoVaiTerCopa. Estas iniciativas contra a copa não passam ao largo das greves porque eles também problematizam diretamente as formas de controlar a cidade, problematizam os seus donos, os cães de guarda e a maneira como os gastos supostamente públicos servem para legitimar a socialização de um projeto económico, social e político onde os ganhos são contabilizados a partir do progresso de um produtivismo servil. Estes encontros também acontecem nas ruas, os manifestantes constantemente recebem apoio de trabalhadores em greve. No Rio de Janeiro, no ultima dia 12, havia uma manifestação de rua na Av. Rio Branco, ela seguia perigosamente ao lado dos velozes ônibus que passavam ao lado, de repente um ônibus para, atravessa a avenida e faz todo o trânsito parar, assim uma manifestação absolutamente múltipla, constituída de diversas organizações e ações, recebe apoio fundamental de alguns rodoviários, justamente porque há uma compreensão de que a luta e as demandas são em torno de questões comuns. Podemos citar também o apoio que os metroviários de São Paulo deram nas manifestantes, no mesmo dia. Essas iniciativas afirmam um desejo por uma outra cidade, uma cidade que em boa medida já está ai, nas insistências dos coletivos e grupos das favelas e sua produção de processos de empoderamento dos espaços que os Estado precariza. No agenciamento que existe entre esses grupos e uma série de outros coletivos na constituição radicalmente democrática da cidade que eles produzem, como nos exemplos que citamos acima. Nos movimentos mais radicais (como os grupos contra o racismo, contra patriarcado, contra a heteronormatividade e etc), que atuam pela vida e pela diferença impenetrável e sua atualização e desenrolar temporal. Estes grupos, além de há muito atuarem contra o sistema político, social e cultural de maneira direta e corajosa, também agem por dentro dos movimentos contestatórios, atacando os fechamentos e os contra poderes que tentam se instituir desde dentro criando novas hierarquias e opressões. Estes grupos exigem uma transversalidade das lutas que nos faz mais fortes e sobretudo mais descentralizados e cheios de ginga, dificultando a captura pelos aparelhos do Estado capitalistas e seus sócios horizontalizados. Estes grupos mais radicais fazem isso, ao meu ver, conjugando uma certa visceralidade necessária para sair dos lugares pré-estabelecidos, que nunca pode ser comparada às violência sistemática da ordem e suas diversas formas de destruição e submissão do outro, com uma ética do cuidado de si e dos outros, um amor pela possibilidade de produzir liberdades, além de um pensamento sofisticado e ziguezagueante, que constantemente se adianta ao poder e consegue fazer tremer os tímpanos dos movimentos contestatórios em seus fechamentos momentâneos. Este ‘outro’ ai é percebido como possível dentro da luta, ou seja, o espaço deste ‘outro’ é criado pelos confrontos necessários para viabilizar uma ética viva e livre das sujeições, uma composição constituinte. Portanto não se trata de um ‘outro’ abstrato, ou melhor, em alguma medida, desde a perspectiva destes que sempre são os outros da ordem, do controle, do poder, não se trata de ‘outro’ mas da construção de uma ética dos outros todos, a partir disso que nunca teve nome real, mas que ao mesmo tempo afirmou uma existência múltipla, que excede qualquer nomeação da ordem, onde ocorre uma desterritorialização dos sentidos usuais e locais, do ‘publico’ e do ‘privado’ e uma abertura para o devir minoritário dos grupos em luta8. O devir-precário dos metroviários anunciando as ‘catracas livres’ é a novidade material dos encontros que estas greves trazem. A pauta que o MPL conseguiu disseminar serve para os metroviários criarem uma articulação com a sociedade em torno da possibilidade de um transporte coletivo e de todos, ao mesmo tempo mostra o abuso e a arbitrariedade que existe na cobrança das tarifas por parte dos conglomerados públicos-privados, pois indica concretamente que é a manutenção dos lucros que organiza o transporte coletivo.  Este é um exemplo do uso desta abstração das forças e sua potência de deformar e fugir, ao mesmo tempo que agencia formas materiais concretas de contestação e atualização de uma alternativa real.

Enfim, a greve demonstra de uma vez por todas que o público não é mais o oposto do privado, ou melhor, eles são opostos sim, mas não um ao outro. Eles fazem parte do movimento abstrato que tem sua síntese no Estado. Síntese que permeia a disseminação real do capital. Contra isso, nada melhor do que algo ‘para além disso’, algo que já está no meio de uma processo outro, de luta material e produção livre. O amor e a alegria da produção das singularidades que cola diversas iniciativas e permite uma tática transversal e eficiente contra os poderes, além de garantir uma ‘multidão’ radicalmente democrática, uma ‘multidão’ que faz jus a este conceito. Assim, as greves, as novas iniciativas dentro das greves e os protestos contra gastos da copa se juntam, contra e fora dos partidos e seus sistemas burocratizados, desencadeados pelas relações do capital e disseminadas por todo campo social e, por conta disso, e não por uma essência a ser mais uma vez apresentada no sindicalismo ou em qualquer outro lugar, estas lutas conseguem manter o clico de lutas, deslocamentos e experimentações políticas que explodiram em junho de 2013.
 
Notas

1 – http://www.ihu.unisinos.br/noticias/532181-greves-no-brasil-o-despertar-de-um-novo-ciclo-de-lutas


2 – http://www.redebrasilatual.com.br/politica/2013/12/apos-publicacao-de-denuncias-metro-restringe-acesso-de-funcionarios-a-registro-de-falhas-7144.html

3 – http://blogs.estadao.com.br/fausto-macedo/promotoria-acusa-mais-quatro-por-cartel-dos-trens/

4 -  http://rebaixada.org/a-comlurb-mente-o-governo-descumpriu-o-acordovem-pra-assemblia-geral-no-dia/

5 – https://www.facebook.com/photo.php?v=10201935233118577)
 
6 – http://noticias.bol.uol.com.br/ultimas-noticias/brasil/2014/05/29/alckmin-descarta-catraca-livre-durante-greve-no-metro.htm

7 – http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,petistas-e-tucanos-agem-para-evitar-manifestacoes-imp-,1508659

8 – Gilles Deleuze e Felix Guattari, Mil Platôs, vol 5, pag 224 e 225.

Fonte: Das Lutas

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