junho 30, 2014

"Seis críticas ao marxismo a que Marx aderiria", por Bruno Cava Rodrigues

PICICA: "“Tudo que sei é que não sou marxista”, pronunciada em 1879, com certeza hoje Marx manteria essa frase, diante de tanto marxista de gabinete, de estado, de salão, de butique, de cátedra, apaixonados pelo poder ou filiados à hegemonia, burocráticos, academicistas, tantos marxismos em compota, patrulhas marxológicas e marxímetros acadêmicos.

Depois de 150 anos de lutas, revoluções e infinitos volumes de teoria e debate, Marx insiste em fazer-se presente, apesar das ortodoxias. Estou falando de um Marx minoritário, um Marx das lutas, anticapitalista e antiestado, Marx da transição comunista, do perspectivismo da história, da luta de classe. Um Marx renovado que adere tranquilamente à crítica de um marxismo 1) economicista, 2) dicotômico, 3) utópico, 4) teleológico, 5) estatista, e 6) antropocêntrico." 

Seis críticas ao marxismo a que Marx aderiria
Marx



“Tudo que sei é que não sou marxista”, pronunciada em 1879, com certeza hoje Marx manteria essa frase, diante de tanto marxista de gabinete, de estado, de salão, de butique, de cátedra, apaixonados pelo poder ou filiados à hegemonia, burocráticos, academicistas, tantos marxismos em compota, patrulhas marxológicas e marxímetros acadêmicos.

Depois de 150 anos de lutas, revoluções e infinitos volumes de teoria e debate, Marx insiste em fazer-se presente, apesar das ortodoxias. Estou falando de um Marx minoritário, um Marx das lutas, anticapitalista e antiestado, Marx da transição comunista, do perspectivismo da história, da luta de classe. Um Marx renovado que adere tranquilamente à crítica de um marxismo 1) economicista, 2) dicotômico, 3) utópico, 4) teleológico, 5) estatista, e 6) antropocêntrico.

Abaixo, tento resumir pelo menos essas seis:

1) Economicista: “O Capital” é um livro escrito em polêmica aberta contra os economistas clássicos liberais e suas “leis econômicas” próprias, contra a ideia que a economia fosse ciência autônoma. Nele, Marx vai não só desmascarar os economicismos que costumam separar o mercado do estado, como dois polos opostos (Marx demonstra que são integrados e funcionais um ao outro), que sustentem uma “mão invisível” quase divina dos mercados, ou que pressuponham o homem burguês como protótipo do agente racional, calculador e autointeressado, isto é, o indivíduo econômico; como nessa obra Marx também vai subverter as teorias economicistas que tentam quantificar o valor de troca (operando a passagem da qualidade à quantidade), determinar alguma equivalência entre trabalho e salário (para Marx, não há medida justa da exploração!); ou reduzir o dinheiro a equivalente geral e neutro, ou seja, visto apenas como meio de pagamento, e não como relação criativa de poder, como crédito.

2) Dicotômico: em Marx, não dá pra falar em dois grupos pré-constituídos, duas camadas sociais, disputando o protagonismo da história. Isso seria a sociedade feudalista, que se divida por estamentos bem definidos. Na sociedade capitalista, muda a ideia de classe. Porque não existe simetria, proletariado e burguesia são dois termos incomparáveis, que não podem existir no mesmo plano. O trabalhador não precisa do capitalista pra existir, mas o capitalista precisa do trabalhador. Na sociedade capitalista, quando se dá o conflito, não se opõem dois grupos sociais. Opõem-se, sim, a sociedade capitalista e aqueles que, lutando, lutam pela abolição da sociedade capitalista. Tem-se, em Marx, como lido por exemplo por E. P. Thompson, um sujeito que se constitui libertando-se do outro grupo a que também pertence. O proletariado é a luta que se liberta da burguesia, que a destrói, destruindo a si próprio como um polo dessa relação. A luta de classe não opõe, assim, duas classes, mas constitui uma única: o proletariado, que não existe senão na luta. Isso não é dicotomia (dois lados num Fla-Flu), mas conflito na imanência, luta por libertação por si mesmo, por sua afirmação como liberdade diante do capital. É muito diferente.

3) Utópico: nenhuma análise faz sentido apenas como interpretação do mundo, sem um movimento real de lutas, em que, em primeiro lugar, essa análise possa colaborar para a transformação do mundo. Marx não fazia hipóteses, mas apostas políticas, mais ou menos implicadas nos grupos com quem pesquisava táticas e estratégias de ação. Sem sujeitos que, precária e fragmentariamente, encarnem as premissas das análises e suas linhas de desdobramento, elas não fazem sentido, se tornam opacas, bizantinas, porque impotentes, tendem a não passar de paralogismos com pendores estetizantes, para fruição pessoal mas nenhuma pungência. Marx não esculpia porcelanas teóricas, mas ferramentas de luta, armas críticas que pudessem ser usadas.

4) Teleológico: no prefácio do “Capital”, já está colocado o desafio de virar a dialética aérea de Hegel de ponta cabeça, colocando-a com os pés no chão. O esforço de Marx será por desmontar qualquer sentido da história dado, qualquer seta em direção a um irrefreável progresso, qualquer etapismo em direção a algum futuro glorioso da humanidade, do estado, do poder. Nada disso. Tudo pode dar errado, tudo pode ser revertido, desviado, multiplicado, estratificado em níveis inarticuláveis. Contrapondo-se ao séquito hegeliano à esquerda, Marx não vê nenhuma tendência natural ao bem no homem, nada a defender dalguma natureza humana, nenhum otimismo antropológico. E tampouco qualquer pessimismo determinista, como se o Mal fosse abolir-se pelas próprias falhas. Nenhuma teodiceia ao Céu nem ao Inferno. As contradições do capitalismo não vão derrubá-lo por si próprias; não vão sequer acelerar a sua derrubada. Pelo contrário. O desenvolvimento do capital procede aproveitando as contradições, provocando crises, engendrando ansiedades, que ao fim e ao cabo são recuperadas para fortalecer sua dominação, o estado e o mercado que se reestruturam pela via da destruição criativa. Dialético e mefistofélico é o capital. Hegel é seu filósofo. Produtivista é o capital, ao enquadrar a multiplicidade das potências produtivas em valor econômico, dissolução das relações sociais dissidentes, e homogeneização daquelas pacificadas e voluntariamente servis. As lutas ou são antidialéticas, ou serão facilmente recuperadas. A luta de classe está orientada pela abolição da dialética entre capital e trabalho, entre crise e reestruturação, entre estado/público e mercado/privado. O comunismo é a dialética destruída: o momento em que a história se liberta da História, quando os sentidos escapam da dialética capitalista e se esgarçam à plenitude. Isso não é o fim da história, mas seu eterno recomeço, seu kairós: é a revolução, como em W. Benjamin.

5) Estatista: sem dúvida o maior golpe ao pensamento de Marx é torná-lo um pensamento do estado, para o estado, a partir do estado. A maior derrota do marxismo talvez seja a possibilidade de falarmos em algo como um marxista-hegeliano. Tornar a categoria do estado um alfa e ômega do marxismo congela a ontologia constituinte de Marx, seu caráter essencialmente antiestado, como aquilo que revoluciona a ordem das coisas. Se Marx polemizou com os teóricos anarquistas de seu tempo, não foi porque eles eram contra o estado. Foi porque não eram contra o estado o suficiente. Não eram radicais o suficiente, ao limitar o estado à autoridade, à lei estatal, ao aparelho coercitivo, deixando de lado a estrutura metafísica que condiciona a existência do indivíduo, da sociedade e da economia no capitalismo, que também são estado. Sem entrar no mérito desses embates (particularmente vejo alguns pontos específicos em que fecharia com Bakunin e, em menos pontos, Proudhon), Marx nunca flertou com a ideia de estado como resolução de quaisquer dos problemas do comunismo. Nem mesmo na “ditadura do proletariado”, a muito incompreendida proposta de radicalização da democracia operária.

6) Antropocêntrico: outra enorme lorota sobre Marx, especialmente nas elaborações posteriores, mas não só. Já em “Questão judaica”, livro de juventude, Marx polemiza com os hegelianos de esquerda contra o humanismo secular (onde se inscrevem muitos ateísmos modernos), mostrando que há muito de teologia política nas ideias perfeitamente laicas de estado, poder público e emancipação humana. Também na Seção 4 do Cap. 1, do “Capital”, em que a crítica do fetichismo sugere um aspecto mágico do trabalho vivo, na força demoníaca do fetichismo revolucionário (tão bem reapropriado pelo cinema de um Glauber Rocha). Mas o maior golpe à modernidade antropocêntrica está mesmo no “Fragmento sobre as máquinas”, um libelo anti-humanista em que Marx vai teorizar sobre a fábrica como coletivo maquínico de humanos e não-humanos, e sobre a relevância em organizar-se na ação política a partir desses novos arranjos híbridos da revolução industrial, porque imensamente potentes e produtivos também para a revolução. No mesmo texto, Marx mostra uma tendência de generalização do maquínico pelo tecido social, quando a fábrica vira “fábrica social” e as forças produtivas imediatamente difusas pelo “General Intellect”. Desses delírios febris há 150 anos, brotará a virada maquinocêntrica do marxismo, como em Gilles Deleuze e Felix Guattari (em “Anti-Édipo” e “Mil Platôs”), ou Antonio Negri (em “Marx além de Marx”).
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Hoje, Marx certamente não se diria marxista, mas não há motivo para nostalgia. Nem tempo para tornar-se paleomarxista atrás de algum elo perdido do marxismo original, como fazem alguns que preferem chamar-se “marxianos”. Nunca quis ser puro sangue. Eu acho que é preciso sujar as mãos e falar marxismo, e disputar marxismo, e defender e atacar o marxismo. Marxismo de Marx, marxismo insubmisso, marxismo selvagem.

Talvez Marx, que também era contra marxistas, hoje, brincasse que os críticos ao marxismo descrito acima, muitas vezes com ar superior, debochados, como se falassem de algo ultrapassado e vulgar; no fundo, esses críticos é que estão agora aderindo, e assim, insuspeitadamente, um século depois, renovam e reativam a sua força teórica, através das entrelinhas recalcadas de seus desvirtuadores.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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