junho 18, 2014

"Uma ética do dissenso", por Bruno Cava Rodrigues

PICICA: "Vários autores contemporâneos têm falado do dissenso como base de transformação de uma realidade estagnada. Por exemplo, o filósofo francês J. Rancière, para quem a política nasce do dissenso e todo consenso cheira a polícia. Ou Marcos Nobre, da UniCamp, para quem o consenso dominante da política nacional se chama pemedebismo, ensejando uma resposta dissensual antissistêmica (como as revoltas de 2013).

O fato é que, diante da moral dominante do consenso, que é a moral conservadora, o dissenso é sempre precário e difícil. Só pra se fazer ouvido, precisa enfrentar uma muralha de interditos. Exige não só coragem, mas a capacidade de tecer alianças e elaborar estratégias, numa prudência na dissensão, numa arte do conflito inteligente. Não pode se respaldar apenas pela retórica das ideias, por mero denuncismo ou se arvorando da maior razão, uma vez que o campo das ideias está impregnado de imagens apaziguadoras de cordialidade e resignação, tão pródigas, exatamente, em chamar à maior razão." 

Uma ética do dissenso
Bovinos

Na política, o consenso é muito mais bem visto do que o dissenso. O consenso aparece como um bem em si, ao que todas as pessoas de boa intenção e civilizadas deveriam tender. Aparece como regra, enquanto o dissenso ficaria reservado para casos excepcionais, muito específicos, a ser muito justificado. A inclinação para o consenso chega a ser uma moral e mesmo um critério de b…om gosto, implacável em desqualificar, pessoalmente e de princípio, quem insiste em pontuar diferenças, problematizar lógicas, perturbar maiorias silenciosas, contrariar arranjos e questionar pessoas já instaladas.

Quando o dissenso aparece, a resposta automática é anulá-lo, fugindo do embate em campo aberto como o diabo foge da cruz. Seja acusando os dissidentes de polemismo, agressividade, capricho narcísico, inapropriado. Seja lançando-lhes as muitas sombras da desconfiança: estão movidos por interesses ocultos. Como se todas as ações, inclusive aquelas que formaram o consenso ou dele derivam, não tivessem algo por trás, assim como pela frente, pelos lados, por baixo, por cima.
Quanto mais hierárquico, autoritário e desigual um consenso, mais  estará saturado de códigos sobre como (não) fazer o dissenso. Mais sofisticados serão os protocolos, o bom tom dos gestos, o “proceder”. Qualquer coisa fora desse labirinto de convenções será simplesmente barbárie: não pertence a nosso meio, não é um de nós. Tome-se, por exemplo, o mundo cultural, tradicionalmente avesso aos conflitos e dores da política. É uma moral montada sob medida para reduzir a disputa ao velho trinômio conservador: o mais forte eu me filio, o de força semelhante eu negocio, o mais fraco eu ameaço, amedronto e eventualmente esmago — tudo segundo a escalada de posições dentro da estrutura existente, sem jamais questioná-la de verdade. A menos que o questionamento seja, por períodos curtos e táticos, a fim de aumentar o poder de barganha e, esperançosamente, subir um degrau.

Vários autores contemporâneos têm falado do dissenso como base de transformação de uma realidade estagnada. Por exemplo, o filósofo francês J. Rancière, para quem a política nasce do dissenso e todo consenso cheira a polícia. Ou Marcos Nobre, da UniCamp, para quem o consenso dominante da política nacional se chama pemedebismo, ensejando uma resposta dissensual antissistêmica (como as revoltas de 2013).

O fato é que, diante da moral dominante do consenso, que é a moral conservadora, o dissenso é sempre precário e difícil. Só pra se fazer ouvido, precisa enfrentar uma muralha de interditos. Exige não só coragem, mas a capacidade de tecer alianças e elaborar estratégias, numa prudência na dissensão, numa arte do conflito inteligente. Não pode se respaldar apenas pela retórica das ideias, por mero denuncismo ou se arvorando da maior razão, uma vez que o campo das ideias está impregnado de imagens apaziguadoras de cordialidade e resignação, tão pródigas, exatamente, em chamar à maior razão.

O dissenso precisa também da força da ação, do exemplo vívido, da construção real de alternativas, capazes de fissurar o consenso sem passar pelo labirinto de lugares comuns retóricos. Ele tem de ser criativo: criar um terreno novo em que as instâncias do consenso não consigam lançar suas sombras, para anular e destruir. O dissenso é uma ética material do antagonismo.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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