junho 16, 2014

"Torcer ou protestar? segundo Spinoza", por Bruno Cava Rodrigues

PICICA: "Tenho ouvido que, tendo começado a Copa, deveriam cessar os protestos, porque o clima é de alegria generalizada, torcida, festa. Quem insiste em ir pra rua estaria apenas exprimindo um ressentimento, uma birra contra a vibrante maré verde-amarela. É preciso distinguir. Na ética spinozana, os afetos podem ser ativos ou passivos. Ativos são aqueles em que… nosso poder de ação está implicado, são aqueles que dizem respeito àquilo que podemos fazer. Passivos são afetos que, recebidos do exterior, não mudam em nada nosso poder de ação, em que não podemos nos implicar senão inativamente. Se eu pego o momento da Copa e faço alguma coisa disso, que não seja exatamente o que estava programado, o que a publicidade oficial espera que eu faça, então eu posso construir um espaço de alegria que seja ao mesmo tempo um espaço de ação. A alegria daí decorrente virá de um aumento de minha capacidade de agir."
 
Torcer ou protestar? segundo Spinoza
 
Spinoza


Tenho ouvido que, tendo começado a Copa, deveriam cessar os protestos, porque o clima é de alegria generalizada, torcida, festa. Quem insiste em ir pra rua estaria apenas exprimindo um ressentimento, uma birra contra a vibrante maré verde-amarela. É preciso distinguir. Na ética spinozana, os afetos podem ser ativos ou passivos. Ativos são aqueles em que… nosso poder de ação está implicado, são aqueles que dizem respeito àquilo que podemos fazer. Passivos são afetos que, recebidos do exterior, não mudam em nada nosso poder de ação, em que não podemos nos implicar senão inativamente. Se eu pego o momento da Copa e faço alguma coisa disso, que não seja exatamente o que estava programado, o que a publicidade oficial espera que eu faça, então eu posso construir um espaço de alegria que seja ao mesmo tempo um espaço de ação. A alegria daí decorrente virá de um aumento de minha capacidade de agir.

Agora, se eu simplesmente sento a bunda no sofá e fico torcendo pra seleção, comemorando os gols, eu não tenho nenhuma implicação com os eventos, nenhuma contribuição. A causa de minha alegria é totalmente externa e independente do que eu faço. A distância entre meu espaço de ação e o espaço do jogo que causa a minha alegria é tão grande quanto, digamos, a minha distância para um fator climático. Eu ficar alegre com um gol, assim, não é muito diferente do que ficar alegre quando faz um dia bonito de Sol. É, sim, uma alegria, mas uma alegria passiva, e que pode ser apassivadora se eu me contentar só nisso.

Por outro lado, se eu vou pros atos, ajudo a organizar, gero criativamente conteúdos, me manifesto, se quando atacado eu aprendo a resistir, a organizar a resistência, nesse caso, existe uma alegria diferente. Uma alegria associada a um espaço de ação em que eu tenho participação. Uma alegria que é também resistir às coerções externas, em me afirmar mesmo ameaçado. Essa construção de uma alegria ativa, em que estou implicado, e que se afirma mesmo sob coerção, isso é o que Spinoza chama de desejo. O desejo me constrói como ser potente, como ser capaz de não se render aos “fatores climáticos” e, assim, poder também participar na construção do mundo, da alegria do mundo. O que vai determinar a potência será a capacidade de produzir efeitos, envolver mais gente, saber relacionar-se com a miríade de afetos ativos circulando. O afeto ativo, quando compartilhado, quando composto com outros afetos ativos, quando podemos conhecer as causas que nos unem na ação, para Spinoza, isso é amor.

O amor é quando a relação com o outro aumenta o poder de ação de ambos, um afeto ativo, contra qualquer paixão que signifique apenas submissão ou auto-anulação. Então, é verdade que torcer pra seleção pode levar a afetos ativos. Quando? Se eu aproveito o jogo da seleção e faço um churrasco na laje, reúno as pessoas, transformo a ocasião num espaço de ação em que melhoramos nossas relações, em que nos tornamos mais fortes e alegres para lutar juntos pelo melhor. Totalmente diferente, pra Spinoza, é eu ficar torcendo igual a publicidade nos exige, de maneira robótica, automática, como uma correia de transmissão da própria TV, do Galvão… Isso é afeto passivo, é se tornar peça de um jogo de causas onde não estamos em nada implicados. Não é amor, não tem alegria que preste, que seja ética.
 
Mas pior mesmo, e aí retomo o começo do texto, é quem usa esses afetos passivos, quem reduz a Copa à necessidade de inação. Essas pessoas que exigem que não ajamos durante a Copa, porque deveríamos nos subjugar ao clima de festa. Com isso, eles não só estão pautando o lado passivo da alegria, como estão elevando-o à norma moral: agir é afetivamente errado, e invertendo completamente o sentido da ética. É uma ação anti-ética, e como tal propugna por uma política do tirano, da submissão às causas e espaços de ação que não temos acesso. Para Spinoza, esses se apaixonaram pelo poder de ação dos outros, ficam à espera de suas ordens e diretrizes, e são impotentes para mudar o que quer que seja. Isso não é amor pela seleção, isso não é sequer amor.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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