junho 13, 2014

"Até que enfim não vai ter Copa", por Carla Rodrigues

PICICA: "Com #nãovaitercopa, a história que nos impuseram na memória sobre a Copa de 1970 pode enfim começar a ser desconstruída. Como ensina a filósofa Jeanne Marie Gagnebin (Unicamp) em lindo artigo publicado em “O que resta da ditadura” (Boitempo Editorial, organização de Vladimir Safatle e Edson Teles), há uma imposição de esquecer como “gesto forçado de apagar e de ignorar, como se não houvesse havido tal crime, tal dor, tal trauma, tal ferida no passado”. Impor o esquecimento significa, por isso, impor uma única maneira de lembrar. Foi o que fez a nossa Lei da Anistia, cuja bem-vinda revisão está recém-aprovada no Senado.


Conquista da luta contra o não-esquecimento forçado, o governo federal instituiu a Comissão Nacional da Verdade em maio de 2012, saudada como uma oportunidade única de esclarecimento dos casos de tortura, morte e desaparecimento durante o regime militar. Apenas um mês depois, entrou em vigor a Lei Geral da Copa – aquela a que recusamos com #nãovaitercopa. Enquanto em 150 páginas a Lei da Copa estabelece um regime de exceção e dá amplos poderes à Fifa – o novo FMI, como percebeu o jornalista Arthur Dapieve –, a CNV enfim abre as janelas dos porões para questionar os longos 30 anos de exceção que nos acostumamos a chamar de ditadura.


A CNV, apesar de seus limites, nos tem permitido confrontar os fantasmas do passado, movimento único e necessário em direção a um estado de direito, elaboração “do que resta da ditadura”. Sua criação faz parte do que o filósofo Jacques Derrida classificou de “política da memória”, relacionada a três critérios essenciais: a participação e o acesso ao arquivo, à sua constituição, e à sua interpretação. Derrida acompanhou de perto os trabalhos da Comissão de Reconciliação na África do Sul pós-apartheid e foi um pensador militante do tema do perdão, tema da sua última conferência, realizada no Rio de Janeiro em 2004 pouco antes de sua morte. Naquele momento, o Brasil ainda fazia silêncio sobre a impossibilidade de perdoar os crimes de morte e tortura do regime de exceção. A criação da Comissão Nacional da Verdade tornou-se a primeira parte da possibilidade de acesso ao arquivo e sua reconstituição, porque só fazendo as pazes com o passado se pode caminhar rumo ao que Nietzsche chamou de “dimensão feliz do esquecimento”, alegria que nos permite não mais carregar o passado como um peso – ou como um chumbo – e nos leva a inventar outras figuras de vida no presente, como a força contestatória nas redes sociais com #nãovaitercopa.


Já a Lei Geral da Copa chegou para instituir o estado de exceção promovido pela Fifa em nome da associação entre interesses políticos e financeiros que pautam a realização dos jogos de futebol e, principalmente, a movimentação do capital em direção aos países-sede. Se nos anos 1970 a exceção era política, hoje a exceção é econômica, ditada pelos interesses do capitalismo global, que estabelecem as novas regras do silêncio."
 


Até que enfim não vai ter Copa

Carla Rodrigues | 11.06.2014


O presidente Médici cumprimenta Pelé após a conquista do tricampeonato

Minha primeira reação à hastag #nãovaitercopa foi de estranhamento. Custei a entender tratar-se de um gesto de recusa à Copa do Mundo de 2014 como um grande evento político, de rejeição a celebrar o Brasil como potência econômica mundial, recém-ingressa nos Brics, um ato de negar o nacionalismo que acompanha o futebol há tantos anos. Na história das Copas, e não apenas no Brasil, futebol, língua e política se confundem nos slogans das seleções, apelando para as cores da bandeira, a força – também usada nas guerras – e o orgulho nacional, como se pode ler em muitas das frases dos ônibus oficiais.

Em parte, minha dificuldade de compreensão vinha do fato de que, para mim, só houve uma Copa, a de 1970, quando ninguém podia dizer “não vai ter Copa”. Jamais assisti a uma Copa do Mundo e nunca me interessei por um jogo de futebol de qualquer time. Reconheço, seja por obras como as do antropólogo Roberto DaMatta e a do poeta José Miguel Wisnik, o futebol como fenômeno social e esclareço desde já que minha recusa ao jogo não tem nada a ver com falso elitismo. É mais fácil associar meu desinteresse aos estereótipos de gênero com os quais cresci. Contra a maioria deles, até me rebelei. O desgosto pelo futebol ficou, legado da Copa de 1970.

Mas até que, para quem não gosta, guardo na memória alguns acontecimentos marcantes: uma desclassificação em 1986, quando os jogos eram, para mim, apenas um ótimo pretexto para sair do trabalho mais cedo; uma vitoriosa disputa de pênaltis em 1994; um vexame no jogo final na França, em 1998. Além desses episódios isolados, minha memória só registra a Copa de 70, o tricampeonato e a estranha mistura entre o silêncio da opressão do regime militar com o grito de “pra frente, Brasil”. Por tudo isso, #nãovaitercopa me remeteu diretamente à experiência de uma Copa que não deveria ter havido, e que só houve porque nos foi imposta pela ditadura.

De 1970, não tenho lembrança dos jogos. Era criança, não vi as partidas de futebol. Só vi os adultos assistindo à Copa. Minhas recordações misturam os gritos de gol e a euforia da festa do tricampeonato com os silêncios forçados sobre a tortura, as mortes, os desaparecidos nos porões sangrentos comandados pelo general Emílio Garrastazu Médici. Dele, nas minhas reminiscências infantis daqueles anos de chumbo, guardo a imagem de uma cena em preto e branco, o general com o rádio de pilha colado ao ouvido, no velho Maracanã, enquanto em casa, meu pai – torcedor do Flamengo como o presidente – amaldiçoava a ditadura mais do que a derrota do seu time.

Com #nãovaitercopa, a história que nos impuseram na memória sobre a Copa de 1970 pode enfim começar a ser desconstruída. Como ensina a filósofa Jeanne Marie Gagnebin (Unicamp) em lindo artigo publicado em “O que resta da ditadura” (Boitempo Editorial, organização de Vladimir Safatle e Edson Teles), há uma imposição de esquecer como “gesto forçado de apagar e de ignorar, como se não houvesse havido tal crime, tal dor, tal trauma, tal ferida no passado”. Impor o esquecimento significa, por isso, impor uma única maneira de lembrar. Foi o que fez a nossa Lei da Anistia, cuja bem-vinda revisão está recém-aprovada no Senado.

Conquista da luta contra o não-esquecimento forçado, o governo federal instituiu a Comissão Nacional da Verdade em maio de 2012, saudada como uma oportunidade única de esclarecimento dos casos de tortura, morte e desaparecimento durante o regime militar. Apenas um mês depois, entrou em vigor a Lei Geral da Copa – aquela a que recusamos com #nãovaitercopa. Enquanto em 150 páginas a Lei da Copa estabelece um regime de exceção e dá amplos poderes à Fifa – o novo FMI, como percebeu o jornalista Arthur Dapieve –, a CNV enfim abre as janelas dos porões para questionar os longos 30 anos de exceção que nos acostumamos a chamar de ditadura.

A CNV, apesar de seus limites, nos tem permitido confrontar os fantasmas do passado, movimento único e necessário em direção a um estado de direito, elaboração “do que resta da ditadura”. Sua criação faz parte do que o filósofo Jacques Derrida classificou de “política da memória”, relacionada a três critérios essenciais: a participação e o acesso ao arquivo, à sua constituição, e à sua interpretação. Derrida acompanhou de perto os trabalhos da Comissão de Reconciliação na África do Sul pós-apartheid e foi um pensador militante do tema do perdão, tema da sua última conferência, realizada no Rio de Janeiro em 2004 pouco antes de sua morte. Naquele momento, o Brasil ainda fazia silêncio sobre a impossibilidade de perdoar os crimes de morte e tortura do regime de exceção. A criação da Comissão Nacional da Verdade tornou-se a primeira parte da possibilidade de acesso ao arquivo e sua reconstituição, porque só fazendo as pazes com o passado se pode caminhar rumo ao que Nietzsche chamou de “dimensão feliz do esquecimento”, alegria que nos permite não mais carregar o passado como um peso – ou como um chumbo – e nos leva a inventar outras figuras de vida no presente, como a força contestatória nas redes sociais com #nãovaitercopa.

Já a Lei Geral da Copa chegou para instituir o estado de exceção promovido pela Fifa em nome da associação entre interesses políticos e financeiros que pautam a realização dos jogos de futebol e, principalmente, a movimentação do capital em direção aos países-sede. Se nos anos 1970 a exceção era política, hoje a exceção é econômica, ditada pelos interesses do capitalismo global, que estabelecem as novas regras do silêncio.

Por isso, a partir das 17h deste 12 de junho, quando no gramado do Itaquerão, em São Paulo, o juiz apitar o início da partida Brasil x Croácia, alguns de nós assistiremos a um conjunto de jogos de futebol distribuídos em 12 cidades e organizados em etapas até o jogo final, no irreconhecível Maracanã. Essa Copa do Mundo, com sua sucessão de partidas em direção a um jogo final, vai acontecer. Eu não vou assistir, como nunca fiz, mas vou me juntar alegremente ao #nãovaitercopa, grito entalado na garganta desde 1970, ressignificação da Copa de 2014, clamor por uma nova interpretação do tal país do futebol

terpretação do tal país do futebol
Carla Rodrigues
Carla Rodrigues exerceu a profissão de jornalista durante tantos anos que prefere não somar. Fez especialização, mestrado, doutorado em Filosofia na PUC-Rio e pós-doutorado na Unicamp. Hoje é professora do Departamento de Filosofia da UFRJ e uma das coordenadora do Khôra - laboratório de filosofias da alteridade. Dedica-se a pesquisar o pensamento do filósofo Jacques Derrida.

Fonte: Blog do IMS

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