junho 09, 2014

"A entrevista que Zero Hora não publicou", por Bruno Cava

PICICA: "Das 2.711 palavras com que respondi às cinco questões da entrevista pedida, sobre um ano das manifestações de junho, o Zero Hora queria publicar apenas 118. Isto é, cinco linhas extraídas da última resposta. Corte de mais de 95%. Corte de todas as menções à imprensa corporativa. Como falar de junho sem falar que parte dos protestos também era contra a grande mídia? Quase sempre repudiada nas manifestações de rua, a grande mídia teve de cobri-los de helicóptero, ou disfarçou seus jornalistas à moda P2, enquanto uma malha de midiativismo difuso e uma rede de mídias alternativas tomavam a dianteira na produção de narrativas. Várias outras passagens essenciais foram cortadas, ficando apenas uma citação mutilada do conteúdo que eu, ingênuo, tinha aceitado fornecer ao jornal. Mas, ao ver a prévia da reportagem que seria publicada no dia seguinte, em vez de ficar “xatiado” e deixar pra lá, desautorizei a publicação de qualquer parte. A resposta do jornal foi que estava fazendo jornalismo e, por isso, usaria apenas uma pequena fração inserida num “painel pluralista”. E aí o jornal barganhou que, se eu deixasse assim, publicaria a íntegra da entrevista no site. Não, absolutamente. Entre postá-la nalgum canto ermo do site deles, prefiro por em meu próprio blogue. Nada mais cínico do que a boa fé jornalística, essa que seleciona cuidadosamente os conteúdos e constrói cirurgicamente as reportagens, censurando o dissenso, retificando os tons incômodos e eliminando as contradições. E nada mais cínico do que o jornalista de bem, que está apenas cumprindo seu papel na sociedade. Não adianta ocupar a mídia nos termos da mídia. O jeito é ser a mídia."

A entrevista que Zero Hora não publicou
Das 2.711 palavras com que respondi às cinco questões da entrevista pedida, sobre um ano das manifestações de junho, o Zero Hora queria publicar apenas 118. Isto é, cinco linhas extraídas da última resposta. Corte de mais de 95%. Corte de todas as menções à imprensa corporativa. Como falar de junho sem falar que parte dos protestos também era contra a grande mídia? Quase sempre repudiada nas manifestações de rua, a grande mídia teve de cobri-los de helicóptero, ou disfarçou seus jornalistas à moda P2, enquanto uma malha de midiativismo difuso e uma rede de mídias alternativas tomavam a dianteira na produção de narrativas. Várias outras passagens essenciais foram cortadas, ficando apenas uma citação mutilada do conteúdo que eu, ingênuo, tinha aceitado fornecer ao jornal. Mas, ao ver a prévia da reportagem que seria publicada no dia seguinte, em vez de ficar “xatiado” e deixar pra lá, desautorizei a publicação de qualquer parte. A resposta do jornal foi que estava fazendo jornalismo e, por isso, usaria apenas uma pequena fração inserida num “painel pluralista”. E aí o jornal barganhou que, se eu deixasse assim, publicaria a íntegra da entrevista no site. Não, absolutamente. Entre postá-la nalgum canto ermo do site deles, prefiro por em meu próprio blogue. Nada mais cínico do que a boa fé jornalística, essa que seleciona cuidadosamente os conteúdos e constrói cirurgicamente as reportagens, censurando o dissenso, retificando os tons incômodos e eliminando as contradições. E nada mais cínico do que o jornalista de bem, que está apenas cumprindo seu papel na sociedade. Não adianta ocupar a mídia nos termos da mídia. O jeito é ser a mídia.

katja
Foto: Katja Schilirò (julho 2013)


 

1.No lançamento de seu livro A Multidão foi ao deserto, Paulo Cândido fez uma pergunta: a multidão que foi ao deserto encontrará/construirá sua Jerusalém? Hoje, passado um ano das manifestações de junho, qual a sua percepção sobre isso? Para onde estamos indo?

Aconteceu uma mudança qualitativa, não foi um fenômeno meramente quantitativo. Mudou, sobretudo, a percepção. O limiar do tolerável diminuiu, as mobilizações ocorrem com mais frequência e em maior intensidade. Também houve um fortalecimento da força organizativa, por fora das estruturas convencionais da representação, e não me refiro não só a partidos e sindicatos, mas também à grande imprensa brasileira.

Por bastante tempo, valia o esquema que, às lutas e movimentos caberia o papel da tática, ou seja, reivindicar, pressionar, exigir agendas específicas e mais imediatas diante dos governos. Aos partidos, caberia o papel da estratégia, quer dizer, integrar as demandas particulares segundo um programa global, conciliar os conflitos, planejar a longo prazo. O que aconteceu nas últimas décadas? Mesmo o partido tradicionalmente mais bem organizado em termos ideológicos e de projeto estratégico, o PT, não é mais capaz de formular a estratégia e determiná-la em seus próprios termos. A esfera estratégica vem sendo ocupada sucessivamente por grandes “players” do mercado, empreiteiras, produtoras de cimento, ruralistas, bancos, todo um conjunto de aliados que, em simbiose, formam o que alguns autores chamam de “neodesenvolvimentismo”, ao mesmo tempo em que se desarticularam as conexões com bases sociais em processo de transformação, com as redes militantes e a tradição dos núcleos. Quem participa das conferências sente que não estão decidindo ou elaborando nada. Para completar o processo de descolamento da representação, o setor tático do partido tem sido sistematicamente paralisado em nome da “estratégia”, burocratizando movimentos e grupos de luta dentro do próprio rol de alianças que compõem a dita “correlação de forças” da “governabilidade”. O resultado disso é um “extremismo de centro” no plano da estratégia, cada vez mais impermeável, enquanto os movimentos sociais ligados ao partido abandonaram a atuação tática.

Diante desse esvaziamento nos últimos anos, aconteceu um preenchimento propositivo, afetivo e organizacional. Essa reorganização de movimentos não passou pelas estruturas convencionais que, como se sabe, não tiveram nenhum papel relevante para mobilizar os protestos do último ano. Essas estruturas são sentidas por uma nova geração de ativistas cada vez mais como um vazio de vida, com bandeiras postiças, que servem prioritariamente à reprodução de aparelhos burocráticos e grandes interesses empresariais, do que para organizar táticas e pensar uma estratégia focada na conquista de direitos.

Então o preenchimento se deu, primeiro, no nível da tática. Nesse quesito, junho de 2013 legou um extenso arco de modos de fazer protestos, fóruns de discussão, assembleias e mídias, capazes de provocar o contágio muito depressa e de maneira imprevisível, e com uma diversidade grande de táticas de ação direta e pressão. Mas também no nível do pensamento estratégico que, embora incipiente, está adensando rápido e ganhando força também em decorrência das jornadas de junho. Por exemplo, na elaboração de programas para a mobilidade urbana (o MPL de São Paulo, o Tarifa Zero de Belo Horizonte, a OcupaCâmara do Rio, por um tempo), ou de moradia construída junto de quem luta por ela (como o Plano Popular da Vila Autódromo, no Rio, ou forças organizativas de base autônoma cada vez mais disseminadas, como as Brigadas Populares, em BH, e o MTST, em São Paulo). Destacam-se também grupos articulados ao redor de uma cultura dissidente de rua, reunindo sem-teto, artista de rua, pichadores, malucos beleza e anarcopunks, que sempre aparecem fortalecendo as ações e ocupações, bem como uma relação progressivamente mais próxima com as lutas e revoltas nas favelas e periferias, cujos moradores também têm participado das redes e ruas, muitas vezes com a tão indispensável máscara que os salva de vinganças policiais ou milicianas, nos territórios onde vivem.

Tudo isso está indo em várias direções, mas o sentido geral é pelo fortalecimento do caráter democrático, produtivo, de novos movimentos e lutas organizadas noutras coordenadas, em relação às opções existentes até pouco tempo atrás. Uma dessas direções, por exemplo, é o #NãoVaiTerCopa que, longe de ser destrutivo ou niilista, também exprime o pleno de demandas e desejos por dentro deste momento incrível que vivemos.

2.O que foi decisivo para fazer eclodir as manifestações de junho, indo além das manifestações esparsas verificadas anteriormente? Qual o peso do fator global nisso? E quais as particularidades históricas brasileiras?

Existem algumas interpretações mais voltadas à atuação de grupos específicos, numa narrativa mais linear. Remontando a história desse movimento desde a Revolta do Busu (Salvador, 2003) e da Catraca (Florianópolis, 2004), Pablo Ortellado, da USP, tem defendido a tese de que o MPL foi o grande responsável pelas mobilizações e pela solidez da pauta política que, ao fim daqueles 14 dias drásticos de junho, venceu, conseguindo o cancelamento do aumento da tarifa do ônibus. É uma explicação politicamente importante, mas ainda parcial. Isso explica o estopim, a escalada de protestos do final de 2012 entrando em 2013, mas não explica o porquê do contágio tão rápido, nem as inovações organizativas, e nem os vaivéns e a multiplicidade de trajetórias, verdadeiramente complexa, que temos verificado.

Em 1º de abril de 2013, em Porto Alegre, teve uma manifestação com 6 mil pessoas pedindo pela redução da tarifa, um número expressivo no contexto pré-junho. Além da pauta, no entanto, do ponto de vista qualitativo, ali já podiam se identificar alguns elementos sugestivos, como a incapacidade de algum partido dominar o protesto, a onipresença das redes sociais e do midiativismo, a ausência de lideranças fixas, e também um desejo de reocupar espaços alegadamente públicos, e democratizá-los em termos de gestão e acesso. Em Porto Alegre, naquele abril, pesquisadores já apontavam claramente ”uma nova cultura política”.

Essa nova cultura política dissidente, disseminada pelo mundo todo desde as revoluções no norte da África (a dita “primavera árabe”), no começo de 2011, conflui numa exigência que não é simplesmente por mais estado, por mais políticas públicas. Nisso, tem uma diferença em relação àquelas lutas mais antigas, cujo inimigo era o neoliberalismo, e que opunham à privatização e ao mercado, a razão pública e o estado. Na realidade, agora, está em questão o próprio conceito do público, de uma gestão estatal que tampouco corresponde à riqueza e processos de horizontalidade que esses movimentos exprimem e vivem, nas ocupações e coletivos autônomos, em seu dia a dia. Isso fica ainda mais evidente quando o movimento é reprimido. Os acampamentos europeus do 15-M e norte-americanos da Occupy, bem como as pequenas (porém qualitativamente relevantes) ocupas brasileiras, foram removidas de espaços públicos, em nome do interesse público. A mesma coisa têm acontecido, no Rio, com as favelas no caminho dos megaeventos, que têm sido removidas em nome do “interesse coletivo”, ou com o fechamento de bares em Porto Alegre, ou com os bailes do tipo fluxo de rua, perseguidos em São Paulo, ou com os indígenas desde sempre. Nesse sentido, Toni Negri e Michael Hardt tem um conceito que recoloca bem a questão: nem público (estatal), nem privado: comum. As bases materiais do comum estão, precisamente, nessa plenitude de formas, afetos e pensamento implicado nos novos movimentos, e é essa positividade que confere força para resistir a uma repressão que não vem apenas em nome da propriedade privada, como também da ordem pública. O comum, nesse sentido, é imediatamente constituinte, cria ele próprio suas linhas de organização, não se orientando apenas a reivindicar diante dos governos, da esfera representativa.

No Brasil, em particular, nos últimos 10 ou 15 anos aconteceu uma “revolução social”, devido a um conjunto de fatores estruturais e conjunturais, mas em meio ao que se podem apontar também algumas políticas e direitos conquistados pela população, e encampados pelos governos do PT. Houve uma inclusão social massiva, e isso tem duas faces. Por um lado, a expansão do capitalismo no Brasil, com o alargamento do mercado de trabalho e de consumo. Isto geralmente é apontado pelos críticos como negativo por si mesmo, na linha da crítica de um modelo de inclusão pelo consumo, que aliena e desorganiza. Por outro lado, houve um fortalecimento de dinâmicas produtivas e organizativas, um aumento do poder de ação, mobilidade, comunicação, que vem junto com o aprofundamento do mercado, na medida em que se intensificam outras relações de produção. Isto, a seu passo, costuma ser brandido por quem festeja o modelo do governo, na linha da “nova classe média” que vem para erradicar a “pobreza”. Apoiado nas pesquisas da rede de que participo, a UniNômade, eu diria que é preciso discordar de ambos, nem a versão pessimista que imputa ao outro a adesão passiva a um modelo, nem a celebração acrítica dos números. Trata-se de um fenômeno ambivalente, cheio de contradições e impasses, mas que também cria algumas oportunidades que podem levar o próprio modelo à subversão. Da mesma forma como compro um celular com wi fi para trabalhar, ter relações sociais e afetivas, ou mesmo para ostentar, essa mesma ferramenta pode ser usada também como luta política, para gerar conteúdo e fazer rede, inclusive para fazer frente à hegemonia da teles ou da grande mídia corporativa. Do mesmo modo como ganho em mobilidade, posso converter isso em mobilização. Existe uma virada por dentro da inclusão social e do consumo, não dá para simplesmente desqualificar a “nova classe média” como um grupo amorfo e passivo. Novas formas de organização social implicam novas formas de política: é preciso pesquisar os pontos em que a indignação pode se converter em ação política.

No Brasil, então, boa parte das condições produtivas e organizativas, que também explicam as jornadas de junho, está associada a essa “revolução social”. Os protestos e novos modos de organização foram a sua expressão política, o momento em que o desejo confinado por um modelo de representação política, trabalho e consumo, não conseguiu mais represar os processos de reapropriação e autonomização, que vinham subdimensionados ou simplesmente ignorados pelas forças no poder. Os teóricos e operadores do modelo de inclusão social se acomodaram em suas previsões, receitas e cálculos de governabilidade, enquanto um magma ia se formando e acumulando. Quando o vulcão explodiu, vários voltaram pras pranchetas, mas outros vários, em mecanismo defensivo e reativo, correram para tratar esse continente desconhecido como terra de ”índios” alienados e consumistas. Só que os índios estavam também se organizando, se confederando, se armando.

3.Qual a principal diferença entre as manifestações de junho e as de agora?

As jornadas de junho aconteceram e não vão se repetir. Seria erro esperar qualquer coisa parecida. No entanto, também é um erro achar que acabaram. Elas não foram efêmeras, e acionaram um genuíno ciclo no Brasil. Marcos Nobre, da UniCamp, fala que as revoltas de junho encerraram o período de redemocratização, quando a maioria das demandas era amortecida e mediada pelo sistema político representativo, e que começou o genuíno período de democratização, muito mais intenso e direto. De fato, o cenário brasileiro é de total efervescência e há a percepção que a política não é mais prerrogativa de governos, partidos e das páginas de política da mídia corporativa. Depois de junho, se têm mais grupos atravessados pela cultura política dissidente e muito bem organizados, que promovem assembleias, discussões, intervenções, encontros culturais, festas, ocupações e assentamentos, em cidades grandes, médias e pequenas.

A diferença está na maior capacidade de organizar e definir as pautas políticas das mobilizações, bem como de trabalhar a maior prazo, de ocupar a esfera da estratégia, podendo assim defender alternativas bem concretas para efetivar o direito à cidade e projetos alternativos de desenvolvimento. Isso pode avançar muito mais, apesar de toda a desqualificação e mesmo criminalização de alguns grupos, tome-se por exemplo, o MPL de São Paulo, objeto de uma perseguição inaceitável num estado de direito. E outra diferença está na miscigenação de grupos muito diferentes, numa grande heterogeneidade; por exemplo, no Rio, nas greves dos professores (outubro/2013), dos garis (março) ou dos rodoviários (abril-maio), todas à margem de sindicatos pelegos.

Como nem tudo são flores, o outro lado também se organizou. Contando com a aliança entre governo federal e estaduais, o poder estatal também sofisticou as formas de controle e monitoramento das redes sociais e midiativismo, e está tentando de várias maneiras cercar grupos que adotam táticas de ação mais direta, para dar premência e disputar o sentido das manifestações.  Essas ações, no entanto, no fundo enxugam gelo, dada a dimensão gigantesca dos dados que circulam, a organicidade flexível dos grupos, a distribuição da liderança e, como eu disse antes, a mobilização pode nascer onde menos se espera, visto que suas condições já existem, latentes e dispersas, nas formas como a sociedade brasileira passou a se estruturar nos últimos 10 ou 15 anos. Mais eficaz do que isso é a disseminação do medo, o esforço dos governos, mídia corporativa e até de uma nova “esquerda antiprotesto”, em corroborar uma imagem desproporcionalmente negativa das lutas, que é o exato oposto à realidade vivida nos lugares de organização, ocupação e cooperação desta cultura política dissidente.

4. De que maneira a proximidade das eleições interfere nas manifestações populares de massa? Existe uma apropriação da pauta de reivindicações pelos partidos?

Em primeiro lugar, várias campanhas eleitorais tentam se apropriar da riqueza afetiva, cognitiva e política dos novos movimentos, através de mecanismos publicitários descarados. Essa manobra tem sido rechaçada com sucesso. Se algum grupo tivesse conseguido captar a potência de mobilização de junho, certamente já estaria no poder, teria derrubado adversários, como o “Fora Collor” levou ao impeachment, em 1992. Minha pesquisa tem indicado que a maioria dos grupos está muito mais concentrada em construir seus próprios espaços de organização e autonomia, em produzir o comum, do que em tentar se inserir na disputa eleitoral ou participar do jogo dos partidos. Isso pode parecer evasivo, niilista, mas é o contrário. A percepção, talvez, seja que o niilismo está em continuar apostando nas estruturas representativas, inclusive numa esquerda que, diante de qualquer argumento, fala em “correlação de forças” e que se evadiu da rua. Pra uma inteira geração de ativistas, não adianta falar em legado, que antes era pior etc, os direitos conquistados já foram incorporados à paisagem e existe a percepção de que sempre se poderá lutar por eles, caso sejam ameaçados, não precisando de nenhum governo que paternalize isso. O próprio argumento evasivo do “menos pior” não faz nenhum sentido, quando as pessoas creem viver o “melhor”, o comum é o “melhor”, é pleno. Mesmo uma campanha pelo voto nulo, ou pela abstenção, hoje talvez seja não só melhor e mais afirmativa, como uma via importante para começar a mudar as coordenadas de um duelo eleitoral esvaziado.

O #NãoVaiTerCopa, por exemplo, também pode ser visto como uma tática de contorno das tentativas de captura e aparelhamento, já que é irrecuperável para uma campanha eleitoral, pelo menos alguma que transija com o bom mocismo reinante na esquerda que participa das esferas da representação.

5. Você sustenta que a violência estatal é menos surpreendente do que a tentativa discursiva de legitimá-la. A partir do momento em que a classe média passou a sentir também a violência policial, com as manifestações de junho, houve mudanças na percepção dessa violência?

O estado brasileiro está calibrado historicamente pra aplicar a violência, ou para tolerar que seja aplicada, sobre o indígena, o negro, o morador de favela, o morador em situação de rua, o dependente químico, o transgênero, os pobres em geral. O Brasil é um país onde um agente do estado pode subir qualquer morro e matar qualquer jovem negro que no dia seguinte sai no noticiário: “implicado com tráfico”. A gente passa a manteiga no pão e sumiu outro Amarildo, que não saberemos o nome. Mesmo um ator da Globo, nacionalmente conhecido, o DG, é assassinado e numa revista no dia seguinte aparecem insinuações de sua ligação com “traficantes”, essa senha secreta que autoriza a execução sumária. Está nas estatísticas. Agora, quando atinge brancos de famílias bem situadas, de bairros nobres, errou o alvo. Causa uma comoção gigantesca, mobiliza a grande mídia corporativa e praticamente nos convoca a chorar. A técnica é clara: chorar apenas quando mandam, como naquelas risadas enlatadas de programas de humor, enquanto perdemos a sensibilidade de chorar e se indignar diante do intolerável cotidiano. A polícia não matou na avenida porque sabe que a composição não é a mesma de quando vai reprimir revoltas em favelas. Veio a ordem para se conter. Isso mostra, primeiro, que a mortandade de negros e pobres nas favelas poderia ser evitada ou em muito mitigada. Segundo, que a mistura política entre brancos e negros, ricos e pobres, em lutas que contemplem também a favela (por exemplo, com a campanha “Cadê o Amarildo”), tem um potencial subversivo muito grande em termos de expor a violência policial e disparar campanhas. E expor não só a violência que acontece nos pogroms durante “dispersão” de manifestações, como também, e sobretudo, aquela estrutural e endêmica que marca um país que passou por colonização, império escravocrata e várias ditaduras.



Fonte: Quadrado dos Loucos

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