setembro 01, 2014

"O que é o Iluminismo? – Michel Foucault" (Territórios de Filosofia)

PICICA: "Kant me parece ter fundado as duas grandes tradições críticas entre as quais está dividida a filosofia moderna. Diríamos que em sua grande obra crítica, Kant colocou, fundou esta tradição da filosofia que coloca a questão das condições sobre as quais um conhecimento verdadeiro é possível e, a partir daí, toda uma parte da filosofia moderna desde o séc. XIX se apresentou, se desenvolveu como uma analítica da verdade.

Mas existe na filosofia moderna e contemporânea um outro tipo de questão, um outro modo de interrogação crítica: é esta que se viu nascer justamente na questão da Aufklärung ou no texto sobre a revolução; “O que é nossa atualidade? Qual é o campo atual das experiências possíveis?”. Não se trata de uma analítica da verdade, consistiria em algo que se poderia chamar de analítica do presente, uma ontologia de nós mesmos e, me parece que a escolha filosófica na qual nos encontramos confrontados atualmente é a seguinte: pode­-se optar por uma filosofia crítica que se apresenta como uma filosofia analítica da verdade em geral, ou bem se pode optar por um pensamento crítico que toma a forma de uma ontologia de nós mesmos, de uma ontologia da atualidade, é esta forma de filosofia que de Hegel à Escola de Frankfurt, passando por Nietzsche e Max Weber, fundou uma forma de reflexão na qual tenho tentado trabalhar."



O que é o Iluminismo? – Michel Foucault


O que é o Iluminismo?

Michel Foucault.*

Parece­-me que este texto faz aparecer um novo tipo de questão no campo da reflexão filosófica. Claramente, este não é certamente nem o primeiro texto na história da filosofia, nem mesmo o único texto de Kant que tematiza uma questão que diz respeito à história. Encontra­-se em Kant textos que colocam à história uma questão de origem: o texto mesmo sobre os inícios da história, o texto sobre a definição do conceito de raça; outros textos colocam à história a questão de sua forma de realização: assim, neste mesmo ano de 1784, A idéia de uma história universal desde o ponto de vista cosmopolita[i]. Em outros, por fim, se interroga sobre a finalidade interna organizando os processos históricos, assim como no texto dedicado ao emprego de princípios teleológicos. Todas estas questões, aliás estreitamente ligadas, atravessam, com efeito, as análises de Kant a propósito da história. Parece-­me que o texto de Kant sobre a Aufklärung é um texto bastante diferente. Ele não coloca diretamente, e em todo caso, nenhuma destas questões, nem a da origem nem, apesar das aparências, a da realização; ele coloca, de uma maneira relativamente discreta, quase lateral, a questão da teleologia imanente ao processo mesmo da história.

A questão que parece surgir pela primeira vez neste texto de Kant, é a questão do presente, a questão da atualidade: o que é que acontece hoje? O que acontece agora? E o que é esse “agora” no interior do qual estamos, uns e outros, e que define o momento onde escrevo? Esta não é a primeira vez que se encontra, na reflexão filosófica, referências ao presente, pelo menos como situação histórica determinada e que pode ter valor para a reflexão filosófica. Apesar de tudo, quando Descartes, no início do Discurso do Método, conta seu próprio itinerário e o conjunto de decisões filosóficas tomadas ao mesmo tempo para si e para a filosofia, ele se refere antes a uma maneira explícita, a algo que poderia ser considerado como uma situação histórica na ordem do conhecimento e das ciências de sua própria época. Mas neste gênero de referências, trata­se de encontrar, nesta configuração designada como presente, um motivo para uma decisão filosófica; em Descartes, não encontramos uma questão que seria da ordem: “O que é precisamente este presente ao qual pertenço?”. Ora, me parece que a questão à qual Kant responde, aliás, àquela que ele é obrigado a responder, posto que lhe foi colocada, esta questão é outra. Esta não é simplesmente: o que é que, na situação atual, pode determinar tal ou qual decisão de ordem filosófica? A questão centra­se sobre o que é este presente, centra­se sobre a determinação de um certo elemento do presente que se trata de reconhecer, de distinguir, de decifrar no meio de todos os outros. O que é que, no presente, faz sentido para uma reflexão filosófica. 

Na resposta que Kant tenta dar a essa interrogação, ele pretende mostrar de que forma esse elemento torna­se o portador e o signo de um processo que concerne ao pensamento, o conhecimento, a filosofia; mas trata­se de mostrar em que e como aquele que fala enquanto pensador, enquanto cientista, enquanto filósofo, ele mesmo faz parte desse processo e (mais que isso) como ele tem um certo papel a desempenhar neste processo, no qual ele então se encontra, ao mesmo tempo, como elemento e ator.

Em resumo, parece­-me que se viu aparecer no texto de Kant a questão do presente como acontecimento filosófico ao qual pertence o filósofo que fala. Se se considera a filosofia como uma forma de prática discursiva que tem sua própria história, parece-­me que com esse texto sobre a Aufklärung, vê­se a filosofia – e penso que não forço as coisas demais ao dizer que é a primeira vez – problematizar sua própria atualidade discursiva: atualidade que ela interroga como acontecimento, como um acontecimento do qual ela deve dizer o sentido, o valor, a singularidade filosófica e no qual ela tem que encontrar ao mesmo tempo sua própria razão de ser e o fundamento daquilo que ela diz. Deste modo, vê­se que, para o filósofo, colocar a questão de seu pertencimento a este presente, não será de forma alguma a questão de sua filiação a uma doutrina ou a uma tradição; não será mais simplesmente a questão de seu pertencimento a uma comunidade humana em geral, mas o seu pertencimento ao um certo “nós”, a um nós que se relacione com um conjunto cultural característico de sua própria atualidade.
É este nós que está a caminho de tornar­se para o filósofo o objeto de sua própria reflexão; e por isso mesmo se afirma a impossibilidade de fazer a economia da interrogação para o filósofo acerca de seu pertencimento singular a esse nós. Tudo isso, a filosofia como problematização de uma atualidade e como interrogação para o filósofo dessa atualidade da qual faz parte e em relação à qual tem que se situar, poderia caracterizar a filosofia como discurso da modernidade e sobre a modernidade.

Qual é esta minha atualidade? Qual é o sentido desta atualidade? E o que faço quando falo desta atualidade? É nisso que consiste, me parece, essa nova interrogação sobre a modernidade.
Isto não é nada mais que uma pista que convém explorar com um pouco mais de precisão. Seria necessário tentar fazer a genealogia, não tanto da noção de modernidade, mas da modernidade como questão. E, em todo caso, mesmo se tomo o texto de Kant como ponto de emergência desta questão, é claro que faz parte de um processo histórico muito amplo do qual seria preciso conhecer as medidas. Seria, sem dúvida, um eixo interessante para o estudo do séc. XVIII em geral e mais particularmente da Aufklärung, que se interroga sobre o seguinte fato: a Aufklärung chama a si mesma de Aufklärung; ela é um processo cultural sem dúvida muito singular que sendo consciente de si mesmo, nomeando­se, situando­se em relação do seu passado e em relação com seu futuro e designando as operações que devia efetuar no interior de seu próprio presente.

Apesar de tudo, a Aufklärung não é a primeira época que se nomeia a si mesma em lugar de simplesmente se caracterizar, segundo um velho hábito, como período de decadência ou de prosperidade, de esplendor ou miséria, se nomeia através de certo evento marcado em uma história geral do pensamento, da razão e do saber, e no interior da qual ela tem que desempenhar o seu próprio papel?

A Aufklärung é uma época, uma época que formula ela mesma seu lema, seu preceito e que diz o que se tem de fazer, tanto em relação à história geral do pensamento, quanto em relação a seu presente e às formas de conhecimento, de saber, de ignorância e de ilusão nas quais ela sabe reconhecer sua situação histórica.

Parece-­me que nesta questão da Aufklärung vê-­se uma das primeiras manifestações de uma certa maneira de filosofar que teve uma longa história desde dois séculos. Uma das grandes funções da filosofia dita “moderna” (esta que se pode situar o início no finalzinho do século XVIII) é de se interrogar sobre sua própria atualidade.

Poderíamos seguir a trajetória desta modalidade da filosofia através do século XIX até os dias de hoje. A única coisa que eu gostaria de frisar neste momento é que esta questão tratada por Kant em 1784 para responder uma questão que lhe foi colocada desde fora, Kant não a esqueceu. Ele vai colocá­la novamente e tentar respondê­la em relação a um outro acontecimento que também não deixou de interrogar­se. Este acontecimento, claramente, é a Revolução Francesa.

Em 1798, Kant de alguma forma dá uma seqüência ao texto de 1784. Em 1784, ele tentava responder à questão que se colocava: “O que é esta Aufklärung da qual fazemos parte?” e em 1798 ele reponde a uma questão que a atualidade lhe colocava mas que fora formulada desde 1794 por toda a discussão filosófica na Alemanha. Esta questão era: “O que é a revolução?”
Vocês sabem que O conflito das faculdades[ii] é uma coletânea de três dissertações sobre as relações entre as diferentes faculdades que constituem a Universidade. A segunda dissertação diz respeito ao conflito entre a faculdade de filosofia e a faculdade de direito. Toda a área das relações entre filosofia e direito se ocupa da questão: “Existe um progresso constante no gênero humano?” E é para responder a esta questão que Kant, no parágrafo V dessa dissertação, desenvolve o seguinte raciocínio: Se se quer responder à questão “Existe um progresso constante no gênero humano?” é necessário determinar se existe uma causa possível desse progresso, mas, uma vez estabelecida essa possibilidade, é preciso mostrar que essa causa atua efetivamente e, para isto, realçar um certo acontecimento que mostre que a causa atua realmente. Em suma, a citação de uma causa não pode nunca determinar os efeitos possíveis, ou mais exatamente a possibilidade do efeito, mas a realidade de um efeito apenas pode ser estabelecida pela existência de um acontecimento.

Não é suficiente que se siga a trama teleológica que torna possível o progresso, é preciso isolar, no interior da história, um acontecimento que tenha valor de signo.

Signo de que? Signo da existência de uma causa, de uma causa permanente, que ao longo de toda a história guiaram os homens pela via do progresso. Causa constante da qual se deve então mostrar que agiu outras vezes, que atua no presente e que atuará posteriormente. O acontecimento, em conseqüência, que nos permite decidir se há progresso, será um signo “rememorativum, demostrativum, pronosticum”. É preciso que este seja um signo que mostra que isso tem sido sempre como é (é o signo rememorativo), um signo que mostre que as coisas atualmente se passam assim também (é o demonstrativo), que enfim mostre que as coisas permanecerão assim (signo prognóstico). E é assim que poderemos estar seguros de que a causa que torna possível o progresso não atua apenas em um momento dado, mas que ela garante uma tendência geral do gênero humano em sua totalidade em marchar no sentido do progresso. Eis ai a questão: “Existe em nosso redor um acontecimento que seja rememorativo, demonstrativo e prognóstico de um progresso que permita levar o gênero humano em sua totalidade?”

A resposta dada por Kant, vocês podem adivinhar; mas eu gostaria de ler a passagem pela qual ele introduz a Revolução como acontecimento que tem esse valor de signo. “Não espereis, escreve ele no início do parágrafo VI, que este evento consista em altos gestos ou delitos importantes cometidos pelos homens, em razão de que o que era grande se torna pequeno ou o que era pequeno se torna grande, nem em antigos e brilhantes edifícios que desaparecem como que por magia enquanto que em seu lugar surgem outros como que saídos das profundezas da terra. Não se trata de nada disto”.

Neste texto, Kant faz, evidentemente, alusão às reflexões tradicionais que buscam as provas do progresso e do não progresso na espécie humana na queda dos impérios, nas grandes catástrofes em meio dos quais Estados estabelecidos desaparecem, nos reveses das fortunas que diminuem as posses e que fazem aparecer novas. Prestem atenção, diz Kant a seus leitores, não é nos grandes acontecimentos que devemos buscar o signo rememorativo, demonstrativo e prognóstico do progresso; é nos acontecimentos bem menos grandiosos, bem menos perceptíveis. Não se pode fazer essa análise do presente no que diz respeito a esses valores significativos sem nos entregar a um cálculo que permita dar a isso que, aparentemente, é sem significação e valor, a significação e o valor que buscamos. O que é esse acontecimento que não é, então, um “grande” acontecimento? Há evidentemente um paradoxo em dizer que a revolução não é um acontecimento ruidoso. Não é o exemplo mesmo de um acontecimento que inverte, que faz que o que era grande se torne pequeno e o que era pequeno se torne grande, e que devora as estruturas que pareciam as mais sólidas da sociedade e dos Estados? Acontece que para Kant, não é esse aspecto da revolução que faz sentido. O que constitui no acontecimento um valor rememorativo, demonstrativo e prognóstico não é o drama revolucionário por si, as façanhas revolucionárias nem os gestos que os acompanham. O que é significativo é a maneira pela qual a revolução se faz espetáculo, é a maneira pela qual ela é acolhida em torno dos espectadores que não participam, mas que olham, que assistem e que, ou bem ou mal, se deixam arrastar por ele. Não é o transtorno revolucionário que constitui a prova do progresso; em primeiro lugar, sem dúvida, porque a revolução não faz mais que inverter as coisas e também porque se se tivesse de refazer esta revolução, não se a refaria. Há, neste sentido, um texto extremamente interessante: “Pouco importa, disse ele, se a revolução de um povo cheio de espírito, como a que vimos perto de nossos dias [trata­se da Revolução Francesa], pouco importa se ela triunfa ou fracassa, pouco importa se ela acumula miséria e atrocidade até um ponto tal onde um homem sensato que a refaria com a esperança de ter êxito não resolveria nunca, entretanto, tentar a experiência a esse preço”. Não é então o processo revolucionário que é importante, pouco importa se triunfa ou fracassa, isso não tem a ver com o progresso, ou pelo menos com o signo de progresso que nós procuramos. O fracasso ou triunfo da revolução não são signos do progresso ou signo que tem progresso. Mas ainda que houvesse a possibilidade de alguém conhecer a revolução, de saber como ela se desenrola e, ao mesmo tempo, de ter êxito nela, e ainda, calculando o preço necessário a esta revolução, este homem sensato não a faria. Então, como “reviravolta”, como empreendimento que pode triunfar ou fracassar, como preço pesado a pagar, a revolução, em si mesma, não pode ser considerada como o signo de que existe uma causa capaz de sustentar, através da história, o progresso constante da humanidade.

Por outro lado, o que faz sentido e o que vai constituir o signo do progresso é que, em torno da revolução, diz Kant, há “uma simpatia de aspiração que beira o entusiasmo”. O que é importante na revolução, não é a revolução em si, mas o que se passa na cabeça dos que não a fazem ou, em todo caso, que não são os atores principais; é a relação que eles mantêm com essa revolução da qual eles não são agentes ativos. O entusiasmo para com a revolução é signo, segundo Kant, de uma disposição moral da humanidade; essa disposição se manifesta permanentemente de duas formas: primeiramente, no direito que todos os povos têm de se dar a constituição política que lhes convêm e no princípio conforme o direito e a moral de uma constituição política que evite, em razão de seus princípios, toda guerra ofensiva. É precisamente essa disposição da qual a humanidade é portadora em direção a uma tal constituição que o entusiasmo pela revolução significa. A revolução como espetáculo e não como gesticulação, como palco[iii] do entusiasmo para aqueles que a assistem e não como principio de transtorno para os que dela participam, é um “signum rememorativum”, pois ela revela esta disposição desde a origem; é um “signum demostrativum”, porque ela mostra a eficácia presente desta disposição; e é também um “signum prognosticum”, pois se existem resultados da revolução que não podem ser recolocados em questão, não se pode esquecer da disposição que se revelou através dela.

Sabe­-se, igualmente, que esses são os dois elementos, a constituição política escolhida à vontade pelos homens e uma constituição política que evite a guerra, é isso igualmente o processo da Aufklärung, isto é, a revolução é antes o que finaliza e continua o processo mesmo da Aufklärung e é em certa medida também que a Aufklärung e a revolução são dois acontecimentos que não se podem mais esquecer. “Eu sustento, diz Kant, que posso predizer ao gênero humano, sem espírito profético, a partir das aparências e signos precursores de nossa época, que alcançará este fim, isto é, chegará a um estado tal que os homens possam se dar a constituição que eles querem e a constituição que impedirá a guerra ofensiva, de tal modo que, a partir de então estes processos serão recolocados em questão. Um tal fenômeno na história da humanidade não se pode mais esquecer, posto que revelou na natureza humana uma disposição, uma faculdade de progredir, de maneira tal que político algum poderia, mesmo que por meios sutis, separá-­la do curso anterior dos acontecimentos, somente a natureza e a liberdade reunidas na espécie humana seguindo os princípios internos do direito estariam em condições de anunciar ainda que de uma maneira indeterminada e como um acontecimento contingente. Mas se o objetivo visado para esse acontecimento não era ainda esperado, quando mesmo a revolução ou a reforma da constituição de um povo tenham finalmente fracassado, ou mesmo se, passado um certo espaço de tempo, tudo retomasse a rotina precedente como predizem agora certos políticos, esta profecia filosófica não perderia em nada sua força. Porque este acontecimento é por demais importante, por demais imbricado com os interesses da humanidade e de uma influência por demais vasta sobre todos as partes do mundo, por não mais poder ressurgir na memória do povo em circunstâncias favoráveis ou ser recordado nos momentos de crise de novas tentativas do mesmo gênero, pois em um assunto tão importante para a espécie humana, é necessário que a constituição que se aproxima alcance em um certo momento esta solidez que o ensino das experiências repetidas não deixará de marcar em todos os espíritos”.

A revolução, de todo modo, se arriscará sempre de cair na rotina, mas com acontecimento, cujo conteúdo carece de importância, sua existência atesta uma virtualidade permanente e que não pode ser esquecida: para a história futura, é a garantia da continuidade mesma, de um passo para o progresso.

Eu pretendia somente de situar este texto de Kant sobre a Aufklärung; logo tentarei lê­lo um pouco mais de perto. Eu pretendia também ver como, apenas quinze anos mais tarde, Kant refletiria sobre esta outra atualidade de outro modo muito dramática que era a Revolução Francesa. Nesses dois textos está de algum modo a origem ou ponto de partida de toda uma dinastia de questões filosóficas. Estas duas questões “O que é a Aufklärung? e O que é a revolução?” são as formas sob as quais Kant colocou a questão de sua própria atualidade. São também, penso, as duas questões que não cessam de martelar senão toda a filosofia moderna desde o séc. XIX, ao menos uma grande parte desta filosofia. Depois de tudo, me parece que a Aufklärung, ao mesmo tempo, como acontecimento singular inaugurador da modernidade européia e como processo permanente que se manifesta na história da razão, no desenvolvimento e instauração de formas de racionalidade e de técnica, a autonomia e a autoridade do saber, não é simplesmente para nós um episódio na história das idéias. Ela é uma questão filosófica, inscrita, desde o séc. XVIII, em nosso pensamento. Deixemos com sua piedade aqueles que querem que se guarde viva e intacta a herança da Aufklärung. Esta piedade é claramente a mais tocante das traições. Não são os restos da Aufklärung que se trata de preservar, é a questão mesma deste acontecimento e de seus sentidos (a questão da historicidade do pensamento universal) que é preciso manter presente e guardar no espírito como o que deve ser pensado.

A questão da Aufklärung ou, ainda, da razão, como problema histórico, de maneira mais ou menos oculta, tem atravessado todo o pensamento filosófico desde Kant até hoje. A outra face da atualidade que Kant encontrou é a revolução: a revolução ao mesmo tempo como acontecimento, como ruptura e como tormento na história, como fracasso, mas ao mesmo tempo como valor, como signo da espécie humana. Ainda ai, a questão para a filosofia não é de determinar qual é a parte da revolução que conviria preservar e fazer valer como modelo. A questão é de saber o que é preciso fazer com essa vontade de revolução, com este “entusiasmo” para a revolução que é outra coisa que o empreendimento revolucionário mesmo. As duas questões “O que é a Aufklärung?” e “O que fazer com a revolução?” definem, as duas, o campo de interrogação que dirige­se para o que somos nós em nossa atualidade.

Kant me parece ter fundado as duas grandes tradições críticas entre as quais está dividida a filosofia moderna. Diríamos que em sua grande obra crítica, Kant colocou, fundou esta tradição da filosofia que coloca a questão das condições sobre as quais um conhecimento verdadeiro é possível e, a partir daí, toda uma parte da filosofia moderna desde o séc. XIX se apresentou, se desenvolveu como uma analítica da verdade.

Mas existe na filosofia moderna e contemporânea um outro tipo de questão, um outro modo de interrogação crítica: é esta que se viu nascer justamente na questão da Aufklärung ou no texto sobre a revolução; “O que é nossa atualidade? Qual é o campo atual das experiências possíveis?”. Não se trata de uma analítica da verdade, consistiria em algo que se poderia chamar de analítica do presente, uma ontologia de nós mesmos e, me parece que a escolha filosófica na qual nos encontramos confrontados atualmente é a seguinte: pode­-se optar por uma filosofia crítica que se apresenta como uma filosofia analítica da verdade em geral, ou bem se pode optar por um pensamento crítico que toma a forma de uma ontologia de nós mesmos, de uma ontologia da atualidade, é esta forma de filosofia que de Hegel à Escola de Frankfurt, passando por Nietzsche e Max Weber, fundou uma forma de reflexão na qual tenho tentado trabalhar.


*Originalmente publicado em: «Qu’est­ce que les Lumières?», Magazine Littéraire, nº 207, mai 1984, pp. 35­39. (Retirado do curso de 5 de Janeiro de 1983, no Collège de France). v Traduzido a partir de FOUCAULT, Michel. Dits et Écrits. Paris: Gallimard, 1994, Vol. IV, pp. 679­688. Por Wanderson Flor do Nascimento.

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