PICICA: "Eric Hobsbawn é o paradigma do
intelectual que aproveitou bem a vida. Sua morte priva ao mundo de uma
aguda inteligência, de uma erudição racional e científica e de uma
mentalidade popular e simples que colocou os fatos obscurecidos pela
petulância da academia tradicional numa linguagem limpa, lúcida e
acessível aos grandes grupos. Aliás, ele descobriu fatos que nunca
tinham sido percebidos, e estabeleceu relações que nenhum outro
historiador (mesmo marxista) havia reconhecido antes."
Carlos Lungarzo – Um Futuro sem Eric Hobsbawm
Eric Hobsbawn é o paradigma do
intelectual que aproveitou bem a vida. Sua morte priva ao mundo de uma
aguda inteligência, de uma erudição racional e científica e de uma
mentalidade popular e simples que colocou os fatos obscurecidos pela
petulância da academia tradicional numa linguagem limpa, lúcida e
acessível aos grandes grupos.
Por Carlos Alberto Lungarzo(*)
Não é possível
dizer que a morte de uma pessoa de 95 anos, em pleno estado de lucidez e
produtividade, seja uma crueldade do destino. O historiador marxista Eric John Ernest Hobsbawm (1917-2012),
nascido numa família judia do Egito e grande símbolo da
intelectualidade da Grã Bretanha, viveu uma vida emocionante. A
sociedade inglesa hesitou em reconhecer o talento de um dos mais
brilhantes inimigos dos sistemas em que se baseou o florescimento
britânico: o capitalismo e o imperialismo. Só em 1970, com 53 anos, foi
nomeado full professor, um cargo que merecia desde duas décadas
antes. Como ele mesmo disse, o macartismo britânico era um “macartismo
brando”: “ele não te bota na rua, mas também não te permite avançar”.
Eric Hobsbawn é o paradigma do
intelectual que aproveitou bem a vida. Sua morte priva ao mundo de uma
aguda inteligência, de uma erudição racional e científica e de uma
mentalidade popular e simples que colocou os fatos obscurecidos pela
petulância da academia tradicional numa linguagem limpa, lúcida e
acessível aos grandes grupos. Aliás, ele descobriu fatos que nunca
tinham sido percebidos, e estabeleceu relações que nenhum outro
historiador (mesmo marxista) havia reconhecido antes.
De fato, pode ser considerado o primeiro
historiador do século 20, que abordou com critério científico (e não
apenas partidário, como Lenin ou Stalin) a realidade histórica da luta
de classes. Este campo foi aberto por Marx e Engels, mas depois foi
obscurecido pela banalização da historiografia nobiliária ou
militarista, que centra seu estudo em “heróis” e “próceres”.
Deve ter-se em conta que muitos
intelectuais marxistas de verdadeiro peso, como Antonio Gramsci e György
Lukács, elaboraram teorias que foram originais, mas tinham uma forte
motivação prática na militância. Eles queriam construir ferramentas
conceituais para o triunfo de suas causas, mas talvez não houvessem
estudado com a necessária profundidade os fenômenos dos quais essa
vitória dependia.
A Escola de Frankfurt, a grande criadora
do nexo entre a temática clássica do marxismo e a análise da
subjetividade humana, teve algumas contribuições capitais representadas
por Herbert Marcuse, Erich Fromm e Wilhelm Reich. Sem eles, seria
impossível entender a motivação psicológica de fatos cruciais do século
20, como o nazismo, o fascismo, o racismo e, em geral, a brutalização
das massas e a construção dos fetiches religiosos. Eles descobriram que a
causa da crueldade e a barbárie era a repressão do traço mais
emancipador dos humanos: a sexualidade.
Neste sentido, a obra conjunta da Escola
de Frankfurt teve muito maior impacto na luta pela liberdade que o
trabalho de Hobsbawm. Mas a Escola não quis ou não pôde dotar suas
descobertas de rigor científico, preferindo manter seus valiosos achados
no nível de intuição e da heurística.
Trabalhando num plano menos ambicioso, o
historiador anglo-egípcio consegue harmonizar vários fatores da
pesquisa e da exposição sócio histórica, que não eram integrados com
esse nível de coerência desde os clássicos trabalhos historiográficos de
Marx e Engels. Compare, por exemplo, A Era do Capital, de
Hobsbawn com os estudos históricos dos fundadores do marxismo na mesma
época. (Uma fonte para esta tarefa pode ser a coletânea Marx-Engels, Geschichte und Politik, ed. Fisher)
Basicamente, os três principais fatores foram:
(a) Informação histórica relevante,
inteligentemente escolhida, cuidadosamente justificada, rigorosamente
descrita e verificada. (b) Análise profunda das consequências desse
saber histórico para abordar o presente.
(c) Extrema clareza de sua exposição, que, como aconteceu com Marx,
Engels e Kropotkin, transformava conhecimentos profundos em matéria
acessível para os leitores mais simples.
Se nos cingirmos à qualidade científica,
à clareza didática e à capacidade de inserir as descobertas na
perspectiva histórica, Hobsbawn pode ser comparado apenas com poucos
pesquisadores marxistas nas ciências humanas. Por exemplo, com os
economistas Ernest Mandel e Oskar Lange, os cientistas sociais Leo
Huberman, Paul Baran e Paul M. Sweezy, o sociólogo Thomas Bottomore, o
historiador Perry Anderson e alguns outros. Mas, ele conseguiu fazer um
deciframento muito amplo dos fenômenos históricos dos séculos 19 e 20,
enquanto os outros colegas desenvolveram pesquisas mais técnicas e
circunscritas.
Em outros aspectos de sua atividade,
Hobsbawm há sido criticado por marxistas independentes e por liberais de
esquerda, por sua filiação ao Partido Comunista Britânico e sua
permanência nele, apesar de todas as atrocidades stalinistas. Mas, em
realidade, sua posição neste ponto é confusa.
Ele criticou a invasão da URSS à Hungria
em 1956 e à Tchecoslováquia em 1967, mas, diferentemente da enorme
maioria dos intelectuais europeus, não foi capaz de romper com o
partido. Possivelmente (como milhões de outras pessoas de sua geração)
sofresse do feroz trauma deixado pelo nazismo, e achava que a União
Soviética devia ser admirada como um símbolo da resistência.
Hobsbawm deve ser considerado como um
dos maiores aplicadores dos critérios científicos e historiográficos
marxistas na análise da realidade social dos séculos 19 e 20, incluindo o
estudo dos primitivos grupos revolucionários espontâneos descritos com
comovedora beleza em Primitive Rebels.
Entretanto, seu posicionamento sobre os
sacrifícios massivos da sociedade para atingir um nível mais alto de
desenvolvimento histórico (como a luta semi-suicida de milhões de russos
para proteger seu sistema social dos nazistas) é ambíguo. Por um lado,
ele parece justificar o sacrifício individual em prol de uma estrutura
abstrata e genérica como o “estado socialista”, em oposição, nesse
sentido, ao humanismo marxista da Escola de Frankfurt e do próprio Marx
da juventude. Por outro, o fracasso do “socialismo real” o afundou na
decepção e na necessidade de revisar suas propostas.
No entanto, o grande historiador não
deve ser julgado como ideólogo nem como militante, papeis nos quais não
teve destaque nem pretendeu ter. Mas devemos lembrar que o estudo
histórico é um processo essencial para construir um projeto racional e
humano de sociedade. Aí, nas descobertas de novos fatos, na percepção de
conexões entre fenômenos históricos diversos e na capacidade de
interpretá-los de maneira clara e objetiva, aí está o mérito do velho
Eric. Não podemos pedir mais dele.
*Carlos Alberto Lungarzo é professor titular da UniCamp e membro da Anistia Internacional (registro: 2152711). Colabora com o “Quem Tem Medo da Democracia?”, onde mantém a coluna DH em Foco.
Fonte: QTMD?
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