outubro 04, 2012

"Um Futuro sem Eric Hobsbawm", por Carlos Alberto Lungarzo

PICICA: "Eric Hobsbawn é o paradigma do intelectual que aproveitou bem a vida. Sua morte priva ao mundo de uma aguda inteligência, de uma erudição racional e científica e de uma mentalidade popular e simples que colocou os fatos obscurecidos pela petulância da academia tradicional numa linguagem limpa, lúcida e acessível aos grandes grupos. Aliás, ele descobriu fatos que nunca tinham sido percebidos, e estabeleceu relações que nenhum outro historiador (mesmo marxista) havia reconhecido antes." 

Carlos Lungarzo – Um Futuro sem Eric Hobsbawm


Eric Hobsbawn é o paradigma do intelectual que aproveitou bem a vida. Sua morte priva ao mundo de uma aguda inteligência, de uma erudição racional e científica e de uma mentalidade popular e simples que colocou os fatos obscurecidos pela petulância da academia tradicional numa linguagem limpa, lúcida e acessível aos grandes grupos.
Por Carlos Alberto Lungarzo(*)

Eric Hobsbawm durante encontro com Lula em 2011.

Não é possível dizer que a morte de uma pessoa de 95 anos, em pleno estado de lucidez e produtividade, seja uma crueldade do destino. O historiador marxista Eric John Ernest Hobsbawm (1917-2012), nascido numa família judia do Egito e grande símbolo da intelectualidade da Grã Bretanha, viveu uma vida emocionante. A sociedade inglesa hesitou em reconhecer o talento de um dos mais brilhantes inimigos dos sistemas em que se baseou o florescimento britânico: o capitalismo e o imperialismo. Só em 1970, com 53 anos, foi nomeado full professor, um cargo que merecia desde duas décadas antes. Como ele mesmo disse, o macartismo britânico era um “macartismo brando”: “ele não te bota na rua, mas também não te permite avançar”.

Eric Hobsbawn é o paradigma do intelectual que aproveitou bem a vida. Sua morte priva ao mundo de uma aguda inteligência, de uma erudição racional e científica e de uma mentalidade popular e simples que colocou os fatos obscurecidos pela petulância da academia tradicional numa linguagem limpa, lúcida e acessível aos grandes grupos. Aliás, ele descobriu fatos que nunca tinham sido percebidos, e estabeleceu relações que nenhum outro historiador (mesmo marxista) havia reconhecido antes.

De fato, pode ser considerado o primeiro historiador do século 20, que abordou com critério científico (e não apenas partidário, como Lenin ou Stalin) a realidade histórica da luta de classes. Este campo foi aberto por Marx e Engels, mas depois foi obscurecido pela banalização da historiografia nobiliária ou militarista, que centra seu estudo em “heróis” e “próceres”.

Deve ter-se em conta que muitos intelectuais marxistas de verdadeiro peso, como Antonio Gramsci e György Lukács, elaboraram teorias que foram originais, mas tinham uma forte motivação prática na militância. Eles queriam construir ferramentas conceituais para o triunfo de suas causas, mas talvez não houvessem estudado com a necessária profundidade os fenômenos dos quais essa vitória dependia.

A Escola de Frankfurt, a grande criadora do nexo entre a temática clássica do marxismo e a análise da subjetividade humana, teve algumas contribuições capitais representadas por Herbert Marcuse, Erich Fromm e Wilhelm Reich. Sem eles, seria impossível entender a motivação psicológica de fatos cruciais do século 20, como o nazismo, o fascismo, o racismo e, em geral, a brutalização das massas e a construção dos fetiches religiosos. Eles descobriram que a causa da crueldade e a barbárie era a repressão do traço mais emancipador dos humanos: a sexualidade.

Neste sentido, a obra conjunta da Escola de Frankfurt teve muito maior impacto na luta pela liberdade que o trabalho de Hobsbawm. Mas a Escola não quis ou não pôde dotar suas descobertas de rigor científico, preferindo manter seus valiosos achados no nível de intuição e da heurística.

Trabalhando num plano menos ambicioso, o historiador anglo-egípcio consegue harmonizar vários fatores da pesquisa e da exposição sócio histórica, que não eram integrados com esse nível de coerência desde os clássicos trabalhos historiográficos de Marx e Engels. Compare, por exemplo, A Era do Capital, de Hobsbawn com os estudos históricos dos fundadores do marxismo na mesma época. (Uma fonte para esta tarefa pode ser a coletânea Marx-Engels, Geschichte und Politik, ed. Fisher)

Basicamente, os três principais fatores foram:

(a) Informação histórica relevante, inteligentemente escolhida, cuidadosamente justificada, rigorosamente descrita e verificada. (b) Análise profunda das consequências desse saber histórico para abordar o presente. (c) Extrema clareza de sua exposição, que, como aconteceu com Marx, Engels e Kropotkin, transformava conhecimentos profundos em matéria acessível para os leitores mais simples.

Se nos cingirmos à qualidade científica, à clareza didática e à capacidade de inserir as descobertas na perspectiva histórica, Hobsbawn pode ser comparado apenas com poucos pesquisadores marxistas nas ciências humanas. Por exemplo, com os economistas Ernest Mandel e Oskar Lange, os cientistas sociais Leo Huberman, Paul Baran e Paul M. Sweezy, o sociólogo Thomas Bottomore, o historiador Perry Anderson e alguns outros. Mas, ele conseguiu fazer um deciframento muito amplo dos fenômenos históricos dos séculos 19 e 20, enquanto os outros colegas desenvolveram pesquisas mais técnicas e circunscritas.

Em outros aspectos de sua atividade, Hobsbawm há sido criticado por marxistas independentes e por liberais de esquerda, por sua filiação ao Partido Comunista Britânico e sua permanência nele, apesar de todas as atrocidades stalinistas. Mas, em realidade, sua posição neste ponto é confusa.

Ele criticou a invasão da URSS à Hungria em 1956 e à Tchecoslováquia em 1967, mas, diferentemente da enorme maioria dos intelectuais europeus, não foi capaz de romper com o partido. Possivelmente (como milhões de outras pessoas de sua geração) sofresse do feroz trauma deixado pelo nazismo, e achava que a União Soviética devia ser admirada como um símbolo da resistência.

Hobsbawm deve ser considerado como um dos maiores aplicadores dos critérios científicos e historiográficos marxistas na análise da realidade social dos séculos 19 e 20, incluindo o estudo dos primitivos grupos revolucionários espontâneos descritos com comovedora beleza em Primitive Rebels.

Entretanto, seu posicionamento sobre os sacrifícios massivos da sociedade para atingir um nível mais alto de desenvolvimento histórico (como a luta semi-suicida de milhões de russos para proteger seu sistema social dos nazistas) é ambíguo. Por um lado, ele parece justificar o sacrifício individual em prol de uma estrutura abstrata e genérica como o “estado socialista”, em oposição, nesse sentido, ao humanismo marxista da Escola de Frankfurt e do próprio Marx da juventude. Por outro, o fracasso do “socialismo real” o afundou na decepção e na necessidade de revisar suas propostas.

No entanto, o grande historiador não deve ser julgado como ideólogo nem como militante, papeis nos quais não teve destaque nem pretendeu ter. Mas devemos lembrar que o estudo histórico é um processo essencial para construir um projeto racional e humano de sociedade. Aí, nas descobertas de novos fatos, na percepção de conexões entre fenômenos históricos diversos e na capacidade de interpretá-los de maneira clara e objetiva, aí está o mérito do velho Eric. Não podemos pedir mais dele.

 *Carlos Alberto Lungarzo é professor titular da UniCamp e membro da Anistia Internacional (registro: 2152711). Colabora com o “Quem Tem Medo da Democracia?”, onde mantém a coluna DH em Foco.

Fonte: QTMD?

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