PICICA: "Inspirado em Paulo Lemniski, filme de Cao Guimarães imagina
filósofo inebriado por natureza e calor, despido de roupas e lógica
racionalista, corpo que pensa a si mesmo"
Ex isto: E se Descartes tivesse vindo ao Brasil?
Inspirado em Paulo Lemniski, filme de Cao Guimarães imagina filósofo inebriado por natureza e calor, despido de roupas e lógica racionalista, corpo que pensa a si mesmo
Por Bruno Lorenzatto*
Ex isto (2011) é o título do filme de Cao Guimarães, inspirado no livro de Paulo Leminski – Catatau (1975) –, possivelmente a obra mais experimental produzida pelo poeta. O tema: René Descartes, matemático e filósofo francês, pensador incontornável do racionalismo e da tradição filosófica, vem ao Brasil quando da missão holandesa comandada por Maurício de Nassau, no século XVII. Descartes de fato se alistou no exército holandês na época de Nassau, embora nunca tenha vindo ao Brasil.
Mas é do impossível e da irrealidade também de que se trata a arte, isto é, da invenção de outras realidades. Questão política, poder-se-ia dizer. A arte é capaz de produzir o deslocamento da percepção que se tem da própria realidade. Em outras palavras, a arte desordena a aparente ordem do real.
É do atravassamento do outro como experiência transformadora do sujeito de que fala o filme de Cao Guimarães (e o livro de Leminski), mas também de um questionamento da colonização. Catatau e Ex isto como máquina de guerra (estética e política) contra a lógica da colonização.
Durante todo o filme, as imagens do filósofo, percorrendo rios, praias, florestas, cidades, deslizam na tela, sem que em nenhum momento seja mostrado Descartes falando. E, no entanto, escuta-se a sua voz, que se mescla às imagens (suplementando o que se vê, por vezes em disjunção com a imagem), como se fosse seu pensamento – fragmentos extraídos do monólogo caótico do filósofo em Catatau. Esta voz vem de fora, não é Descartes quem fala. Tudo se passa como se seu pensamento viesse do exterior, viesse do outro. Não é mais o eu que pensa. O pensamento atravessa como um invasor, um intruso, a estrutura tranquila do sujeito. De modo que é possível dizer: a abordagem de Cao Guimarães em Ex isto atesta uma crítica ao modo de reflexão cartesiana. Porém há mais: o próprio Descartes no interior da ficcção parece refutar a si mesmo.
Ex isto mostra Descartes experimentando seu corpo e problematizando seu pensamento numa terra que o transforma: jogado ao mar ou em êxtase na areia da praia; dançando uma “estranha” música ou comendo frutas desconhecidas, fumando ervas alucinóginas. Um improvável Descartes louco, drogado, nu na praia, que se deleita e se angustia com as sensações, os prazeres, os excessos e os limites do corpo – o eu se espalha pela superfície da pele e dos sentidos. A ordem lógica do pensamento precipita-se em gagueira ou afasia. “Este mundo é o lugar do desvario, a justa razão aqui delira” (P. 19). O corpo do filósofo já não fala a mesma língua de suas convicções. O Tupi-guarani contra o francês ou latim. A lógica racionalista caduca e cede lugar à ordem do desejo proveniente do inesperado. A racionalidade pura encontra o afeto, para se tornar substância indissociável.
No sistema cartesiano, o eu é estabelecido como verdade definitiva e fundamental. Mas quando a alteridade dos trópicos atravessa o corpo de Descates, em Catatau e Ex isto, o filósofo francês já não sabe dizer como antes: Cogito, ergo sum (penso, logo existo). “Claro que já não creio no que penso (…) Duvido se existo, quem sou eu se este tamanduá existe?” (P. 20), diz o Descartes de Leminski.
É que a lógica cartesiana não dá conta deste outro impensável: o calor asfixiante do Recife, a mata com sua fauna e flora “exóticas”, a geografia e o estranho mapa da terra, a cultura – os costumes, os hábitos alimentares e os habitantes, a música e a dança inimagináveis e, por fim, o próprio corpo de Descartes (que já não é o mesmo) atravessado por essa alteridade. O ato de pensar e o eu se encontram em crise: “Um papagaio pegou meu pensamento, amola palavras em polaco (…) Bestas grandes no mais aceso fogo do dia… Comer esses animais há de perturbar singularmente as coisas do pensar” (P. 17).
Se este outro impensável – impossível de ser sistematizado em termos racionais –, de fato, existe, e Descartes o experimenta (como o avesso de si mesmo), a sólida existência do eu – a lógica eurocêntrica – já não pode se afirmar como antes. Em Sexta-feira ou os limbos do pacífico, de Michel Tournier, Robinson Crusoe, isolado numa ilha, levanta a questão que poderia ser a de Descartes no Brasil: “Existir, o que isso quer dizer? Quer dizer estar fora, sistere ex. O que está no exterior existe. O que está no interior não existe. Minhas ideias, minhas imagens, meus sonhos não existem (…) O que vem a complicar tudo é o fato de que aquilo que não existe se obstina a fazer acreditar o contrário. Há uma grande e comum aspiração do inexistente em direção ao existente. Como uma força centrífuga que empurraria para fora tudo o que se move em mim, imagens, devaneios, projetos, fantasias, desejos, obsessões. O que não ex-iste in-siste. Insiste para existir. Todo esse pequeno mundo se empurra à porta do grande, do verdadeiro mundo. E é o outro que tem a chave” (grifos meus)*.
De forma que se conclui que não é do eu que deriva o outro, mas sim o oposto – a existência do outro é que possiblita a existência do eu. O primado do outro sobre o eu – toda uma reformulação estético-política.
Radical deslocamento que questiona a lógica do colonizador (que submete o Outro – colonizado – ao domínio do Eu – colonizador): “Catatau é o fracasso da lógica cartesiana branca no calor… emblema do fracasso do projeto batavo, branco, no trópico” (P. 212), diz Leminski.
A contrapartida da colonização ou o efeito não calculado da colonização sobre o colonizador. A terra (o outro) mapeada, territorializada é a mesma que desterritorializa o pretenso fundador (o eu). A colonização do colonizador pela terra colonizada. O Homem, Branco, Europeu, Racional, em uma palavra – a Pureza – é corrompida pela terra impensável, pela experiência radical do outro, que o sujeito se permite (ou é obrigado) a experimentar e, no caso de Descartes, a pensar sobre essa experiência e sobre a experiência do pensamento.
A impossibilidade do ato de conhecer (antes assegurado pela certeza da existência do eu) é colocada em questão. O abalo das certezas conduz o filósofo a eximir-se de seus postulados anteriores e devanear: “o nada é o maior espetáculo da Terra”, afirma Descartes em uma cena do filme.
Ex isto e Catatau como a colonização de Descartes pela experiência do corpo, que é a experiência de uma outra terra, de uma outra cultura. De tal forma que as manchas, as rasuras marcadas em sua carne são capazes de fraturar seu pensamento.
A tradicional dualidade que a filosofia não cessou de operar por séculos, entre espírito e corpo já não faz mais sentido. Descartes, no Brasil, é pura matéria, corpo que pensa a si mesmo e a existência através do corpo.
O paradoxo: Descartes duvida de sua própria existência. Descartes, o outro, pode ver a si mesmo e a vida com “outros olhos e com os olhos dos outros”
*trecho de Sexta-feira ou os limbos do pacífico extraído do blog: http://jevousdefenestre.
Link para o trailer: https://www.youtube.com/watch?
Link para o filme completo no youtube: https://www.youtube.com/watch?
site do diretor: http://www.caoguimaraes.com/
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*Bruno Lorenzatto é licenciado em história e mestre em filosofia pela PUC-Rio
Fonte: Blog da Redação
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