julho 07, 2006

Carta Aberta aos professores (e alunos) da disciplina Psicopatologia




















_ Psicopatologia de quem, cara pálida?!!!... Bleeeeaaaaaaaaaargh!

Nota: No artigo A fábrica dos loucos, de José Ribamar Bessa Freire, há uma referência ao ensino acadêmico, que, por indução ou omissão, tem ajudado a institucionalizar a loucura. A Carta Aberta aos professores (e alunos) da disciplina de Psicopatologia, publicada no site do Conselho Federal de Psicologia, merece uma cuidadosa leitura. Vale a pena ler de novo.

Carta Aberta aos professores (e alunos) da disciplina Psicopatologia

Senhores professores,
Senhores alunos,

Supondo que o móvel daqueles que ensinam e dos que querem aprender, no ambiente de uma universidade, esteja calcado numa relação sincera e ética para com este objetivo, entendemos adequado e oportuno dirigirmos a vocês as nossas interpelações sobre as práticas adotadas no ensino da disciplina de Psicopatologia, que tem como modalidade a apresentação do enfermo, ou a chamada entrevista psicopatológica, a qual pressupõe a utilização dos pacientes selecionados entre internos em hospitais psiquiátricos, que são submetidos ao escrutínio do professor, diante de um grupo de aprendizes, para o assinalamento dos sintomas e dos quadros psicopatológicos.

Não faz mal lembrar a todos que hoje se encontra sobejamente documentada e disponível a todos uma vigorosa produção bibliográfica de natureza histórica, profundamente reveladora das opressivas condições sociais possibilitadoras da produção dos saberes e práticas médico-psicológicas acerca da loucura. De tal produção fica patente, sem pretender julgar moralmente o passado, que estes saberes e práticas, ainda que produzidos por motivações supostamente humanitárias, foram constituídos num regime de poder e opressão, segregador e silenciador da loucura, com forte compromisso com a ordem social, em detrimento ao respeito aos direitos e à dignidade dos supostos beneficiários do seu desenvolvimento. Marcada pelo signo da violência, que converteu uma parcela da humanidade em meros objetos de interesse científico, desqualificando sistematicamente todas as palavras e atos deste grupo, a produção do discurso psicopatológico como a verdade positiva sobre a sua experiência é tributária das condições institucionais do seu encarceramento manicomial, sempre justificado como necessário à boa ordem social e ao bom desenvolvimento da ciência.

Cumpre assinalar que a condenável prática de apresentação do enfermo está a priori baseada numa relação desrespeitosa com a dignidade dos sujeitos. Nesta circunstância, estes são expostos à mera curiosidade acadêmica, numa desigual e assimétrica relação de poder social, sem considerar os seus direitos à intimidade e à privacidade, servindo a interesses que não lhe beneficiam pessoalmente de qualquer modo, já que tais apresentações não se inserem em nenhuma de suas necessidades terapêuticas.

A formação que tem sido possibilitada por meio deste tipo de prática, além de questionável desde o ponto de vista ético e igualmente pedagógico - por insuficiente e infrutífera para a aprendizagem dos estudantes - encontra-se na contra-mão da política oficial da Saúde Mental do país, não respondendo às exigências da formação de recursos humanos adequados às necessidades da Reforma Psiquiátrica Brasileira.

E, neste contexto, o que é mais grave: a sua manutenção atenta frontalmente contra vários dispositivos legais, tais como o Artigo 5°, incisos III e X da Constituição Federal; o Artigo 2°, incisos II , III e VIII, e o Artigo 11° da Lei Federal 10216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos dos portadores de transtornos mentais , além de agredir também a vários aspectos do que está disposto nos Princípios para a Proteção de Pessoas Acometidas de Transtorno Mental, da Organização das Nações Unidas - ONU, de 1991, e a vários dos princípios consignados na Carta de Direitos dos Usuários e Familiares de Serviços de Saúde Mental, de dezembro de 1993, além de contrariar também os aspectos previstos nas Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas envolvendo Seres Humanos estabelecidas pela Portaria n° 196/96, do Conselho Nacional de Saúde.

A utilização do espaço dos anacrônicos hospitais psiquiátricos como campo de prática para a formação de profissionais de Saúde Mental não mais se justifica. Frutos do empenho de vários setores da sociedade brasileira, já existem hoje no Brasil mais de 600 unidades públicas oficiais que oferecem atendimento psicossocial aos portadores de transtorno mental. Estes estabelecimentos, que têm como pilar fundamental o dever de promover a cidadania dos seus usuários, a ampliação de sua autonomia e o compromisso de contribuir decisivamente para a sua inserção social, colocam-se como o espaço privilegiado para as práticas docentes assistenciais.
Nestes serviços substitutivos, CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), Hospitais-dia, Moradias-protegidas, Centros de Convivência, são amplas as possibilidades de práticas de ensino e produção de conhecimento sobre as dinâmicas subjetivas dos sujeitos ali atendidos, inclusive acerca dos aspectos vinculados às suas expressões sintomáticas. Entretanto, o acesso a tais expressões fica condicionado a que as mesmas não sejam tomadas como meras expressões bizarras do funcionamento psíquico do usuário, mas sim como uma ponte para a produção dos sentidos e significados organizadores de sua experiência vivida.

Nestes ambientes, certamente não serão tolerados os modos ligeiros dos contactos superficiais, utilitários e descompromissados com os sujeitos, tal como se caracteriza a prática de apresentação do enfermo que ocorre nos manicômios atualmente. Em compensação, os vínculos estabelecidos pelos professores e estudantes, com os serviços e suas clientelas excederão em muito na qualidade, o entendimento e a compreensão da dinâmica da experiência destes sujeitos em seus variados modos de expressão.

Aos estudantes, conclamamos que se rebelem contra o comodismo conservador dos mestres que insistem nesta tradição decadente e oferecem apenas uma versão caricata, institucionalmente deformada, das experiências do sofrimento humano de pessoas assim reduzidas à condição de meras cobaias para uma aprendizagem acadêmica. Rebelem-se! Não aceitem que, por injunções burocráticas, o ensino da Psicopatologia possa estar descolado das demais aprendizagens fundamentais que possibilitam a convivência e o manejo adequado das relações terapêuticas em beneficio dos sujeitos atendidos. Não aceitem o afrouxamento da Ética em prol do pragmatismo burocrático daqueles que têm a responsabilidade de organizar as condições dignas do ensino-aprendizagem. Estimamos que vocês, na condição de profissionais futuros, mobilizem-se e reivindiquem das suas Faculdades e dos seus professores o urgente estabelecimento das condições adequadas para a qualidade de um verdadeiro processo de formação.

Núcleo de Estudos pela Superação dos Manicômios/Bahia
Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial
Associação Brasileira de Ensino de Psicologia
Conselho Federal de Psicologia

Nota: Carta publicada no site do Conselho Federal de Psicologia
http://www.pol.org.br/noticias/materia.cfm?id=451&materia=729 Posted by Picasa

Nenhum comentário: