julho 06, 2006

A fábrica de loucos

Foto: Manaus vista do bairro de São Raimundo, anos 50-60
Cartão Postal - A Favorita













A cidade de Manaus é banhada pelo rio Negro, que a 18 quilometros
vai encontrar-se com o rio Solimões, num notável encontro de águas
doces: uma escura e outra barrenta. Aqui se vê o bairro de São Raimundo,
o bairro de N. S. Aparecida, o igarapé de São Raimundo, a ilha de São Vicente,
o cais flutuante e a baía do rio Negro.

Nota: O manauara José Ribamar Freire Bessa, meu cumpadre e amigo, resolveu se radicar no Rio de Janeiro. Eita lonjura paid'égua! Pior para Manaus que ficou privada do contato diário com um dos jornalistas mais queridos da cidade. Nos anos 1980, criou a imortal coluna Taquiprati, uma verdadeira instituição que costuma fazer mal para o fígado de maus políticos, aqueles chegados numa bandalheira. Atualmente sua Coluna é publicada no jornal Diário do Amazonas. No site PICICA - Observatório dos Sobreviventes (www.picica.com.br), que está a serviço da Associação Chico Inácio - ong filiada à Rede Nacional Internúcleos de Luta Antimanicomial, tem um link para o site do Taquiprati; visite e leia seus artigos com sabor de pupunha, tucumã e bacuri. Bessa continua brindando as domingueiras manauras, combatendo a estupidez com a lucidez de sempre. Quando ele escreveu o artigo abaixo, há 11 anos atrás, estavamos no sétimo dos 12 anos de luta por uma lei de Saúde Mental que revogasse a Lei de 1932, que só interessava para uma curríola que mantinha mais de 80 mil leitos privados nos país. Vale a pena ler de novo. Tudo a ver com os depoimentos sobre loucos de rua da nossa infância publicados neste blog.

TAQUI PRA TI

A fábrica de loucos
(Crônica enviada de Freibourg, Alemanha, e publicada em A Crítica, em 09/06/1995)


De Freiburg, Alemanha (via Fax) - Onde estão os nossos doidos, que transitavam livremente pelas ruas de Manaus? Cadê a Carmen, a mais lúcida e atrevida de todos, com o seu eterno saco de arroz, botando a molecada pra correr? Cadê o Bombalá, o mais alegre, desfilando, orgulhoso, nas paradas escolares de Sete de Setembro, à frente do Colégio Estadual do Amazonas? O que aconteceu com o Bonitão, o matemático, sempre taciturno e solitário, que escrevia complicadas equações com um canivete, riscando os benjaminzeiros da rua Xavier de Mendonça? O que nós fizemos com o Professor - o Guilherme Doido - para ele despedir-se da vida, assim, enforcando-se numa árvore no Plano Inclinado? Quantos dos nossos loucos anônimos apodreceram no hospício de Flores?

Curiosamente, pensei em todos eles, durante o Colóquio Internacional, aberto nesta terça-feira, pelo cônsul-geral de Berlim, Sérgio Rouanet, no auditório da Universidade de Freibourg, na Alemanha, para onde vim convidado para falar sobre a história dos índios da Amazônia. E isso porque entre outros temas como literatura e história, o colóquio está discutindo também as políticas públicas de saúde, incluindo a saúde mental.

Um palestrante informa que a Organização Mundial de Saúde (OMS), sediada em Genebra, criou recentemente um grupo de trabalho internacional para avaliar e propor mudanças na legislação psiquiátrica, com recomendações para o mundo inteiro. A Divisão de Saúde Mental da OMS pinta um quadro trágico sobre a forma, cruel e burra, como a loucura vem sendo tradicionalmente tratada na maioria dos países.

Como regra geral, o louco é excluído da sociedade, segregado e coagido a permanecer enclausurado no manicômio, onde é submetido a diferentes formas de violência institucional. Resultado: ele se distancia ainda mais da realidade, o que é interpretado pela instituição como agravamento dos sintomas da loucura.

Desta forma, o hospital psiquiátrico, em vez de curar a doença, passou a ser uma fábrica de loucos, da mesma maneira que a penitenciária, longe de recuperar os marginais, tornou-se uma escola do crime.

No Brasil existe um projeto já aprovado na Câmara, com votação no Senado prevista para esta semana, que pretende acabar de uma vez por todas com o manicômio. Seu autor é o deputado Paulo Delgado, do PT de Minas Gerais.

O projeto proíbe a construção de novos hospícios públicos, não permitindo também o financiamento, pelo Governo, de novos leitos, naqueles hospitais psiquiátricos já existentes.

A alternativa apresentada é a criação de centros de convivência e de atenção, lares protegidos, hospitais-dia, hospitais-noite e unidades psiquiátricas em hospital geral, para dar ao louco um tratamento digno e eficaz, o que já vem sendo realizado experimentalmente com relativo sucesso.

Todas estas alternativas obedecem a um princípio comum: o tratamento deve ser feito com o apoio dos familiares e da comunidade, mantendo o doente integrado à sociedade. Desta forma, assumindo a responsabilidade coletiva e solidária, talvez comecem a ser derrubados os preconceitos sobre a loucura, alguns deles gerados pelos próprios currículos ultrapassados dos cursos de Medicina.

Essa idéia central do projeto de Paulo Delgado não é nova. Vem sendo defendida há mais de vinte anos, em Manaus, pelos médicos Manuel Dias Galvão e Rogelio Casado. A novidade é que agora vai virar lei. Vai ser legal. Carmen Doida, que muitas vezes enganou o seu Urbano, diretor do hospício de Flores, fugindo do manicômio, certamente comemoraria gritando: "Vai roubar galinha, ladrão!".

Nota: Para ler outros artigos do Bessa, acesse www.taquiprati.com.br Posted by Picasa

Nenhum comentário: