julho 02, 2006

Depoimento de Marcelo Seráfico

Foto: Ponte Benjamin Constant, 3a. ponte - Manaus/Am











A degradação da cidade de Manaus, após a criação da Zona
Franca no final dos anos 60, não poupa os igarapés, por onde
se estendeu a favelização, como na ponte Benjamin Constant,
outrora cartão postal da cidade sorriso.


Nota: Marcelo Seráfico é manauara, sociólogo formado pela UFAM. Atualmente está em Porto Alegre, onde segue estudando sociologia na UFRGS.

Depoimento de Marcelo Seráfico

LOUCOS DE MANAUS: UM DEPOIMENTO


Três loucos das ruas de Manaus tiveram presença freqüente, algo mágica e certamente trágica, em minha vida, particularmente até os 24 anos.

Nasci em 1970 e até meados da década de 1990 os lugares pelos quais mais transitava eram as regiões do conjunto Cidade Jardim, na Avenida Constantino Nery, do Edifício Cidade de Manaus, na esquina da Avenida Eduardo Ribeiro com a 24 de maio, e a rua Simon Bolívar, na Praça da Saudade.

Da época do Cidade Jardim, entre 1974 e 1978, lembro-me vagamente de um personagem que, mais tarde, se tornaria uma referência quase diária. Era o Astronauta. Ele era alto – pelo menos era assim que eu o via -, com barba longa, de capacete, botas e trajando várias camadas de roupa. Nossos caminhos se cruzaram diversas vezes entre meus 08 e 17 anos de idade.

Com os pais trabalhando, sempre passava as tardes e parte das noites com meus avós. Em 1980, eles se mudaram do Cidade Jardim para o Ed. Cidade de Manaus, onde havia uma loja da Lanchonete Ziza´s. Do outro lado da Av. Eduardo Ribeiro havia a Confeitaria Avenida e, mais acima, na R. 24 de Maio, a Padaria Mimi. Por que menciono esses lugares? Porque era nas idas e vindas do apartamento de meus avós para eles que eu reencontrava o Astronauta. Ele foi o responsável por desfazer a identificação entre loucura e silêncio que eu, não sei por que, alimentava; não balbuciava nem pregava peças nos transeuntes. Pelo menos não me lembro de nenhuma situação assim. Ao contrário, ele se manifestava publicamente, discursava. Não guardo o que dizia. Não sei se eram queixumes e impropério ou denúncias e posicionamentos políticos. O fato é que sua figura sempre me pareceu, física e intelectualmente, pública. Não me recordo de sentir medo dele.

O astronauta transitava, para mim, entre o cômico e o trágico. As roupas e o modo como discursava, somados, lembravam um palhaço; mas o fato de andar maltrapilho e de muitos o provocarem para se divertir, me causavam desconforto. Não sei de onde ele veio nem para onde foi. Apenas tenho a impressão de ter ouvido de meu pai que conhecia a família do Astronauta.

Entre meados dos anos 80 e 90, na mesma área do Centro e na Constantino Nery, circulava uma moça que sempre estava nua e catando o desperdício dos outros para se alimentar. Também não sei o destino dela e tampouco sobre seu passado. Estará viva? Terá morrido para a loucura?

Digo moça, mas me dou conta de que nunca imaginei que idade poderia ter. Aliás, apesar de já ter me preocupado em imaginar o passado de um louco, especulando sobre o que o teria levado àquele estado, nunca me detive em pensar mais concretamente na idade que tenha. Não sei, mas me ocorre agora que sempre olhei pros loucos com os quais convivi como se eles fossem trans-históricos, quase abstratos, personagens a-temporais da cidade. O Astronauta e a moça, por exemplo, sempre me pareceram ter a mesma idade, não importando o passar dos anos. Ele, talvez, na casa dos 50, e ala na dos 30.

Por fim, havia o Cristo. Maltrapilho e barbado, ganhou o apelido de um gesto que repetia diuturnamente e todos os dias, no muro de uma clínica à esquina das ruas Simon Bolívar e Ferreira Pena. Não sei se esse é um apelido corrente ou apenas o modo como eu e meu irmão o identificávamos. Mas o gesto era o seguinte: de braços abertos, como se estivesse pregado a uma cruz, lançava o corpo contra o muro seguidas vezes. As repetições eram tantas que no muro já estava marcada a área atingida por seu corpo, como se fosse uma sombra ou, quem sabe, uma assinatura.

Ali na Simon Bolívar moram, num prédio, ainda hoje, meus avós. Por eles sabíamos que o Cristo era alimentado por outro habitante da rua. As crianças, muitas, que batiam e batem sua bolinha no vale criado pelo pronunciado relevo da rua do libertador, pareciam ter um certo respeito por ele. O mesmo, porém, não pode ser dito de alguns dos motoristas de táxi que fazem ponto por ali. Cheguei a ver alguns provocando-o, mas ele nunca revidou. Talvez tenha dado a outra face.

Não sei a origem nem o destino desse profano Cristo. Mas lembro-me de conversas com meus familiares em que especulávamos sobre que pecados quereria ele purgar com aquele gesto.

Enfim, como diria meu tio Altamir, com o tempo a memória da gente tende a melhorar tanto que começamos a lembrar até mesmo de fatos que nunca aconteceram. É o risco do depoimento e, com essa ponderação, aí vai o meu. Posted by Picasa

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