Maria mora há mais de 10 anos na rua
Taqueirinha, atrás da Assembléia Legislativa
do Estado do Amazonas; no primeiro plano
estão seus pertences e sua casa; aos fundos,
à esq., está a Assembléia Legislativa.
Nota: Já são 13 os depoimentos que recebi de antigos e novos amigos e companheiros, de Manaus e de fora do estado do Amazonas, depois que solicitei um relato de memória sobre os loucos de rua da nossa infância. Lucia Antony, vereadora no município de Manaus, foi quem deu a deixa. Entretanto, até agora, ela não compareceu. Ô, Lucinha, ajoelhou tem que rezar. Aguardo novos depoimentos. Agradeço aos que estão a prestar inestimável contribuição na luta por uma sociedade sem manicômios. Leia artigo publicado no Portal da Amazônia, do qual sou seu mais novo colunista.
Os loucos de rua da minha cidade
Por Rogelio Casado* em 27/06/2006
“Quem não tem uma história sobre algum louco de rua para contar? Quem não passou por uma experiência qualquer de apreensão, medo, curiosidade ou brincadeira? Quem nunca sentiu este interesse, este fascínio? Qual a cidade que não tem os seus loucos célebres?”
Estas perguntas foram feitas pelo psicólogo e psicanalista Flávio Carvalho Ferraz. As respostas foram sistematizadas no livro de sua autoria Andarilhos da Imaginação, editada em 2002 pela Editora Casa do Psicólogo, São Paulo. Nesta editora, Flávio é diretor da coleção de livros Clínica Psicanalítica, voltada para temas de psicopatologia.
Data dos seus 12 anos “a primeira tentativa de descobrir os mistérios que envolviam os loucos de rua de Cambuí” (cidade do interior de Minas Gerais, onde nasceu o autor de Andarilhos da Imaginação - um estudo sobre loucos de rua). Munido de um caderno de anotações, coletou tudo o que ouviu a respeito dos loucos de rua, “tentando dar corpo às histórias fantásticas que corriam de boca em boca sobre tão célebres figuras”. Acreditava que pudesse desvendar o segredo e os mistérios daqueles loucos. Foi então que se deparou com o mais incrível dessa empreitada: “as peças do quebra-cabeça jamais se encaixariam com exatidão...”.
Essa iniciativa, mais tarde resultou numa bela obra da maturidade, desta vez com uma certeza: os loucos de rua ocupam um papel importante na imaginação popular. “Algo, a eles inerentes, parecia excitar a imaginação das pessoas, tornando fecunda a sua criatividade, produzindo lendas inventivas”.
Para Flávio Carvalho Ferraz, “a experiência da loucura do louco de rua representa uma espécie de “ilha” trágica, cercada pela concepção crítica de todos os lados. Nosso louco de rua – pela forma como vive a experiência de sua loucura e pelas modalidades de relacionamento que estabelece coma a cidade – guarda algo remanescente de outras eras, que se confronta com uma mentalidade popular já profundamente impregnada pelas concepções próprias da psiquiatria. Neste sentido, ele é um exemplar que escapou da institucionalização, foi salvo da apreensão médico-policial da psiquiatria. Vive em um mundo ambíguo que lhe dá o direito de experimentar seu desatino em estado de relativa liberdade, faz concessões à sua loucura por alguns instantes, mas tem olhos críticos e, quando julga necessário, apela para seu aprisionamento ou exclusão”.
Foi de um desses loucos de rua, institucionalizado por uma desastrada decisão médico-policial, durante anos mantido sob medicamentos antipsicóticos, ao fazer um vínculo terapêutico, tido como impossível, que me confiou uma lembrança da sua infância, saindo do mutismo institucional que fora imposto; tratava-se de uma canção que aprendeu com sua professora: “Se essa rua, se essa rua fosse minha...”. Se a provisão de cuidados não fosse tão desigual, com o Estado se desobrigando de suas responsabilidades, deixando o ônus para as famílias dos portadores de sofrimento psíquico, qual teria sido o destino desses seres humanos se tivessem assegurados os direitos de cidadania que foram perdendo progressivamente a partir do século XIX?
O depoimento generoso de antigos e novos amigos sobre os loucos de rua da cidade de Manaus dos anos 50/60, publicado no meu blog, é uma pequena mostra da forte relação entre o imaginário da comunidade e seus loucos.
O desafio é civilizatório: é tempo de incluir os loucos na cultura dos nossos tempos.
* Rogelio Casado, psicoterapeuta, especialista em Saúde Mental
E-mail: rogeliocasado@uol.com.br
Blog: www.rogeliocasado.blogspot.com
Site: www.picica.com.br
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