julho 06, 2006

Nega-Maluca

Foto: Alfândega de Manaus-AM, anos 50-60













A cidade acolhedora dos anos 40-50-60 deu lugar a competições
homicidas e camaradagens hipócritas, exceções de praxe.


Nota: Por indicação de Emilia Castro, que já deu aqui seu depoimento sobre os loucos de rua da nossa infância, reproduzo uma das crônicas do "Velho" Aristófanes Castro, extraído do livro "Cuspir é preciso", Editora Valer / Caixa de Assistência dos Advogados - OAB, Manaus-AM, 2002.

Nega-Maluca

_ Nega-Maluca!

Ela pára. Põe a trouxa de roupa no chão, ou o paneiro cheio de cacarecos, folheando seu dicionário de nomes feios e bonitos... Enquanto a assistência se divertia, ela sofria com aquele apelido que feria o coração e lhe deixava um travo amargo n’alma. Nega-Maluca! Por quê? Exemplo de mãe que se não encontra entre muitas mães da alta grã-finagem. Amou o seu negro em noites escuras, com a pele de seu corpo, ouvindo a cantiga tristonha de suas canções dolentes ou a sinfonia do vento frio atravessando as frestas do barraco de ouricuri, no arrabalde distante. Amou-o com fervor e daquele aconchego, sem cristais, sem lustres, sem colchão-de-mola macio, gerou nas entranhas o filho que é toda a sua razão de ser: Charuto! Não se desprega dele!

Aonde ele for, o acompanha, resumindo nele toda a felicidade, toda a sua vida, percorrendo ruas em todas as direções, ralhando-o ao fazer peraltices ou obrigando-o a calçar sapatos velhos não mais usados pelos filhos dos ricos, jogados nas latas de lixo, retirados de lá como se fossem da prateleira de qualquer sapataria... Nega-Maluca não viu pecado no amor, nem maldade na união honesta sem indissolubilidade. Não sentiu vergonha de ser mãe, demonstrando trazer, no coração, o verdadeiro amor maternal, na simplicidade de sua vida miserável, vivendo das sobras dos outros e dessas sobras sustentando o filho, sangue de seu sangue, e vida de sua vida.

Charuto não sente o amargor do existir, é muito criança. Não sabe ler. Ninguém olha para ele, a não ser quando passa pelas ruas atrás da Nega-Maluca, sempre a sorrir, empinando a curica de papel de embrulho, ensejando a molecada a chamá-lo pelo apelido: Charuto! Charuto! Charuto!, obrigando Nega-Maluca sair em defesa dele, como se fora leoa bravia...

Charuto faz parte da grande maioria das crianças abandonadas deste país imenso que abre verbas colossais no orçamento para gastos militares e, para a educação e saúde, orça as despesas em nonadas... Charuto faz parte da grande legião de desassistidos, criada ao deus-dará, cuja escola é o vício do crime. Charuto é uma esperança a mais que se perde entre as promessas demagógicas dos salvadores de araque...

Ao terminar de reler esta crônica escrita e dada à estampa em “O Jornal”, nos idos de 1959, fiquei a perguntar-me a mim mesmo por onde andará Charuto? Terá seguido a trilha do crime, respondendo a processo e preso, ou despejado feito presunto no Rio Negro ou em terreno baldio?

Este seria o destino de Charuto, por não ter colarinho branco, nem verde ou zebrado, faltando-lhe o diploma de ladrão de casasa com o salvo-conduto congressional de deputado ou senador da República, ou no desfrute de altos postos administrativos dos Três Poderes...
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