Alberto Jorge e Rogelio Casado - Manaus-AM, 22.11.2006
Nota: Na Semana da Consciência Negra, minha homenagem particular ao companheiro Alberto Jorge. Militante da Luta Antimanicomial, membro do Fórum Amazonense de Saúde Mental, o querido companheiro é psicólogo por formação, preside o Sindicatos dos Psicólogos, fundou a Associação de Psicólogos e, para não deixar barato, ainda é líder espiritual de um culto afro, como diriam os adeptos do tucanês; em lulês, é pai-de-santo mesmo, de fato e de direito, com muito orgulho.
Há 150 artigos colaboro com o jornal Amazonas em Tempo (http://www.emtempo.com.br); há 13 assino uma coluna no Portal da Amazônia (http://portalamazonia.globo.com). Do primeiro, pincei o artigo de número 67, do ano de 2004; com ele homenageio o combativo e combatido companheiro.
O artigo foi escrito em Salvador-BA, onde passava férias com minha Nivya. Juan ainda não era nascido. Em verdade, sob as bençãos de Yemanjá, ali ele começou a ser concebido. Um dos momentos mais curiosos ocorreu quando nos dirigimos para o santuário, no dia 2 de fevereiro, onde encontra-se a imagem de Iemanjá, no Rio Vermelho. Uma multidão tomara conta do lugar. Diante de uma fila quilométrica, resolvemos dar uma olhadinha pela janela e ver, ao menos, a fonte onde os fiéis aspergiam o rosto entre inúmeros pedidos para a entidade que figura entre as Senhoras pertencentes ao Plano 6, segundo a escala hierárquica na Umbanda, e que se divide em quatro ramificações: OXUM, IEMANJÁ, IANSÃ e NANÃ. Nivya debruçou-se sobre a janela, enquanto me distanciava para fotografar o lugar sagrado. Foi quando um homem de feição popular, que em muito lembrava os filhos nordestinos adotados pelo Amazonas dos tempos do Ciclo da Borracha, fez um sinal com o dedo indicador para mim. Na dúvida, olhei para trás, julgando que o sinal talvez não fosse para mim. Era. Tomei Nivya pelas mãos, dirige-me ao inesperado interlocutor que assim me saudou: "Pensou que eu não ia te reconhecer... Entra!". Dito isso, saiu em direção à multidão e desapareceu. Sequer deu tempo para correr um frio no espinhaço; Nivya puxou-se para dentro do santuário. Na ponta da língua ficou a saudação: "ORÚKO? " - expressão yorubá, empregada na liturgia dos candomblés, que significa "qual é o teu nome?". Em casa, até hoje, comentamos esse encontro tão inusitado com o "desconhecido".
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Caboca Mariana
Dois de Fevereiro de 2004. Estou em Rio Vermelho – Salvador, saudando a mãe dos orixás: Iemanjá. O encontro no Solar do Unhão, à beira do Atlântico, com Mira, médium paraense muito estimada pelos de casa, que cozinha uma maniçoba como ninguém – e a quem só agora conheci –, foi decisivo para encarar os festejos e as obrigações religiosas no dia da Mãe d’Água, a Rainha do Mar. Depois que contei-lhe um episódio que remonta a Setembro de 1987, sinto que essas férias serão feracíssimas.
Naquela época, dirigia o Centro Psiquiátrico Eduardo Ribeiro. Passavam das 17 horas. Preparava-me para outra jornada de trabalho, desta vez em meu consultório particular, quando Leila Brasil, diretora técnica, anuncia um bafafá na cozinha do hospital: uma das cozinheiras queria espetar uma colega na ponta de um instrumento de trabalho. Motivo: suspeita de infidelidade conjugal. Tudo armação: o triângulo amoroso fora inventado por uma língua ferina; esta, sim, arrastava uma asa doida para o contumaz prevaricador, sem obter sucesso.
Leila pediu intervenção do diretor. Irritado pelo atraso a que seria submetido, dirigi a todas as mulheres do setor duras palavras, pero sin perder la ternura jamás: “Aonde já se viu, trazer assuntos domésticos para discutir em ambiente de trabalho?” Quem nos dera que as confusões entre o público e o privado fossem meros dramas de alcova!
Naquela altura, diz a lenda que funcionários pouco cumpridores dos deveres, tramando contra o diretor (ó, sina!), haviam procurado uma macumbeira, e, num despacho, costuraram-lhe o nome na boca de um sapo e enfiaram no oco de um pau (sic).
Sucedeu, então, por ocasião da carraspana coletiva, que, em pleno auditório baixa, inesperadamente, uma dessas encantadoras divindades, tão popular nos cultos afro-brasileiros, de inspiração indígena: Caboca Mariana.
Surpreso pela escolha recair sobre uma das mais afetuosas das nossas cozinheiras, dona Cândida, senhora dos seus quase sessenta anos, e apostando que haveria uma cambona no recinto, pedi, imediatamente, com insuspeita seriedade, que alguém viesse receber a entidade, pois que o cavalo manifestara o sinal do guia à seco, sem um gole de marafo, sem um som de atabaque.
Acontecimentos assim dão-se quando há comunicações inadiáveis. Era o caso. No episódio, descobri o desafeto que aterrorizava os que me queriam bem com a história da boca do sapo, e que não perdeu por esperar: a própria cambona. Depois de receber Mariana com um ponto cantado, viu-a dirigir-se a mim para, entre abraços, comunicar-me: “Tu és protegido de Caboca Mariana; ninguém pode tocar num fio de cabelo teu, senão tem que se haver comigo”.Salve as entidades ligadas à água: Mariana, Moça Bonita..., e Iemanjá, a mãe de todas.
A história está contada e a obrigação cumprida. Saravá!
Salvador, Fevereiro de 2004.
Rogelio Casado, psiquiatra e psicoterapeuta
Coordenador do Programa Estadual de Saúde Mental
E-mail: rogeliocasado@uol.com.br
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