janeiro 09, 2007

Dá-lhe Betão! Qualé, Lula? Delfim, não!

Foto: Frei Beto por Gerardo Lazari



















Terça-feira, 9 de janeiro de 2007

8 de janeiro / 2007 - 12h35

A esquerda no divã
Por Frei Betto - de São Paulo

Sempre pensei que, entre tantos amigos e amigas, seria um dos poucos a morrer sem ter feito análise. Hélio Pellegrino, de quem fui muito amigo, sugeria que talvez o fato de viver em comunidade, em permanente relação dialógica, onde no passado não faltou nem a confissão auricular, explicasse essa minha insistência de coabitar pacificamente com meus anjos e demônios.

Acresce-se a isso o hábito de escrever e, ao fazê-lo, me revirar pelo avesso. A literatura é um os mais terapêuticos ofícios, tanto que Freud se viu tentado a preferi-la às ciências da psique. Com ele, entretanto, ganharam as duas, a ciência e a literatura, já que possuía um estilo cativante.

Na entrega do prêmio "Brasileiro do Ano", dia 11 de dezembro, o presidente Lula declarou: "Fiquei vinte e tantos anos criticando o Delfim Netto e hoje sou amigo dele. É a evolução da espécie humana. Quem é mais de direita vai ficando mais de centro. Quem é mais de esquerda vai ficando mais social-democrata, menos à esquerda. E as coisas vão confluindo de acordo com a quantidade de cabelos brancos que você vai tendo. Se você conhecer uma pessoa muito idosa esquerdista é porque ela está com problema. Mas se conhecer uma pessoa muito nova de direita também está com problema. Quando a gente tem 60 anos é a idade do ponto de equilíbrio. A gente se transforma no caminho do meio, aquele que precisa ser seguido pela sociedade."

O presidente talvez esteja lendo textos budistas e, tomara, abraçando as virtudes do caminho do meio recomendado por Sidarta. Ou quem sabe prefira santo Tomás de Aquino, que acentuava que "a virtude reside no meio". Nada de extremos, como frisou o presidente.

A opção social-democrata do presidente já havia se evidenciado no primeiro mandato, quando abraçou uma política econômica neoliberal, reservando cerca de R$ 10 bilhões/ano ao Bolsa Família e R$ 100 bilhões/ano ao Bolsa Fartura dos credores da dívida pública - o que vem entravando o sonhado e prometido desenvolvimento sustentável.

Atribuir razões psicológicas a quem, acima de 60 anos, é de esquerda, significa remeter ao analista eminentes figuras históricas: Fidel, Ho Chi Minh, Niemeyer, Antonio Candido, dom Pedro Casaldáliga, dom Tomás Balduíno, Florestan Fernandes, Apolônio de Carvalho, Mário Pedrosa, Elza Monerat, João Amazonas, Gregório Bezerra etc. É o que Bush e tantos direitistas pensam: só pode ser louco quem ainda sonha com o fim da desigualdade social ou um "outro mundo possível".

Mais preocupante do que associar esquerda e "problema" é considerar um sinal de "evolução da espécie humana" sua recente amizade com Delfim Netto, que assinou o AI-5 e ocupou vários ministérios sob a ditadura militar: Fazenda (1967-1974), Agricultura (1979) e Planejamento (1979-1985). No governo Médici, sonegou os índices de inflação, prejudicando os trabalhadores, o que levou Lula a liderar um amplo movimento operário pelos direitos de sua classe. Delfim jamais fez autocrítica de sua conivência com o regime ditatorial que prendeu, torturou, assassinou, baniu, exilou e fez desaparecer centenas de pessoas. Ao contrário, justificou-o em seus escritos. E equivoca-se o presidente ao tentar atenuar a gravidade da ditadura brasileira comparando-a com a do Chile. A dor é irrivalizável.

Se ser direita ou de esquerda é uma questão patológica me parece secundário. Como diz o poeta, de perto ninguém é normal. A questão é mais profunda: como se posicionar diante desse mundo em que 2/3 da população vivem abaixo da linha da pobreza? Segundo a ONU, 4 bilhões de seres humanos sobrevivem com renda mensal per capita inferior a US$ 60. Ou US$2 por dia. Aqui sim, só um louco ou um cínico pode afirmar que esse é o melhor dos mundos.

A questão me parece muito simples: é possível a espécie humana - e não apenas 30% da população mundial - evoluir em tais condições de miséria e pobreza? O que rege a política internacional, os direitos dos povos ou a ganância dos ricos? O lucro das grandes corporações ou o desenvolvimento sustentável de toda a humanidade?

Num mundo de tamanha desigualdade não se pode pretender neutralidade. Frente ao impasse da greve metalúrgica de 1980, dom Cláudio Hummes, bispo do ABC, foi convidado pela Fiesp a intermediar as negociações entre empresários e trabalhadores. Respondeu que não poderia fazê-lo, pois não era neutro, estava do lado dos trabalhadores.

Se o PSDB, repleto de eminentes figuras perseguidas pela ditadura, foi parar nos braços da direita representada pelo PFL, e agora o PT bandeia para a social-democracia, os pobres que se cuidem. Walter Benjamin propôs às vítimas do nazismo "organizar o pessimismo". Com todo respeito, prefiro deixar o pessimismo para dias melhores. Frente à ditadura do mercado, é hora de organizar a esperança.

Frei Betto é escritor, autor de "Gosto de Uva" (Garamond), entre outros livros.

NOTA: Publicado no Correio do Brasil (http://correiodobrasil.cidadeinternet.com.br/noticia.asp?c=112309)

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