PICICA: "Reproduzimos abaixo a tradução de Alexandre Pilati, publicada em seu Horizonte Cerrado, para uma carta de Pier Paolo Pasolini a Italo Calvino, publicada na imprensa italiana em 1974."
Carta aberta de Pier Paolo Pasolini a Italo Calvino (1974)
Reproduzimos abaixo a tradução de Alexandre Pilati, publicada em seu Horizonte Cerrado, para uma carta de Pier Paolo Pasolini a Italo Calvino, publicada na imprensa italiana em 1974.
Caro Calvino,
Maurizio Ferrara diz que eu tenho saudade de uma “idade de ouro”, você
diz que eu tenho saudade da “Italietta”: todos dizem que tenho saudade
de alguma coisa, conferindo a esta saudade um valor negativo e,
portanto, tornando-a um alvo fácil.
Isto de que sinto saudade (se é que se pode falar em saudade) expus claramente, até mesmo em versos (Paese sera,
5-1-1974). Que outros tenham fingido não me entender é natural. Mas me
espanto de que você (que não tem razão para fazê-lo) não tenha desejado
me compreender. Mas então você não leu nenhum verso das Cinzas de Gramsci ou de Calderón,
não leu uma só linha dos meus romances, não viu um só enquadramento dos
meus filmes, não sabe nada de mim! Porque tudo aquilo que eu fiz e que
sou exclui, pela sua natureza, que eu possa ter saudade da “Italietta”. A
menos que você me considere radicalmente mudado: coisa que faz parte da
psicologia miraculosa dos italianos, mas que exatamente por isso não me
parece digna de você.
A “Italietta” é pequeno-burguesa, fascista, democrata-cristã; é
provinciana e às margens da história; a sua cultura é um humanismo
escolástico formal e vulgar. Você deseja que eu tenha saudade de tudo
isso? Por aquilo que me compete pessoalmente, esta “Italietta” foi um
país de militares que me prendeu, processou, perseguiu, atormentou,
linchou por quase duas décadas. Isto um jovem pode não saber. Mas você
não. Pode ser que eu tenha tido aquele mínimo de dignidade que me
permitiu esconder a angústia de quem, por anos e anos, esperava todo dia
a chegada de uma citação do tribunal e tinha terror de olhar as bancas
de revista para não ler, nos jornais atrozes, notícias escandalosas
sobre a própria pessoa. Se tudo isso posso eu esquecer, entretanto, você
não pode…
De outra parte, esta “Italietta”, por aquilo que entendo, não acabou. O
linchamento continua. Talvez agora quem o organize seja o Espresso; veja a notinha introdutória (Espresso, 23-06-1974) a algumas intervenções sobre a minha tese (Corriere della Sera,
10-06-1974): notinha na qual mofa de um título não dado por mim,
extrapola lepidamente o meu texto, naturalmente deturpando-o
horrendamente, e, enfim, lança sobre mim a suspeição de que eu seja uma
espécie de novo Tribuno da Plebe: operação da qual até agora cri que
fossem capazes apenas os delinquentes do Borghese.
Eu sei bem, caro Calvino, como se desenvolve a vida de um intelectual.
Sei porque, em parte, é também a minha vida. Leituras, solidão no
escritório, cercado em geral de poucos amigos e muitos conhecidos, todos
intelectuais e burgueses. Uma vida de trabalho e substancialmente
honesta. Mas eu, como o doutor Hyde, tenho uma outra vida. Ao viver esta
vida, devo romper as barreiras naturais (e inocentes) de classe. Romper
as paredes da “Italietta”, e impelir-me, então, para um outro mundo: o
mundo camponês, o mundo subproletário e o mundo operário. A ordem em que
elenco estes mundos respeita a importância da minha experiência
pessoal, não a sua importância objetiva. Até poucos anos este era o
mundo pré-burguês, o mundo da classe dominada. Era só por meras razões
nacionais, ou, melhor, estatais, que tudo isso fazia parte da
“Italietta”. Para além desta pura e simples formalidade, tal mundo não
coincidia de fato com a Itália. O universo camponês (a que pertencem as
culturas urbanas subproletárias, e, precisamente até pouco tempo,
aquelas minorias operárias – que eram verdadeiras e legítimas minorias,
como na Rússia de 1917) é um universo transnacional: que, ademais, não
reconhece as nações. Tudo isso é o avanço de uma civilização precedente
(ou de um acúmulo de civilizações precedentes todas muito parecidas
entre si), e a classe dominante (nacionalista) modelava tal avanço
segundo os próprios interesses e os próprios fins políticos (para um
natural da região de Lucca – penso em De Martino – a nação era estranha,
foi primeiro o Reino Borbônico, depois a Itália do Piemonte, depois a
Itália fascista, depois a Itália atual: sem solução de continuidade).
É deste ilimitado mundo camponês pré-nacional, e pré-industrial, que
sobreviveu até pouco tempo atrás, que eu me sinto saudoso (não por acaso
passo o maior tempo possível nos países do Terceiro Mundo, onde ele
sobrevive ainda, apesar de o Terceiro Mundo estar também entrando na
órbita do assim chamado Desenvolvimento).
Os homens deste universo não viveram uma idade de ouro, pois não estavam envolvidos, senão formalmente, com a “Italietta”. Eles viveram aquela que Chilanti chamou de a idade do pão.
Eram, isto sim, consumidores de bens extremamente necessários. E era
isto, talvez, que tornava extremamente necessária a sua pobre e precária
vida. Aqui fique claro que os bens supérfluos tornam supérflua a vida
(isto para ser extremamente elementar, e concluir com este argumento).
Que eu sinta ou não saudade deste universo camponês, isto é, de qualquer
modo, problema meu. Isto não me impede, de fato, de agir sobre o mundo
atual, assim como na minha crítica: ou antes, tanto mais lucidamente
quanto mais dele me destaco e quanto mais aceito vivê-lo apenas
estoicamente.
Disse, e repito, que a aculturação do Centro consumista destruiu as
várias culturas do Terceiro Mundo (falo agora em escala mundial, e me
refiro também às culturas do Terceiro Mundo, às quais as culturas
camponesas italianas são profundamente símiles): o modelo cultural
oferecido aos italianos (e de resto a todos os homens do globo) é único.
A conformação a tal modelo se acha antes de tudo no vivido, no
existencial; e, portanto, no corpo e no comportamento. É aqui que se
vivem os valores, não ainda expressos, da nova cultura da civilização do
consumo, isto é: do novo e do mais repressivo totalitarismo que jamais
foi visto. Do ponto de vista da linguagem verbal, se tem a redução de
toda língua a língua comunicativa, com um enorme empobrecimento da
expressividade. Os dialetos (os idiomas maternos!) estão afastados no
tempo e no espaço: os filhos são coagidos a não falá-los mais porque
vivem em Turim, em Milão ou na Alemanha. Lá onde esses dialetos são
falados agora, eles perderam sua potencialidade inventiva. Nenhum rapaz
das periferias romanas seria hoje capaz de, por exemplo, compreender a
gíria dos meus romances de dez ou quinze anos atrás: e, ironia do
destino!, ele seria obrigado a consultar o glossário anexo como um bom
burguês do Norte!
Naturalmente, esta minha “visão” da nova realidade cultural italiana é
radical: observa o fenômeno como fenômeno global, não as suas exceções,
as suas resistências, as suas sobrevivências.
Quando falo de homogeneização de todos os jovens, segundo a qual, desde o
seu corpo, desde o seu comportamento e desde a sua ideologia
inconsciente e real (o hedonismo consumista), um jovem fascista não pode
ser distinguido de todos os outros jovens, enuncio um fenômeno geral.
Sei muito bem que existem jovens que se distinguem. Mas são jovens
pertencentes à nossa própria elite, e condenados a ser ainda mais
infelizes que nós: e, portanto, também provavelmente melhores. Digo isso
devido a uma alusão (Paese sera, 21-6-1974) de Tullio de Mauro,
que, depois de ter se esquecido de convidar-me para um congresso
linguístico de Bressanone, reprovava-me por não ter a ele comparecido:
lá, disse ele, eu teria visto alguns jovens que contradizem a minha
tese. É como dizer que, se algumas dezenas de jovens usam o termo
“eurística”, quer dizer que tal termo é utilizado por cinquenta milhões
de italianos.
Você dirá: os homens sempre foram conformistas (todos iguais uns aos
outros) e sempre existiram elites. Eu respondo a você: sim, os homens
sempre foram conformistas e o mais possível iguais uns aos outros, mas
segundo a sua própria classe social. E, no interior dessa distinção de
classe, segundo as suas particulares e concretas condições culturais
(regionais). Hoje, ao contrário, (e aqui reside a “mutação”
antropológica) os homens são conformistas e todos iguais uns aos outros
segundo um código interclassista (estudante igual operário, operário do
Norte igual a operário do Sul): ao menos potencialmente, na ansiosa
vontade de uniformizar-se.
Enfim, caro Calvino, gostaria de fazer-lhe notar uma coisa. Não como
moralista, mas como analista. Na sua apressada resposta às minhas teses,
no Messagero (18 junho 1974), escapou a você uma frase
duplamente infeliz. Trata-se desta frase: “Os jovens fascistas de hoje
não conheço nem espero ter ocasião de conhecê-los”. Todavia: 1)
certamente você não terá nunca tal ocasião, também porque se, numa
cabine de trem, na fila de uma loja, na rua, em uma sala de visitas você
encontrasse jovens fascistas, não os reconheceria; 2) felicitar-se por
não encontrar nunca jovens fascistas é uma estupidez, porque, ao
contrário, nós devemos fazer de tudo para identificá-los e para
encontrá-los. Eles não são os fatais e predestinados representantes do
Mal: não nasceram para serem fascistas. Ninguém – quando eles se
tornaram adolescentes e ganharam capacidade de escolha, segundo qualquer
razão ou necessidade – colocou neles de modo racista a marca dos
fascistas. É uma atroz forma de desespero e neurose a que precipita um
jovem a uma escolha como essa; e talvez bastasse uma só experiência
diversa na sua vida, um simples e só encontro, para que o seu destino
fosse diverso.
Pier Paolo Pasolini
§
Notas do tradutor:
[1] A tradução toma como base a versão publicada em: PASOLINI, P.P. Scritti corsari. Milano: Garzanti, 2013. Prefazione di Alfonso Berardinelli. Settima ristampa.
[2] Publicado em “Paese sera” com o título “Carta aberta a Italo Calvino: aquilo de que sinto saudade”.
Fonte: Modo de Usar
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