PICICA: "Os Estados, portanto, mantém uma postura de respeito à vida e à
integridade apenas quando forçados a tanto. E não por uma pressão
mítica-fundante, um carta de intenções como a Constituição, mas sim pela
pressão perene dos cidadãos -- e a própria capacidade dos aparelhos de
Estado reagirem à pressão da multidão por meio da construção de
discursos ou intervenções práticas.
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A democracia foi imposta pelo decreto da multidão que inviabilizou a
ditadura militar. Mas ela não resolveu o formidável problema da
repressão social, as sementes do mal deixadas pelo corpo repressivo da
ditadura militar: seu oligopólio de mídia, seu judiciário, suas
polícias...A partir daí, a repressão política, mantida em fogo brando
nos últimos voltou a plenos pulmões: a Copa do Mundo e sua demanda por
segurança serviram de pretexto para a reunificação operacional das
polícias. Depois, esse aparato puniu seus alvos. O clima não tende a
melhorar."
Pós-Copa: Somos um Estado de Exceção?
Pássaro da Liberdade -- Clarisse Lispector |
Ou liberdade para Eles e nós todos.
A prisão política de Fábio Hideki Harano e Rafael Lusvargh em São Paulo, depois de uma manifestação, e a prisão de dezenas de ativistas no Rio de Janeiro,
fruto de uma investigação que vem desde Junho de 2013, em uma ampla
blitz midiática-judicial-policial levam à pergunta. Mas é uma pergunta
que nasce de uma ideia ingênua, praticamente uma superstição. É como se
Estado "de Exceção" e Estado "de Direito" fossem antagonistas em uma
esquema maniqueísta: bem e mal, mocinho e bandido, Superman e Lex
Luthor. Não adianta perguntar se o que está aí é o tira bom ou o tira
mau, na verdade, o Estado é sempre um dualismo formado pelo tira bom e o
tira mau -- juntos.
Uma digressão necessária: no mundo antigo e depois no medievo, a Casa era o centro da vida e da produção. Nela, havia o senhor -- o despotês ou dominus -- que imperava em sua glória eterna enquanto o villicus --
o vilão -- comandava os servos e distribuía as penas nos termos das
leis da casa, a economia. Na economia brasileira colonial, o senhor e o
capataz eram a dualidade central da fazenda, que se fazia em Casa Grande
e Senzala. O Estado, enquanto modelo econômico de administração da
política, sempre teve seus dualismos: o diplomata e o espião, o
presidente e o general, o servidor público e o policial. Nunca quem faz o
bem deve fazer mal. Um apaixona e o outro pune.
Os Estados, portanto, mantém uma postura de respeito à vida e à
integridade apenas quando forçados a tanto. E não por uma pressão
mítica-fundante, um carta de intenções como a Constituição, mas sim pela
pressão perene dos cidadãos -- e a própria capacidade dos aparelhos de
Estado reagirem à pressão da multidão por meio da construção de
discursos ou intervenções práticas. O que pode conter esse "Estado" já
mais foi interno, por qualquer sistema de "direitos e garantias"
judicializado. Do mesmo modo que o Estado é fato puro, transcendente ao
direito, seja aquele comum ou achado na rua, ou ao seu próprio discurso
jurídico monopolizador.
Desse ponto de vista, o fato é que há, desde 1822 um Estado brasileiro
que se reconfigurou ao longo do tempo. Às vezes para melhor, às vezes
para pior. Nos seus melhores momentos, também suspendeu direitos. A
repressão social foi praticamente uma constante, mas a repressão
política permanente, nem sempre. E o momento de repressão política é
quando o Estado, perturbado por uma atividade política qualquer,
criminaliza o que não é, ontologicamente, crime: uma manifestação
política no momento em que ela se torna ato de subversão, isto é, quando
ela reúne forças para transformar o que quer que seja sem depender da
homologação do aparato. A partir daí, ações de desobediência civil se
tornam crimes, atos pacíficos acabam criminalizados por provas plantadas
-- e há fortes indícios de que isso aconteceu no caso Hideki -- e
qualquer violência acidental ou não passa a ser punida com rigor
excessivo.
A democracia foi imposta pelo decreto da multidão que inviabilizou a
ditadura militar. Mas ela não resolveu o formidável problema da
repressão social, as sementes do mal deixadas pelo corpo repressivo da
ditadura militar: seu oligopólio de mídia, seu judiciário, suas
polícias...A partir daí, a repressão política, mantida em fogo brando
nos últimos voltou a plenos pulmões: a Copa do Mundo e sua demanda por
segurança serviram de pretexto para a reunificação operacional das
polícias. Depois, esse aparato puniu seus alvos. O clima não tende a
melhorar.
O cenário global de rachas entre blocos na disputa por posições,
ironicamente há cem anos da Primeira Grande Guerra, tem degenerado
sistemas protetivos de direitos e garantias até então respeitados. Mas a
degeneração é uma possibilidade real do sistema.Os Estados Unidos da
América passaram a aplicar para seus próprios cidadãos o mesmo que
ajudaram, não raro, a patrocinar fora do país: invasão de privacidade,
prisões sem devido processo legal, tortura. Do outro lado, a Rússia,
apesar da breve inflexão tentada na perestroika, se viu sem
gradativamente sem direitos individuais ou sociais. Países como a China
apenas repetem a realpolitik que lhe fez, nos anos 1970, apoiar Pinochet
e guerrear contra o Vietnã. Quem não era democrático não se
democratizou, quem era em parte, enfim, se desdemocratizou como um todo.
A nova rodada de repressão no Brasil, que repete a tragédia como farsa,
se deve a um consenso amplo entre a velha direita e endireitados, mas
também à incapacidade analítica da esquerda que ainda resiste por aí:
não, o sistema não tem escrúpulos. A democracia sempre estará posta
contra o Estado. Se há Estado, ele convive com a democracia enquanto lhe
for conveniente, seja por bem ou por mal. Quem crê em democracia de
Estado (ou no Estado), crê em qualquer coisa. Mas isso que se passa se
deve ao fato de que algo foi abalado: Nenhuma ação fica sem resposta,
fazer política fora do Estado leva a recaptura por da máquina. É nesses
termos que a resistência precisa ser constituída. Mais do que tempos de
exceção, vivemos tempos excepcionais.
P.S.: Escrevi minha monografia de conclusão sobre o tema. Há um ano e
meio e já antevia algumas tendências. Quem quiser dar uma olhada é só clicar neste link.
Fonte: O Descurvo
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