PICICA: "Antonio Negri resenha o recente livro de Pierre Dardot e Christian Laval sobre o conceito de “comum” (baixar grátis aqui).
Para Negri, o comum além de superar a dialética público x privado,
permite situar os problemas práticos da organização, instituição e
produção no contexto das lutas hoje, com conceitos fortes para enfrentar
as formas de dominação capitalista. No livro dos autores franceses, no
entanto, Negri aponta insuficiências devido à tendência proudhoniana do
“associacionismo” — que transcende as relações de produção capitalista —
e da ideia de propriedade como roubo — e não, como em Marx, como
concreção de relações de força decorrentes da relação do capital, que é
um processo produtivo de integração do trabalho. (N.E.)"
Comum, entre Marx e Proudhon
21/07/2014
Por Toni Negri
Por Toni Negri, no il manifesto, em 6/5/2014 | Trad. UniNômade
Resenha de Commun. Essai sur la révolution au XXIe siècle, La Découverte, Paris, 2014, pp. 593
Antonio Negri resenha o recente livro de Pierre Dardot e Christian Laval sobre o conceito de “comum” (baixar grátis aqui). Para Negri, o comum além de superar a dialética público x privado, permite situar os problemas práticos da organização, instituição e produção no contexto das lutas hoje, com conceitos fortes para enfrentar as formas de dominação capitalista. No livro dos autores franceses, no entanto, Negri aponta insuficiências devido à tendência proudhoniana do “associacionismo” — que transcende as relações de produção capitalista — e da ideia de propriedade como roubo — e não, como em Marx, como concreção de relações de força decorrentes da relação do capital, que é um processo produtivo de integração do trabalho. (N.E.)
–
A metafísica do comum
Depois de seu livro juntos, Marx. Prénom: Karl (ed. Gallimard, 2012), Pierre Dardot e Christian Laval nos apresentam um Proudhon. Prénom: Pierre-Joseph.
Na Itália, tal título fictício bastaria para liquidar o livro,
lembremos a operação reacionária conduzida, entre outros, por Pellicani e
Coen na revista Mondo Operaio nos anos 1970, sob inspiração de
Bettino Craxi. Mas este livro não está por certo do lado deles. Ele
introduz na França e reabre, — assim esperamos — na Europa, o debate
sobre o “comum”.
Vamos então ao livro. Enquanto a
obra anterior dos autores era caracterizada por uma resoluta
“des-teologização” do socialismo (vale dizer, por uma argumentação
crítica contra qualquer teoria socialista que tentasse encapsular o
projeto final e a força de libertação comunista dentro do
desenvolvimento capitalista); a nova obra se caracteriza por uma
resoluta “des-materialização” do conceito de socialismo — esta é a
operação desenvolvida neste Ensaio sobre a revolução: uma
verdadeira e própria liquidação do materialismo histórico, da crítica
marxista da economia política do capitalismo avançado, tudo em nome de
um novo “princípio”. “Comum”: não comuns [commons], não “o”
comum, mas “comum” — “comum” como princípio que anima tanto a atividade
coletiva dos indivíduos na construção de riqueza e vida, quanto o
autogoverno interno a esta atividade.
No livro, um quadro ideal preciso é
apresentado e discutido, segundo este escopo. Ele parte “da prioridade
do comum como princípio de transformação do social, afirmado antes de
ser estabelecida a oposição entre um novo direito de uso e o direito à
propriedade”. A seguir, se estabelece que “o comum é princípio de
libertação do trabalho, além do mero princípio de que a empresa comum e a
associação devam prevalecer na esfera da economia”. É afirmada, além
disso, “a necessidade de refundar a democracia social, assim como a
necessidade de transformar os serviços públicos numa verdadeira
instituição do comum. Enfim, é estabelecida a necessidade de formar
comuns mundiais e, nesta finalidade, “inventar uma federação global dos
comuns”.
Uma visão idealista
A explicitação política do
princípio do “comum” é precedida de um longo trabalho de análise crítica
e construtiva, desenvolvido em dois tempos. Um primeiro — chamado “a
emergência do comum” — consiste em reconstruir o contexto histórico em
que se afirmou o novo princípio do comum, bem como em criticar os
limites das concepções de comum e comuns, elaboradas nos últimos anos
por economistas, filósofos e juristas, bem como por militantes.
Na segunda parte — “Direito
e instituições do comum” —, o livro pretende mais diretamente refundar o
conceito de comum. Faz isso situando-o sobre o terreno do direito e da
instituição. O livro, que nasce da influência de um seminário — “Do público ao comum“ (realizado de maneira ampla e contraditória no Collège International de Philosophie,
de 2011 a 2013) — aprofunda a ideia de comum ao referi-la,
fundamentalmente, àquela corrente do “socialismo associacionista”, que
vai de Proudhon à Jean Jaurès e Maxim Leroy e, a seguir, até Mauss e
Gurvitch, até chegar ao último Castoriadis (aquele de Instituição imaginária do social)
— sem nunca subtrair-se à tentativa de absorver qualquer traço do
pensamento marxiano, neste desenvolvimento “idealista” da projeção de um
socialismo vindouro próximo.
Desenvolvimento idealista: não
poderia ser outro o efeito produzido pela crítica e reconstrução do
conceito de comum, neste livro, porque, retomando Proudhon contra Marx, à
ruptura correta e sempre mais efetiva contra qualquer telos do socialismo, se segue dessa manobra uma não menos obsessiva desmaterialização
do conceito de capital e do contexto da luta de classe — por
conseguinte, no fim do livro, não se entende mais como o comum é
reivindicado, onde estão os sujeitos que o constituem, e quais são as
figuras do desenvolvimento do capital que lhe desdobram o pano de fundo.
Num cenário idealista, do livro sopra um
vento gélido — um pessimismo forte, quase uma constatação resignada de
que a produção de subjetividade, da parte capitalista, seja
materialmente implacável e historicamente irresistível. Diante do que
estão a submissão dos trabalhadores e a internalização do comando,
sempre mais duras na época do capital cognitivo — como gostaria a atual
ciência do management, e como testemunharia o novo sofrimento sentido pelos próprios trabalhadores (psicologia do trabalho adjuvante).
Então, que mais é o “comum”? Uma comunhão
de sofrimento? Algum deus que nos virá salvar? A mim parece, para
retomar o conceito de “comum”, que se deva indubitavelmente começar
seguindo uma via análoga àquela percorrida por Dardot-Laval. A crítica
que eles conduzem à noção de “comum”, seja em sua figura teológica,
jurídica, ecológica — em suma, em todas as formas de
objetivação/reificação que se repetem incansavelmente nesse fio condutor
— seja também naquela filosófica, que tende a banalizar o “comum” como
um novo ou alternativo “universal” — essa crítica é uma via justa.
Um verdadeiro conceito de “comum” pode dar-se somente como produto de uma práxis política consciente e, assim, compor-se num processo instituinte,
num dispositivo de “instituições do comum”. O “comum” encontra sua
origem não em objetos ou condições metafísicas, mas somente na
atividade.
Além da tragédia dos comuns
Neste quadro, a crítica que Dardot-Laval conduzem à ecologia dos comuns [commons]
de Elinor Ostrom é sem dúvida magistral, porque esclarece a natureza
liberal e individualista dessa ecologia — em que um sistema de normas é
trazido à baila para responder ao problema da “tragédia dos comuns”.
Seguindo a via indicada por Dardot-Laval, nós nos encontramos
rapidamente diante de uma encruzilhada — que se abre quando é alertado
que o comum não é simplesmente produzido por uma atividade genérica
(antropológica e sociológica) — mas, sim, produzido pela atividade produtiva.
Aqui, o confronto com Marx se torna inevitável e decisivo. Dardot-Laval
aparentam, no entanto, estar esmagados pela complexidade da questão.
Por um lado, de fato, os
autores estão encorajados pelas próprias hipóteses radicalmente
dessubstancializadoras (idealistas?) do comum, subvalorizando a sua
dimensão “social” — inclusive daquela proposta de Proudhon; por outro
lado, ao acusar os marxistas que enfrentaram o tema do “comum” (tendo
bem presente a nova figura “social” da exploração) de serem
“inconscientemente” proudhonianos.
Vejamos como se põe o problema, com quais apontamentos poderemos caminhar para além desta confusão.
É de todo evidente (e sem
dúvida também a Dardot-Laval), que o desenvolvimento capitalista atingiu
um tal nível de “abstração” (no senso marxiano de definição do valor)
e, portanto, uma capacidade de exploração que se estende por toda a
sociedade. Nesta dimensão da exploração, se constrói uma espécie de
“comum perverso”, de uma exploração exercida sobre e contra a sociedade
inteira. Sobre a vida inteira. O capital se tornou biopoder capitalista.
Em Dardot-Laval, o alerta a respeito desta globalidade e pervasividade
do biopoder, — ou melhor, da potência do “comum perverso”, — retoma as
razões da crítica à teleologia, tão denunciada no socialismo marxista,
quase como se o dado do biopoder por si só já levasse a uma nova deriva
teleológica. Porém, assinalar corretamente o limite marxiano da análise
dialética do desenvolvimento capitalista pode, talvez, anular ou nos
fazer esquecer as dimensões atuais do biopoder capitalista?
A crítica que Dardot-Laval
fazem à “exploração por desapossamento”, conforme D. Harvey, e de todas
as análises neomarxistas que apareceram no modelo marxiano da
“acumulação originária”, análogas ao que está havendo agora em nível
global — isto é, uma “exploração extrativa” — essa crítica é equívoca,
porque termina por negar o problema, ao mesmo tempo em que critica sua
solução. E é tanto mais equívoca porque ignora totalmente a função do
capital financeiro (ou, mais diretamente, a função produtiva do
dinheiro, juro e renda), ao acusar outros autores marxistas — atentos à
recomposição do rentismo como instrumento de exploração e nova figura do
lucro — de terem reduzido (proudhonianamente) o lucro a mero “roubo” de
um comum substancializado, “coisificado”.
Um roubo de mais-valor
Aqui, a posição de
Dardot-Laval parece esquecer, nos fogos da crítica, os lineamentos mais
elementares do pensamento marxista — e, em particular, que o capital não
é uma essência independente, um Leviatã, mas sempre uma relação produtiva de exploração.
E que, na condição atual, o capital financeiro investe o mundo
produtivo socialmente organizado, acumulando nos procedimentos de
extração de mais-valor: quer a exploração direta do trabalho operário,
quer o desapossamento de bens naturais, territórios e estruturas de bem
estar social [welfare], quer a extração indireta de mais-valor social,
por meio do exercício da dominação monetária. Se quiserem chamar tudo
isto de “roubo”, não me escandalizarei — não se está sendo proudhoniano
porque ao usar tal ou tal palavra, desde que se dê a ela o significado
que hoje o capital lhe dá: isto é, um modo de acumulação diretamente
enervado em novas formas do processo laboral e de sua
socialização — tanto na dimensão individual, quanto em sua figura
associativa. Quando Marx diz que o capitalista se apropria do excedente
de valor que a cooperação entre dois ou mais trabalhadores produz, não
nega decerto ao mesmo tempo que o capital também seja apropriado pelo
mais-valor dos trabalhadores individuais. O “roubo” integra a exploração
de mais-trabalho e torna o capital tanto mais indecente quanto mais a
produção se desenvolve.
No Marx de
Dardot-Laval, se sentia pulsar uma veia foucaultiana (penso com isto uma
abordagem histórica atravessada pela atenção às subjetividades
agentes). Agora, essa veia floresceu — florescendo, ela é conduzida em
direção à frutificação, numa consideração vivaz e dinâmica da história
do capitalismo. Aqui há — na ausência de uma metodologia historicamente
reflexiva — uma abordagem, certamente, durkheimiana (talvez
diretamente categorial, kantiana) ao desenvolvimento capitalista. O
capital fica parecendo uma máquina atemporal e onipotente. A “subsunção
real” não é mais vista como conclusão de um processo histórico, mas
considerada apenas como figura do processo da “reprodução alargada” do
capital.
Sem a classe e o capital
Ao lado disso, todavia, uma
certa historicidade é reintroduzida na consideração — de maneira
historicamente distendida — da eficácia destrutiva (sempre mais
realizada) da produção capitalista das/sobre as subjetividades no
trabalho. A luta de classe não existiria mais. Esta parece ser a
hipótese conclusiva de uma concepção que começou com a exclusão da luta
de classe — entendida marxianamente — pela constituição do conceito de
capital. Parece que a desmaterialização do “comum”, assim conduzida tão
laboriosamente (e a definição exclusiva do “comum” como “ação”, como
princípio de atividade), implica de maneira correspondente a
desmaterialização da “luta de classe” — como se também a exasperada
insistência sobre uma produção capitalista de subjetividade laboral,
interiormente assujeitada pelo comando, implicasse a negação da
subjetividade produtiva enquanto tal.
Mas sem subjetividade
produtiva não há nem sequer conceito de capital. Assim se conclui que,
diante da mutação histórica da exploração (no livro, incompreendida),
diante da definição do capital sempre mais como “poder social” (no
livro, negada), diante da emergência tão intensificada do “comum”,
imposta à realização de um novo modo de produção (e se nota que esta emergência já determinou novas formas de processo laboral)
— em face de tudo isto, se esquece que só o “trabalho vivo” é
produtivo. Que só a subjetividade é resistente. Que somente a cooperação
é potente. Que o comum não é, portanto, simplesmente “atividade”, mas
atividades produtivas de riqueza e de vida — e transformadoras do
trabalho. O comum não é um ideal (pode também sê-lo), mas é a forma mesma na qual a luta de classe hoje se define.
Perguntamos a Dardot e
Laval: se o comum não é hoje um desejo plantado pela crítica da
atividade produtiva, e se somente brilha diante de nossa consciência
atordoada ante a violenta penetração do biopoder, se é simplesmente um
“princípio” — que coisa então nos leva a lutar? Dardot e Laval parecem
responder que o princípio do comum é uma categoria da atividade, da
instituição: isto não se funda sobre o real, mas funda o real; não o
conquista mas (eles longamente argumentam enquanto o conceito vai pra
outro lugar) eventualmente o administra. Por que então lutar?
Além de cada uma das
críticas, este livro reabre o debate sobre o comum e ninguém se
surpreenderá que, dessa forma, seja reaberto também o debate sobre o
comunismo.
Divulgue na rede
Fonte: Universidade Nômade Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário