PICICA: "Precisamos resgatar o MinC que dialogava com juventude crítica,
lançava políticas de enorme repercussão internacional e contribuía com
radicalização da democracia"
Desesconder o Ministério da Cultura
Precisamos resgatar o MinC que dialogava com juventude crítica, lançava políticas de enorme repercussão internacional e contribuía com radicalização da democracia
Por Marcus Faustini* | Imagem Coletivo Teatral Sala Preta
“Fazer políticas culturais é fazer cultura”, afirmou o então Ministro da Cultura (MinC), Gilberto Gil, por volta de 2004/5. Mais do que bom frasismo, capaz de promover síntese, esse ponto de vista nos coloca diante de um amálgama, de constante reconfiguração na fundição desse metal chamado cultura, que inventa um lugar preciso — ainda não superado — para o MinC no jogo político e simbólico. Coloca a tarefa objetiva de uma instância governamental para além de dirigismo ou da procrastinação. Nada de um saudosismo por aqui, nem resgate ingênuo que não observa contradições. O fato é que perdemos essa postura, posicionamento e performance do ministério nos últimos anos. Serei direto, então, no recado desta semana.
Hoje, do jeito que está, se desfaz a perigosa fronteira que coloca o MinC no clássico lugar da fácil fala de “guardião de uma identidade nacional popular”, apenas para cumprir encenações de protocolo sem de fato fomentar a potência da diversidade dessas identidades em movimento, sucumbindo a sua atuação a programas fragmentados e ensimesmados. Uma falta de coragem em assumir o debate e as ações de um projeto de atualização do sentido da cultura que acaba contribuindo para a autoperpetuação das conhecidas formas e relações cambiantes em nosso país, que mantém a deliberada distinção, através de hierarquia, entre produção material da cultura versus produção imaterial. Sabemos muito bem que esse lugar difuso ao qual retornamos não diminui desigualdades regionais e não garante diversidade de imaginário e do protagonismo na produção e acesso. O MinC precisa voltar a ser um animador dos direitos culturais e de uma ecologia de formas de produção e acesso para o desenvolvimento. Não pode apenas estar resignado num lugar de regulador ordinário de práticas econômicas da cultura que possam se viabilizar como mercado, tratando o vasto campo em ebulição apenas com ações reparadoras, que restringem a ideia de diversidade como uma “exceção cultural” — pensamento já superado até pelos grandes organismos internacionais dos direitos culturais.
Já tive a oportunidade de apontar aqui na coluna e em outros artigos que parte considerável da falta de conexão com os movimentos de junho, sobretudo com as novas formas de expressão e organização da juventude que estava lá, vem desse controle e esvaziamento das políticas culturais do Ministério da Cultura que estabeleciam possíveis diálogos e ambientes de ação comum com grupos e ações culturais urbanas e rurais. Era a liga dessa nova geração com a institucionalidade. Uma brecha de contato, através das políticas capitaneadas por Gil e Juca Ferreira com suas inovadoras visões de cultura digital e dos pontos de cultura — uma ampla política pública que, além de disparar reconhecimentos represados historicamente, foi impulsionadora de formas de produção diversas e necessárias para a economia da cultura. É claro que os desafios institucionais e políticos foram grandes, como todo novo sistema de direitos e processos de produção carregam. O espanto é que esse momento de frescor que vivemos ali, reconhecido internacionalmente como eficaz contribuição para a radicalização da democracia, recebeu um forte freio de controle nos últimos quatro anos. Foram os ativistas culturais que mantiveram a causa e batalharam por ela no Congresso Nacional com ótimas estratégias de busca de aliados.
Um outro efeito, quase ainda não estudado, foi a forte influência positiva que aquele momento, aquele MinC, exerceu sobre municípios, gerando novas secretarias de cultura, departamentos e políticas para além das capitais.
O aprendizado que fica, mesmo nesse breve foco no assunto, é que uma instância de governo precisa ser um ator que inspira o debate, que age sobre as condições de produção. Se temos um ministério pouco catalisador, como guiar o desenvolvimento?
Falo isso tudo na condição de eleitor da Dilma, mesmo sem a alegria do voto, mas isso é assunto para o meu perfil nas redes sociais. Por ora, pego emprestado, com gosto dos Manuéis “Bandeira” e “de Barros”, o neologismo do então presidente Lula, que disse na mesma época que era preciso “desesconder a cultura”. Agora também é necessário desesconder o ministério.
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*Publicado originalmente em O Globo, este texto é republicado em Outras Palavras com anuência do autor.
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
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