PICICA: "Criado a partir das manifestações e acampadas de Indignados, o Podemos tem sido apresentado como a nova coqueluche da esquerda europeia"
Narciso em frente da sua imagem. Podemos ceder à tentação do nacionalismo?
17 de julho de 2014
Criado a partir das manifestações e acampadas de Indignados, o Podemos tem sido apresentado como a nova coqueluche da esquerda europeia. Por Passa Palavra
Face aos resultados das últimas eleições para o Parlamento Europeu boa parte da esquerda portuguesa virou baterias para o agrupamento espanhol Podemos. Criado a partir das manifestações e acampadas de Indignados, o Podemos tem sido apresentado como a nova coqueluche da esquerda europeia.
Face aos resultados das últimas eleições para o Parlamento Europeu boa parte da esquerda portuguesa virou baterias para o agrupamento espanhol Podemos. Criado a partir das manifestações e acampadas de Indignados, o Podemos tem sido apresentado como a nova coqueluche da esquerda europeia.
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Rezam as Metamorfoses de Ovídio
que o orgulho de Narciso teria levado Némesis a condená-lo a uma eterna
admiração do seu rosto espelhado na margem límpida de um rio.
Se as metáforas clássicas têm algum
valor, ele reside no quão bem elas podem ajudar-nos a descrever
determinados comportamentos. No caso da esquerda existente no continente
europeu, vislumbra-se um vasto sector político minoritário e que vive
há décadas atolado de vitórias morais. Perante os seus erros e tragédias
no século XX, e em vez de reflectir sobre os procedimentos e sobre os
programas que falharam reiteradamente, a esquerda parece preferir o
conforto das verdades feitas e das imagens de si mesma.
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Mas já que se fala de metáforas, vejamos o que Íñigo Errejón, dirigente do Podemos, disse numa longa entrevista ao jornal “i”.
Quando interpelado a propósito da «ultrapassagem do conflito entre
“esquerda” e “direita” para um conflito entre os de “cima” e os de
“baixo”», Errejón anula a ligação entre ambas as premissas: «muitos de
nós vimos de sectores políticos e intelectuais de esquerda. Mas direita e
esquerda são uma metáfora. Ser-se de esquerda traduz-se
fundamentalmente em gente que se agrupou à volta das causas do aumento
da democracia e da redistribuição da riqueza». Se Errejón descreve o que
é a esquerda em termos históricos, logo de seguida lembra que «essa,
creio que não é a diferenciação que é neste momento fundamental em
Espanha. Pelo contrário, é a diferenciação em torno da qual o Partido
Socialista e o Partido Popular gostariam que se voltasse a organizar a
competição política no país».
Se a política é jogada aqui no plano das
metáforas, torna-se então possível considerar as diferenciações sociais
e de classe como secundárias. Para Errejón «há muita gente que, sem se
considerar de esquerda, considera-se cidadão que tem sido roubado, acha
que a soberania popular e os representantes já não respeitam aquilo que
prometeram nas eleições e vê a liquidação dos direitos sociais. Estas
pessoas são a maioria da população, com a qual é necessário construir
uma mudança».
Se se for mais ao fundo da questão,
percebe-se como esta avaliação política de Errejón comunica com outros
sectores políticos da extrema-direita. Num artigo publicado a 7 de
Novembro de 1932 no Diário de Notícias, o futuro director do
Secretariado da Propaganda Nacional, António Ferro, clamava da seguinte
maneira: «acabemos, portanto, com essa lenga-lenga da direita e da
esquerda. […] Não há direita nem esquerda. Há Roma e há Moscovo. Todos
os caminhos vão lá dar. E até pode haver um — quem sabe? — que encontre,
ao mesmo tempo e no mesmo lugar, estas duas cambiantes». Desligar o que
Errejón chama de conflito entre os de cima e os de baixo de uma
formulação política consistente, e entrar pelo caminho da relativização
das categorias políticas, traduz um procedimento análogo ao
protagonizado setenta anos antes por António Ferro. Como se poderá
comprovar pela leitura subsequente da entrevista do dirigente do
Podemos, transforma-se a formulação já de si demasiado ampla de luta
entre os de baixo e os de cima numa luta entre as nações de baixo e as
nações de cima. Em suma, a raiz da crise económica estaria na existência
de «uma casta política» ao serviço das oligarquias financeiras
internacionais que, em conjunto, estariam a depredar as economias
nacionais. E assim se transforma o antagonismo estrutural entre os
produtores e os apropriadores de mais-valia num efeito de coesão
política interna entre explorados e exploradores de um país contra os
explorados e exploradores sediados nos países centrais da União
Europeia.
«Estamos
conscientes de que a União Europeia é um erro. A integração europeia
tem sido apenas um processo ao serviço do capital financeiro e contra a
soberania dos povos».
Este propósito político de substituir a
luta entre trabalhadores e capitalistas pela luta do povo nacional
contra a ingerência externa da União Europeia (e seus agentes internos
nos governos) corresponde precisamente ao princípio motriz de todos os
nacionalismos. Ora, se os processos socioeconómicos são substituídos por
processos geoestratégicos torna-se natural que Errejón chegue ao ponto
de defender que a alternativa à integração europeia em marcha (leia aqui, aqui e aqui)
seria um «processo em que haja uma transformação que garanta a
soberania dos povos e construa um caminho diferente de cooperação entre
os povos da Europa». Em suma, trata-se da Europa das nações, que tanto
anima a intervenção da extrema-direita ( leia aqui).
Na mesma perspectiva focada na crítica da finança — e nunca do
capitalismo — internacional, a avaliação que este dirigente do Podemos
faz do processo de integração europeia é a de que este «tem sido apenas
um processo ao serviço do capital financeiro e contra a soberania dos
povos». Desse modo, quando a Frente Nacional francesa se insurge contra a
actual «Europa sem povos» e pretende que a União Europeia estaria
«contra os povos» (leia aqui),
onde começam e onde acabam os paralelismos programáticos entre estas
formações políticas? Se o desenho da arquitectura da Europa é similar e
se o primado do Estado nacional se sobrepõe a qualquer projecto de
supranacionalização, não constituirão estes dados fortes indícios de uma
partilha programática entre ambos?
Mas se há quem pense que a
extrema-direita apenas se direccionou muito recentemente para a defesa
de uma Europa das nações, talvez devesse ler o seguinte trecho: «O
progresso da Humanidade exige o progresso de cada Nação de per si, para
que, sem hostilidade de umas para as outras, antes ajudando-se
reciprocamente, todas possam utilmente concorrer, por um racional
intercâmbio, material e espiritual, para o Bem Comum». E assim a
esquerda inovadora que do PCP aos apoiantes do Podemos defende uma
Europa das nações, não faz mais do que repetir algo que já tinha sido
enunciado em 1935 nas páginas 13 e 14 da Cartilha da União Nacional. Princípios fundamentais, conceitos económico-sociais, deveres do filiado.
A esquerda nacionalista defende que tem sido a extrema-direita a copiar
temas da esquerda. Na realidade, como se pode ver pelas fontes
documentais, tudo o que se relaciona com o vector nacional dessa
esquerda remonta à extrema-direita.
Instado a pronunciar-se sobre as
diferenças relativamente à extrema-direita, o dirigente do Podemos
alarga a noção de que esquerda e direita seriam metáforas à assumpção de
que, para além da questão da imigração, existem «traços comuns» entre a
sua organização e a extrema-direita. Aliás, Errejón deixa explícito que
o facto de o Podemos levantar as bandeiras contra a finança global e a
classe política estaria a impedir «o surgimento de uma extrema-direita
organizada e poderosa em Espanha». Mas, ao contrário do que uma leitura
desatenta ou uma ignorância histórica podem levar a pensar, não foi a
extrema-direita que teve o exclusivo de recuperação de temas à esquerda.
Ao contrário do que Errejón e o entrevistador pensam, os temas em torno
da classe política corrupta e do capital financeiro e apátrida surgiram
na extrema-direita, como se pode ver aqui.
O facto de Íñigo Errejón e o Podemos não
coincidirem programaticamente com a extrema-direita no que diz respeito
à imigração não apaga o facto de assumidamente partilharem importantes
teses políticas: 1) desqualificação do capitalismo enquanto um conjunto
complexo de relações sociais assentes na extracção de valor económico a
partir da exploração de elementos sem controlo sobre o processo social
de produção, e sua limitação a um mero sistema internacional
especulativo de rapina; 2) primado do Estado nacional e consideração de
uma nova Europa de nações soberanas, o que naturalmente implica o
reforço das fronteiras nacionais.
Este segundo ponto acerca do primado do
Estado nacional na actual conjuntura histórica merece uma breve nota.
Independentemente das variantes e contra todas as probabilidades hoje
existentes, se uma Europa das nações viesse a realizar-se, o reforço das
fronteiras seria uma inevitabilidade. Basta pensar que o robustecimento
dos Estados nacionais implicaria necessariamente um reforço da sua
autoridade sobre as pessoas do seu território administrativo e sobre as
respectivas fronteiras nacionais. O que por sua vez implicaria
obstáculos à livre circulação de pessoas. Se a isto se adicionar que a)
uma derrocada da União Económica e Monetária resultaria numa colossal
fuga de capitais e na consequente implosão do sistema bancário dos
países em piores condições económicas e b) não existem lutas autónomas e
massivas dos trabalhadores, a corrida aos proteccionismos nacionais
necessariamente teria repercussões no controlo fronteiriço de uma força
de trabalho desesperada pela nova situação que se iria gerar. Se ao
nível programático a esquerda nacionalista quer distinguir-se da
extrema-direita, ao nível prático as suas teses teriam consequências
muito semelhantes, inclusive no pretenso ponto diferenciador da
imigração.
O pior de tudo é a atitude cândida e
cognitivamente displicente com que estas palavras são recebidas à
esquerda. Certamente que os que elogiam pomposamente o Podemos terão
reflectido longa e seriamente sobre as implicações do desprezo pelas
questões de classe… Aliás, a preocupação estratégica parece ser tanta
que, em Portugal, autonomistas, stalinistas, trotsquistas e
movimentistas de todo o tipo se juntaram (ou empilharam) na realização
de um evento comum sobre o Podemos (veja aqui).
Fica-se sem saber se o que anima tal coexistência é o factor novidade,
pois ao lado de tanto foguetório panfletário sobre movimentos sociais,
democracia participativa e redes sociais, o que sobressai da entrevista
de Íñigo Errejón são precisamente o estatismo e o nacionalismo. Pela
amostra da entrevista não admiraria que, em caso de concretização, o
projecto do Podemos resultasse na mobilização de massas de trabalhadores
jovens precários e desempregados num projecto de fortalecimento
nacional dos Estados. Se alguém classificasse este processo de nacionalismo de base proletária não andaria muito longe da verdade. Se lhe chamasse prenunciador de uma revolta dentro da ordem também não.
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Narciso mira-se na água.
Considera-se esbelto, sem falhas, imaculado. Tal como a esquerda de hoje
que se extasia com o seu auto-retrato mas que, no final de contas, vive
presa ao fetiche de si mesma. Narciso: raiz mitológica da reflexão
sobre a ideologia ou a consciência milenar do equívoco dos que não vêem
mais do que a superficialidade de si mesmos? O certo é que no final da
história narrada por Ovídio, Narciso acabaria por se suicidar quando
compreendeu que não poderia concretizar o amor pela imagem de si mesmo.
Fonte: Passa Palavra
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