PICICA: "O homem moderno nasceu no fim do séc.
XVIII e já está para morrer, disse Foucault. Mas como nasce o homem que
conhecemos hoje? Como se dá vida a este ser? Durante a era moderna, o
poder descobriu o detalhe, o absolutamente ínfimo, aquilo que antes
passava despercebido. Até um pouco antes da revolução francesa, e a
partir daí com cada vez mais força, o homem se tornou algo que se
fabrica, o poder age em cada indivíduo para fabricar corpos dóceis. “O
corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o
desarticula e o recompõe” (Foucault, Vigiar e Punir)."
Foucault: Corpos Dóceis
“É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” – Foucault, Vigiar e Punir
O homem moderno nasceu no fim do séc.
XVIII e já está para morrer, disse Foucault. Mas como nasce o homem que
conhecemos hoje? Como se dá vida a este ser? Durante a era moderna, o
poder descobriu o detalhe, o absolutamente ínfimo, aquilo que antes
passava despercebido. Até um pouco antes da revolução francesa, e a
partir daí com cada vez mais força, o homem se tornou algo que se
fabrica, o poder age em cada indivíduo para fabricar corpos dóceis. “O
corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o
desarticula e o recompõe” (Foucault, Vigiar e Punir).
O
corpo se tornou alvo do poder, descobriu-se que ele podia ser moldado,
rearranjado, treinado e submetido para se tornar ao mesmo tempo tão útil
quanto assujeitado. O corpo foi dobrado pelo poder, através de várias
técnicas de dominação. Não que esta criação seja inédita, as relações de
força agem e agiram desde sempre, mas com a modernidade o corpo passa a
ser dividido, separado, medido, investigado em cada detalhe. Mais uma
peça na grande máquina de produção. E como qualquer produto de produção
em massa, o corpo humano passa por vários estágios até estar acabado:
família, escola, quartel, fábrica; ou sua versão moderna: família,
escola, faculdade, escritório. Caso alguma coisa dê errada, hospital,
hospício, cadeia.
“A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças dos corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência) [...] a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e a dominação acentuada” – Foucault, Vigiar e Punir
O poder separa o homem de si mesmo. Ele
não reprime, ele produz, ele cria corpos, exercita habilidades,
capacita, conduz. Isso se dá em várias esferas da sociedade, uma
alimentando a outra, são linhas de força que entram em ressonância, não
há um senhor rico e poderoso manipulando tudo, estão envolvidos
políticos, padres, ricos, pobres, enfim, a sociedade como um conjunto de
interesses e forças. Foucault descreve quatro mecanismos disciplinares
na formação de corpos dóceis:
Arte das distribuições: a
produção de um corpo dócil só é possível através de uma distribuição no
espaço. Arte dos arranjos. Um quadro onde cada um ocupe um lugar e se
possa tirar o máximo de cada indivíduo. A arquitetura geral passa a ter o
modelo dos conventos e dos monastérios, espaços individuais; um
universo isolado (ilhas de disciplina), mas enumerado e localizável. Nas
fábricas, nas escolas, os corpos são distribuídos de maneira a regular
os fluxos, as relações, as afecções. As ligações são ordenadas e
delimitadas: cada aluno no seu lugar, cada operário devidamente
posicionado na linha de montagem. Otimização do tempo e do espaço,
organização do múltiplo para impor-lhe uma ordem. A massa confusa
torna-se corpo de trabalho eficiente.
Controle das atividades: o relógio se tornou o grande senhor do nosso tempo. Já tratamos da Ditadura do Tempo (veja aqui).
Durante séculos, as ordens religiosas foram as grandes especialistas
neste campo dos ritmos e atividades regulares. Hoje encontramos isto em
quase todas as instituições: grade horária, relógio de ponto, sinal de
entrada, saída, intervalo. O tempo é precioso, deve ser usado com
destreza, o corpo dócil deve ficar concentrado, puro, firme, agir com
destreza através das várias etapas. Nada de ociosidade, nada de
distrações e vagabundagem. “Define-se uma espécie de esquema
anátomo-cronológico do comportamento” (Foucault, Vigiar e Punir). O
tempo possui o corpo dócil, impõe precisão, exatidão, ritmo perfeito. É
preciso extrair, arrancar mais tempo do tempo, e mais força de cada
segundo conquistado. Através do cálculo infinitesimal, divide-se o tempo
até o infinito, submetendo também infinitamente o indivíduo.
Organização das gêneses:
a organização do espaço e do tempo leva diretamente à acumulação de
saberes, e também dominação e sujeição. O indivíduo a ser docilizado
passa por várias etapas de formação, seu processo é dividido em classes,
medido por provas, melhorado por exercícios. Uma série de estágios
devem ser ultrapassados até que a formação esteja concluída, desde os
conteúdos mais simples até os mais complexos. O poder disciplinar
concentra-se nos detalhes, acumula-se na repetição. Assim o homem
“progride”, torna-se útil. A técnica que o funcionário domina é o
atestado de sua submissão. O importante é o exercício, a repetição cria o
“bom estudante” e o “funcionário exemplar”. Novamente vemos a ascese
das práticas religiosas, cuja salvação deriva da dor. “O exercício,
transformado em elemento de uma tecnologia política do corpo e da
duração, não culmina num mundo do além; mas tende para a uma sujeição
que nunca terminou de se completar” (Foucault, Vigiar e Punir).
Composição das forças:
todo treinamento converge para um ponto máximo onde a composição de
forças gera o máximo de eficiência, uma massa amorfa de indivíduos se
torna agora um único corpo maquinal para guerrear, produzir, exibir
conhecimento. A soma é maior que as partes individuais, mas a
organização é sempre exterior, superior, quase transcendente. O sinal do
professor, do supervisor ou do coronel deve ser respeitado e obedecido
imediatamente. Brevidade maquinal, moral de obediência. A máquina
articulada não permite refletir, o corpo treinado se acopla e reproduz.
O poder produz indivíduos, age na
subjetividade e nos corpos: separa, codifica, exercita, posiciona,
organiza, acumula, compõe, prescreve. Age na anatomia, mecânica e
economia dos corpos. Não surpreende a escola parecer tanto com o
quartel. A técnica de guerra é importada ao estado. Mas já não escutamos
o barulho ensurdecedor de bombas, tiros, gritos e gemidos de dor;
apenas o barulho cinza dos carros, aparelhos eletrônicos e máquinas
registradoras acompanhando o silêncio mórbido dos olhares mortos de
corpos dóceis.
Fonte: Razão Inadequada
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