PICICA: "[...] a vida é sempre maior do que o poder."
Procura-se Bakunin
Na atual onda de prisões e processos dignos de Kafka, o episódio mais
jocoso diz respeito ao pensador anarquista Bakunin: nas famosas escutas
telefônicas que levaram Sininho e dúzias de outros manifestantes ao
cárcere, a polícia carioca ouviu uma menção ao dito cujo,
que passou a figurar na lista de "investigáveis". Mal sabiam que o
russo Mikhail Aleksandrovich Bakunin faleceu há quase cento e cinquenta
anos, bem longe daqui, em Berna, na Suíça.
Mas no absurdo, que é o traço comum de qualquer sistema repressor
quando enlouquece, se revela uma mentira verdadeira: de certa forma,
Bakunin é mesmo culpado. Certamente, ele não pode ser condenado do modo
que o aparato deseja (perversamente): seu corpo próprio não existe mais
para ser supliciado, embora os afetos desse mesmo corpo, inscritos neste
mundo, persistam bem vivos disparando um desejo de libertação da
própria libertação.
Vejam bem, as vítimas da última rodada de repressão eram ativistas mais
intelectualizados, que se encaixariam no perfil de "líderes das
manifestações" -- isto é, aquilo que o sistema precisa encontrar para se
saciar, mesmo sabendo que ninguém liderava nada. Muitos deles sim
sabiam quem era Bakunin, mas isso é o que menos importa aqui. A revolta
tinha um ar de Bakunin pelo fato de que ideias suas, autenticamente
suas, estavam vivas como uma espécie de senso comum virtuoso. E o
triunfo do pensamento, meus caros, ocorre quando a glória da autoria
sucumbe à transformação do conceito em comum. É nesse sentido que
Bakunin estava ali sem estar.
Muitos daqueles manifestantes eram como cavalos de Bakunin: e o cavalo aqui é empregado no sentido
das religiões de matriz africana, e seus sincretismos locais, enquanto o
signo animalesco para o receptor da incorporação do que é incorpóreo. A
afro-brasilidade, em outras palavras, já reservou um lugar para o agenciamento na
sua espiritualidade bem consistente. E o agenciamento é o bloco do
devir: o cavaleiro devém cavalo enquanto o cavalo devém cavaleiro. Mas
aqui se trata de um agenciamento até mais intenso, pois o cavaleiro é o
incorpóreo que vem a este mundo afeta-lo. E eram muitos servindo de
cavalos, pensando além do Estado, pensando contra os resquícios mínimos
de transcendência.
O poder se depara com um horror que não é, ironicamente, o desespero de
ter cometido uma senhora estultice: muito pelo contrário, ele se
desespera porque encontrou um culpado real que, no entanto, é
invencível. Como prender, condenar ou mesmo julgar esse espectro que
existe a revelia da nossa consciência de sua presença? Pior, o que fazer
com esse espectro provocador, cujo esforço do pensamento foi,
justamente, o de pensar a nossa libertação do processo de libertação
sem, no entanto, renunciarmos à liberdade? A polícia seguirá no encalço
de nosso foragido mesmo assim, mas não sem o pânico de saber que, apesar
de tudo, a vida é sempre maior do que o poder.
Fonte: O Descurvo
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