julho 03, 2014

"No Olimpo do futebol, entre os deuses da bola", por Lúcio Flávio Pinto

PICICA: "Claro que há a corrupção, as ilicitudes, a vilania, a violência, a manipulação e outras coisas que já foram ruins e, hoje, são péssimas do caráter nacional (ou na falta dele), Mas é assim a humanidade – e assim ela caminha. Infelizmente, o brasileiro “maneiro”, farfalhante, exuberante, jovial e bem humorado não consegue desviar suas melhores qualidades para objetivos e projetos mais densos, de longa duração, profundos. A culpa não é do futebol ou do carnaval. É uma chaga a desafiar a veia civilizatória deste lado incivilizado do mundo. Ou dito melhor: desta forma específica de incivilidade." 


COPA DO MUNDO

No Olimpo do futebol, entre os deuses da bola

Por Lúcio Flávio Pinto em 01/07/2014 na edição 805


Reproduzido do Jornal Pessoal nº 563, junho de 2014/2ª quinzena; intertítulos do OI


Calcula-se que em algum momento das transmissões dos jogos da Copa do Mundo, 3,5 bilhões de terráqueos estavam sintonizados com esse acontecimento. Nada no planeta Terra provoca igual interesse. Nem da mais longa distância competitiva possível. São 3,5 bilhões de imbecis, débeis mentais, desocupados, idiotas? Num universo desse tamanho cabem todas as classificações. Mas uma coisa é certa: o futebol há de possuir alguma magia inigualável para gerar tal efeito planetário.

Outros esportes, como o vôlei e o basquete, para ficar nos coletivos, são mais cerebrais, nervosos, tensos. E o que falar de uma corrida rasa de 100 metros ou do nado livre de 50 metros? Toda força e capacidade humana de concentração estão ali, naqueles segundos de duração. Ainda assim, nenhuma dessas competições sequer se compara ao futebol com seu poder magnético e, frequentemente, hipnotizador.

Logo, é estultice ignorá-lo. No Brasil, total falta de discernimento e mesmo de atenção pelo que interessa. Não é por acaso que somos os únicos a participar de todas as copas do mundo, termos a maior quantidade de títulos, realizarmos competições com estatísticas espantosas. Nada é mais sério para o brasileiro do que o futebol, inclusive o carnaval, outro dos momentos superiores na vida nacional.

Apesar de todos os pesares e condicionantes, nesses dois procedimentos o Brasil não tem rival no mundo. São duas festas que assumem sua dimensão maravilhosa porque são executadas com vontade, competência, devoção e alegria. São das melhores características do homo brasiliensis, o que o distingue dos demais primatas inteligentes (ou não), quase únicas em seu paroxismo.

Pose aristocrática

Claro que há a corrupção, as ilicitudes, a vilania, a violência, a manipulação e outras coisas que já foram ruins e, hoje, são péssimas do caráter nacional (ou na falta dele), Mas é assim a humanidade – e assim ela caminha. Infelizmente, o brasileiro “maneiro”, farfalhante, exuberante, jovial e bem humorado não consegue desviar suas melhores qualidades para objetivos e projetos mais densos, de longa duração, profundos. A culpa não é do futebol ou do carnaval. É uma chaga a desafiar a veia civilizatória deste lado incivilizado do mundo. Ou dito melhor: desta forma específica de incivilidade.

A prova dos nove está na constatação de que, tendo tudo para dar ruim, a Copa do Mundo de 2014 aconteceu de fato. Roubou-se pantagruelicamente nas suas obras, várias das quais se mostrarão inúteis, desperdiçou-se tempo para fazer as coisas mais bem acabadas, prometeu-se o que não foi cumprido, mas a coisa começou, como posso testemunhar neste texto, escrito no dia seguinte ao da abertura, com Brasil e Croácia.

Todas as celeumas, conflitos e abusos ficaram à margem do cenário que funcionou: uma torcida de fervor contagiante nas instalações do estádio e dois times de futebol lá embaixo, no gramado. Nenhuma encenação humana, nenhum espetáculo na Terra se equipara como fenômeno (ou epifenômeno, acrescentaria alguém mais pretensioso) de massa a um jogo de futebol, em especial quando praticado por representações de países, como na Copa do Mundo.

Todo contexto permanece como é e está. Iludiram-se (e continuam a se iludir), porém, os que imaginaram inviabilizar o acontecimento. O melhor que deviam fazer era deixar para depois a retomada do processo normal no Brasil dos nossos dias, que é complexo, conflituoso, sangrento e cruel. Engana-se quem pensa que o torneio de futebol alterará essa mecânica, a fruição dessa dinâmica, qualquer que venha a ser o campeão ou o desfiar de ocorrências e incidentes.

O Brasil vive a mais longa democracia da sua história. Um partido de esquerda de origem operária controla o poder há três mandatos, antecedido – durante outros dois mandatos – por um partido que se pretende social-democrata e também de esquerda. Ainda assim, a presidente da república se privou do tradicional ritual da Copa com medo de receber vaias ou ser ofendida (como acabou acontecendo, em escala nada traumática).

Gravou mensagem por cadeia de emissoras, tuteladas pelo Palácio do Planalto, dois dias antes da abertura. A partir daí só se pronunciou em recinto fechado. No estádio, ficou escondida, cenho fechado, intimidada e isolada. Suas manifestações, de choro e de riso, foram a enorme distância da massa, que, como toda massa, alterna humores. Que contraste com outras copas, nas quais o representante máximo dos anfitriões participou diretamente da festa.

Foi assim na primeira Copa que acompanhei plenamente, a de 1958, na Suécia. Nunca mais esqueci o rei Gustavo, que desceu ao estádio para cumprimentar todos os jogadores, sem perder a pose aristocrática, mas deixando transparecer sua convicção: de que ali era apenas um coadjuvante; os verdadeiros reis do espetáculo não usavam ternos de corte elegante, como ele. Estavam de calção, chuteira e meião, se autoriza a licença poética.

Lance de sorte

Lembraremos de Dilma Roussef quando a memória nos trouxer de volta a esta copa? Não precisamos cair na armadilha dos manipuladores de sempre, que pretendem nos induzir a achar que na época da ditadura era melhor. Alegam que o general Médici ia ao estádio e, como o típico torcedor brasileiro, levando seu radinho de pilha, mantido colado ao ouvido enquanto os olhos tentam perscrutar o que acontece na vida real.

Médici não foi vaiado e até escalou Dario Maravilha sem ser contestado. Mas quem se atreveria a qualquer contestação pública ao ditador, amparado na força armada e ostensiva?

Hitler também era popular nas olimpíadas de 1936 e abusou dessa popularidade, sem conseguir, no entanto, que os vapores da sorte polvilhassem com mais medalhas os atletas arianos. Já o general Médici tinha tal estrela (cujo brilho, na presidência, só perdeu para a de Lula) que o Brasil foi tricampeão. Ele próprio chegou ao cargo maior da República por um lance de sorte, ao final de uma disputa entre grupos militares que é definida por acontecimentos do tipo da batalha de Itararé, aquela que foi sem ter sido.

Ao futebol, pois, com toda energia. Porque depois o mundo continuará a girar e a Lusitana a rodar. Como tem que ser.
 
Brasil vaia e xinga: isto é civilização?

Imagine-se a cena: como anfitriã da solenidade de abertura da Copa do Mundo de 2014, a presidente da república se dirige ao microfone para fazer a saudação de praxe nessas ocasiões. É vaiada. Nada de anormal. A vaia é tão legítima quanto o aplauso. Seguem-se xingamentos e palavrões pronunciados aos gritos. A presidente permanece impassível, mas imediatamente lugares estratégicos no estádio começam a ser ocupados por policiais civis, militares e federais em número suficiente e aparato bastante para intimidar aqueles que foram além da vaia democrática.

Digamos que dois mil agentes de segurança tenham ocupado posições nos lugares de onde partiram as ofensas à autoridade máxima da república brasileira. Mesmo que eles não prendam nem hostilizem ninguém, sua presença há de ter pelo menos um efeito: fazer com que a duração das agressões encurta ou diminua. Isso ocorrendo, a presidente da república podia fazer sua saudação às delegações futebolísticas de todos os países e aos visitantes e turistas.

No seu discurso, necessariamente curto, ela também dirá que lamenta ter ouvido uma manifestação com tal hostilidade, mas que não se sentiu merecedora das agressões e que prefere fazer coro com o silêncio eloquente da maioria do público ali presente, que lhe conferiu o mandato de principal autoridade pública do país.

Não teria sido muito melhor, para a presidente e para todos os brasileiros, que a assessoria de Dilma Rousseff tivesse preparado um cenário desses? A submissão à intimidação apequenou ainda mais a presidente, fazendo-a se esconder e revelar ao mundo a incongruência de um país, em plena democracia, no qual a chefe de Estado e de governo é encurralada no corner como uma lutadora de quinta categoria, que não consegue se recolocar num cenário desfavorável e até injusto, mas previsível na conjuntura em que se achava – e ainda se acha – o Brasil.

Desejo de grandeza

A cena deve ter causado vergonha aos cidadãos, por qualquer ângulo que eles a observaram naquele momento. E aquele momento parece ter-se desdobrado em situações inverossímeis num país sem espinha dorsal. Já há entre os petistas os que consideram positivos os ataques a Dilma. Primeiro porque esses críticos raivosos, localizados na ala Vip do estádio do Corinthians, em São Paulo, são o que de pior o Brasil tem: a sua elite.

Além de reacionária e antipopular, ela estaria sendo ingrata. Essa gente foi a que mais ganhou nestes quase 12 anos de PT no poder. Talvez não tanto quanto no período anterior da socialdemocracia, que montou o aparato de favorecimento. Mas muito mais do que a ralé da sociedade, assistida pelos programas ditos de inclusão social, na verdade simplesmente compensatórios e de nefastos efeitos no futuro, se mantidos como uma muleta manipulada pelos oportunistas e demagogos, alguns sofisticados, outros analfabetos funcionais.

É claro que o protesto não se circunscreveu aos Vips. No meio dos manifestantes havia muitos que estavam ali para assistir as partidas de futebol. Não esqueceram, contudo, o quanto as obras foram superfaturadas, o criminoso retardamento dos cronogramas para possibilitar os serviços emergenciais que ninguém controla, as deturpações das funções dessas obras e muito mais. Aspectos ignorados pela mídia, que ecoava essas críticas certeiras, quando a bola começou a rolar e o caixa a faturar. A partir daí, como dizem os que entendem do assunto, business as usual.

Os aproveitadores e sofistas tomaram conta de novo do gramado depois que a onda de protesto passou. Os dilmistas tentando fazer o eco ressoar até a gestão anterior. Os lulistas empenhados em circunscrever a rejeição à “gerentona” do PAC, colocado no cargo e levada até a presidência pelo mesmo Lula, baseado na presunção de que a competência da companheira (de última hora) era unanimidade, quando já não é nem desconfiança.

Esses marqueteiros acreditam em alquimia. Podem transformar em palavrões em provas em favor da vítima, estimulando as emanações nacionais de comiseração pelo)a) pobre coitado(a), como se diz no dialeto do politicamente correto. A presidente é estimulada à hipertrofia da generosidade, da compreensão, do entendimento superior.

Para transformar pó em ouro, ela declara que o povo brasileiro é civilizado. É mentira. O povo brasileiro pode ser classificado como alegre, festivo, generoso e outros qualificativos mais. Menos o de civilizado. Pois justamente é a falta de um componente de civilização que o projeto de desenvolvimento do Brasil não se desgarra da desigualdade social indecente, do desrespeito cotidiano aos mais elementares e comezinhos princípios civilizatórios. Civilização, eis o que não temos e fulmina nosso desejo de grandeza no mundo.

O Brasil ainda é pão & circo, como se pôde mais uma vez constatar no superlativo vazio do Itaquerão.

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Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA) 

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