PICICA: "Por que o racismo contra os índios é o mais intenso hoje em dia?
Simples: porque os setores políticos que se dirigem contra a injustiça
ainda estão majoritariamente abastecidos pelo eurocentrismo e, como
tais, pela teleologia do progresso. Assim, de alguma forma existe um
destino comum (pode colocar o “comunismo” aí) que nos uniria e
libertaria do capitalismo, proporcionando a emergência de novos regimes
sociais e econômicos. Que os índios tenham que ser libertados do
capitalismo, não há dúvida. Eles sentem esses efeitos por todos os
lados, seja pelo colonialismo do agronegócio e da pecuária, seja por
verem cada vez mais seu espaço social de convivência reduzido às franjas
urbanas, identificando-se com os pobres das cidades e tendo que
garantir sua subsistência com artesanato e assistência social do Estado.
No entanto, sem dúvida eles não se identificam com a figura do
trabalhador explorado que percorre o imaginário da esquerda tradicional.
A questão é que esse imaginário é totalizante e autoritário: ele não
aceita dissidência e pluralismo, trabalha a partir de oposições simples e
reduz toda figura que transborda a um reflexo pálido de um dos polos.
Isso significa que, provando sua brutal ignorância antropológica, boa
parte da esquerda, e em especial a que hoje governa o país, considera
que o índio é alguém que precisa ser “incluído”, ser transformado em
trabalhador e se unir à luta dos demais contra o capitalismo. Em outros
termos, essa esquerda subscreve o etnocídio que significaria
erradicar as culturas indígenas e as desfigura para que caibam no seu
esquadro reduzido que obviamente é um reflexo torto do mundo europeu.
Todas as potencialidades de uma tradução cultural que poderia constituir
um Brasil plural e inclusive referencial para um novo modelo
sócio-econômico ficam soterradas por um projeto monolítico com uma única
missão: progredir, produzir, consumir. Aqueles que estão fora desse
espaço de disputa, embora sintam nas margens os efeitos perversos,
simplesmente não existem para essas representações.
Não existem. Tenho vários amigos governistas e toda vez que lanço o
argumento do que o Governo Federal vem fazendo em torno de ofensiva
anti-indígena a conversa simplesmente estanca. Ou desvia-se. Perguntado a
um importante intelectual brasileiro mais ou menos alinhado ao Governo
sobre a dissidência indígena,
ele respondeu recentemente que ela “talvez” exista. Nas linhas escritas
pelos defensores do Governo Dilma os índios simplesmente não aparecem, a
questão não existe. “Índios, pena que já morreram todos, não?” Aliás, a
própria questão do reconhecimento do índio
é usada como contra-argumento: “índio? Mas usa celular!”. Como se as
culturas não se transformassem, como se elas, por se manterem,
significassem oásis de pureza, e como se uma das coisas que mais
chamasse atenção nas culturas ameríndias fosse exatamente sua vocação
antropofágica, seu olhar para o outro que fratura do eu. De qualquer
forma o índio sempre perde: se veste calça jeans, não é o índio; se não
veste, é primitivo. As duas situações levam ao mesmo raciocínio: acabar
com eles."
Por que o racismo contra indígenas é o maior de todos no Brasil?
Admito que é uma estratégia que pode não apenas parecer de mau gosto, mas até de certa perversidade, ficar comparando graus de racismo. Pode parecer que se está desprezando o sofrimento de quem quer que o sofra em algum grau, e tudo isso já seria por si só eticamente inadmissível. No entanto, não é essa minha intenção. Ela é simplesmente a de chamar atenção para uma questão relevante e para um processo em curso que muitas vezes não encontra a mesma repercussão exatamente porque se está diante de um fenômeno extremado. É o caso do racismo contra os indígenas no Brasil.Tradicionalmente tidos como “primitivos” e por muitos dados por “extintos”, os índios hoje constituem uma parte relevante da população brasileira inclusive populacionalmente, uma vez que vêm tendo alguns focos de recuperação após a Constituição de 1988 e o início das demarcações de terras diante de um massacre de 500 anos. A atribuição de “primitivos” hoje não faz qualquer sentido na medida em que são nossos contemporâneos, a menos que nos consideremos tão superiores aos demais povos que toda aquela cultura que não é a nossa é algo que está “atrás”, “chegando” na nossa, mesmo que ela se passe ao mesmo tempo, tomando diferença por inferioridade. Afora esse preconceito etnocêntrico, Eduardo Viveiros de Castro tem demonstrado ao lado de outros importantes antropólogos que a cultura indígena é também um referencial que pode ser uma linha de fuga para o colapso civilizacional que o Ocidente vive em termos ecológicos, à medida que se contrapõe à nossa “necessidade extensiva” como uma “suficiência intensiva”. A vida baseada no baixo impacto ambiental dos índios contrapõe-se ao nosso impulso destrutivo que na maioria das vezes, embora materialmente insustentável, justifica-se com base em padrões messiânicos que, mesmo secularizados, continuam alimentando o imaginário político do Ocidente, sobretudo na ideia de “senhorio” da natureza, como se a Terra fosse nossa propriedade numa espécie de “destino comum” a que chegaríamos no fim da História. A forma ameríndia de pensar é completamente diversa, mas não cabe a mim, um mero iniciante nessas questões, desenvolvê-la. Queria apenas afastar qualquer tipo de justificação racional para a forma racista como o índio é visto, mostrando que se trata não de racionalidade, mas de racionalização (no sentido freudiano).
Por que o racismo contra os índios é o mais intenso hoje em dia? Simples: porque os setores políticos que se dirigem contra a injustiça ainda estão majoritariamente abastecidos pelo eurocentrismo e, como tais, pela teleologia do progresso. Assim, de alguma forma existe um destino comum (pode colocar o “comunismo” aí) que nos uniria e libertaria do capitalismo, proporcionando a emergência de novos regimes sociais e econômicos. Que os índios tenham que ser libertados do capitalismo, não há dúvida. Eles sentem esses efeitos por todos os lados, seja pelo colonialismo do agronegócio e da pecuária, seja por verem cada vez mais seu espaço social de convivência reduzido às franjas urbanas, identificando-se com os pobres das cidades e tendo que garantir sua subsistência com artesanato e assistência social do Estado. No entanto, sem dúvida eles não se identificam com a figura do trabalhador explorado que percorre o imaginário da esquerda tradicional. A questão é que esse imaginário é totalizante e autoritário: ele não aceita dissidência e pluralismo, trabalha a partir de oposições simples e reduz toda figura que transborda a um reflexo pálido de um dos polos. Isso significa que, provando sua brutal ignorância antropológica, boa parte da esquerda, e em especial a que hoje governa o país, considera que o índio é alguém que precisa ser “incluído”, ser transformado em trabalhador e se unir à luta dos demais contra o capitalismo. Em outros termos, essa esquerda subscreve o etnocídio que significaria erradicar as culturas indígenas e as desfigura para que caibam no seu esquadro reduzido que obviamente é um reflexo torto do mundo europeu. Todas as potencialidades de uma tradução cultural que poderia constituir um Brasil plural e inclusive referencial para um novo modelo sócio-econômico ficam soterradas por um projeto monolítico com uma única missão: progredir, produzir, consumir. Aqueles que estão fora desse espaço de disputa, embora sintam nas margens os efeitos perversos, simplesmente não existem para essas representações.
Não existem. Tenho vários amigos governistas e toda vez que lanço o argumento do que o Governo Federal vem fazendo em torno de ofensiva anti-indígena a conversa simplesmente estanca. Ou desvia-se. Perguntado a um importante intelectual brasileiro mais ou menos alinhado ao Governo sobre a dissidência indígena, ele respondeu recentemente que ela “talvez” exista. Nas linhas escritas pelos defensores do Governo Dilma os índios simplesmente não aparecem, a questão não existe. “Índios, pena que já morreram todos, não?” Aliás, a própria questão do reconhecimento do índio é usada como contra-argumento: “índio? Mas usa celular!”. Como se as culturas não se transformassem, como se elas, por se manterem, significassem oásis de pureza, e como se uma das coisas que mais chamasse atenção nas culturas ameríndias fosse exatamente sua vocação antropofágica, seu olhar para o outro que fratura do eu. De qualquer forma o índio sempre perde: se veste calça jeans, não é o índio; se não veste, é primitivo. As duas situações levam ao mesmo raciocínio: acabar com eles.
Assim, enquanto os movimentos negro, feminista e LGBT, por exemplo, conseguiram capitalizar suas demandas e transformar-se em força política de peso, inserindo suas demandas no quadro da política, os índios são objeto de uma indiferença atroz (ressalvadas algumas mobilizações importantes que vem em crescente, mas recebem o silêncio institucional como resposta). A indiferença da invisibilidade, da não-questão, da falta de importância. E nesses termos o discurso da esquerda é exatamente igual ao da direita, que ao fim e ao cabo deseja mesmo é por fim de vez nos índios (“por que demoram tanto!? Esses latifundiários de terra!”). É quase como dissesse: “Não tem como resolver e falta tão pouco para que eles acabem… que terminem logo!”. Enquanto a esquerda simplesmente ignora a questão, tratando como um problema menor diante da exploração do trabalhador pelo sistema capitalista ou da conquista da igualdade social, ela repete, consciente ou inconscientemente, o projeto da direita, que é erradicar os índios para que os verdadeiros latifundiários possam avançar também sobre essas terras e no final transformar todo o verde em verdinhas. Isso me traz de volta à questão do por que, afinal, o racismo contra os índios é o maior? A resposta é: porque ele é o único que pode ser explicitado como racismo na esfera pública. Os negros nos anos 50 e 60 tinham que conviver com declarações racistas de políticos do Sul dos EUA quando militavam pela igualdade de direitos. Hoje, ninguém se atreveria a fazer declarações racistas senão como um ato falho ou em forma de piada (último esconderijo do racismo). Ninguém pode chegar na esfera pública e declarar que é racista ou que negros são isso ou aquilo. Com os índios, pode. Uma pessoa pode, como um candidato a senador do Rio Grande do Sul recentemente fez, dizer que “quantos índios no Brasil deixaram de ser índios e se tornaram profissionais respeitados?” Troque índio por negro e se vê o que acontece. Mas não só ele, que é um candidato imediatamente identificado com o conservadorismo. Também tem gente de esquerda (ou de ex-querda, dizem as más línguas) afirmando que a cultura indígena vai terminar mesmo, e o que se pode fazer é incluí-lo e transformá-lo no pobre trabalhador. A ideologia do progresso está embutida nesse pensamento. Deveríamos relacionar sem pudores essa estratégia à “cura gay”: o que se quer é que o índio não seja mais índio porque não se quer mais diferença. “Incluímos desde que você não seja mais índio”. Ou: “vamos te curar do primitivismo”. A atrocidade disso é patente.
Por isso, a diferença do racismo com os índios em relação a outras modalidades hoje em dia é essa: os índios são o único grupo social a quem se pode dirigir na esfera pública propondo o extermínio da sua condição especial. Talvez não o único, mas o mais atacado, isso não importa: a questão aqui não é de quantidades, mas de um modelo insuportável de racismo que sobrevive e justifica a ofensiva anti-indígena mais intensa desde a época da Ditadura Militar que vivemos hoje em dia.
Fonte: O ingovernável
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