PICICA: "Está aberto o caminho para novas versões e
refinamentos da hipótese da alma: e conceitos como ‘alma mortal’, ‘alma
como pluralidade do sujeito’, ‘alma como estrutura social de impulsos e
afetos’ querem ter, de agora em diante, direito de cidadania” –
Nietzsche, Além do Bem e do Mal, § 12"
Nietzsche e as possibilidades da alma
Muito se fala sobre Nietzsche, pelos
blogs circulam dezenas de citações que muitas vezes não são suas; talvez
ele seja o filósofo alemão mais famoso atualmente. Mas poucos vêem para
além de seu bigode exagerado e percebem que por trás de seus aforismos
aparentemente desconexos se esconde um sistema filosófico magnífico que
procura afirmar a vida sem necessidade de monumentos metafísicos
flutuando no ar.
Há vários motivos para incluir Nietzsche numa contra-história da psicologia.
O próprio filósofo escreve pouco antes de seu colapso mental que “antes
de mim não havia sequer psicologia” (EH). Para ele, todos aqueles que
diziam estudar o homem se baseavam em considerações metafísicas de
origem platônica e posteriormente cristã, mas sem nunca parar para
pensar se estas próprias idéias tinham alguma consistência. O primeiro
trabalho do filósofo-psicólogo então é desconstruir as ilusões criadas
na unidade do homem, que ele mesmo chama de atomismo anímico.
Demócrito (460 a.C.) já havia postulado o átomo
como algo indivisível, indestrutível, imperecível. Esta sedução da
linguagem nos leva por um caminho enganoso que foi seguido
posteriormente por Platão, pelo cristianismo, Descartes, Kant e
Schopenhauer. Contudo, “a unidade da palavra não garante a unidade da
coisa” (HDH). Só porque temos uma palavra que indica algo, isso não se
dá necessariamente. O mundo é um mar de forças,
por trás do átomo encontramos várias outras partículas relacionando-se
umas com as outras; a crença na unidade não passa de uma busca por um
porto seguro, um ponto de apoio onde se fixar. Mas a imobilidade mata a
vida. Platão pensou encontrar este lugar no mundo das idéias, do
qual nosso mundo seria apenas uma cópia imperfeita e perecível; e assim,
sua busca por um mundo superior, desvalorizou nossa realidade. O
cristianismo, cópia vulgar do platonismo, persiste neste fóssil
metafísico da unidade, não consegue ver que toda essência é ilusão.
Precisamos voltar a Heráclito e dizer que o rio que entramos pela
segunda vez não é o mesmo que o primeiro porque suas águas já são
outras. Mas principalmente, nós mesmos já somos outros também.
Todas estas idéias se repetem quando falamos do homem. “A
versão materialista do atomismo ainda não é o solo mais profundo a que a
crítica pode chegar, porque há um ponto ainda mais radical que o
atomismo materialista, que é o atomismo psíquico, atomismo da alma”
(Giacoia, p. 54). Buscamos algo de essencial e eterno no ser humano,
algo que resista às forças tanto internas quanto externas e que
sobreviva ao movimento. Esta ilusão se dá na palavra “Eu”. Mas esta
noção é completamente aleatória, uma mentira útil, servindo apenas na
medida em que serve ao próprio homem. A alma é um jogo de forças, um mar
agitado num embate furioso onde uma onda se sobrepõe à outra. Minha
consciência é apenas um subconjunto, a última e mais recente parte, que
se manifesta nessa dança corporal de impulsos. Várias partes do meu
processamento cerebral escapam à minha consciência, várias condições
corporais me passam despercebido, a mente consciente é uma janela
reduzida demais para chamar de “alma”. Se do átomo só encontramos seu
movimento e sua força, Nietzsche nos propõe chamar o corpo de um grande
conjunto de vontades, afetos, impulsos e sensações:
Está aberto o caminho para novas versões e refinamentos da hipótese da alma: e conceitos como ‘alma mortal’, ‘alma como pluralidade do sujeito’, ‘alma como estrutura social de impulsos e afetos’ querem ter, de agora em diante, direito de cidadania” – Nietzsche, Além do Bem e do Mal, § 12
Se o mundo externo não possui unidade por
si só, mas é uma criação do homem para suportar o infinito devir da
existência, o mesmo deve ser aplicado ao homem; a multiplicidade de
forças do mundo é a mesma pluralidade de forças internas que move o ser
humano, os dois não constituem nada mais que uma unidade transitória, um
rio no qual temos a ilusão de entrarmos duas vezes. Deste modo,
palavras como essência, alma, unidade, eu, passariam a ser apenas
palavras, criações que nos utilizamos sabendo que são mentiras, porque
por debaixo desse suposto “Eu” se escondem milhares de outros “Eus”, que
também querem e desejam e se empurram na busca para crescer e saciar
suas vontades. Está desfeita a unidade de Descartes ao dizer “penso,
logo existo”, porque o próprio “eu” se multiplica por detrás de si;
Schopenhauer também afirmou a unidade do sujeito no “Eu quero”, mas ele
não pode ignorar a pergunta “quem quer?”.
A
ideia de ter várias almas é deslumbrante, poético demais para não ser
filosofia. Se precisamos interpretar o mundo, por que não assim? O
objetivo principal de Nietzsche é não se esconder atrás de nada que
diminua o prazer de viver e não esconda a realidade e toda sua
magnitude. Assim podemos encarar a existência de frente, com seu lado
bom e ruim. A vida é movimento, e determinadas idéias procuram
dissimular o andamento do rio, secá-lo. “Só conseguimos estar
atentos a esta coloração da vida quando nos despojamos da necessidade de
hábitos duradouros, porque estes dão a falsa ilusão de um território
seguro, mas na realidade congelam nossa existência numa única estampa”
(Aline Nascimento). O objetivo de Nietzsche ao postular várias almas é
também trazer a opção de novas possibilidades, outras interpretações,
que afirmem a vida por si própria sem recorrer à “céu”, “inferno” e
outras existências para validar a nossa realidade.
“Assim falava alguém de si para si, em uma caminhada ao sol da manhã: alguém em quem não somente o espírito, mas também o coração sempre se transforma de novo e que, ao contrário dos metafísicos, se sente feliz por albergar em si, não ‘uma alma imortal’, mas muitas almas mortais” – Nietzsche, Humano Demasiado Humano II, §17Fonte: Razão Inadequada
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