PICICA: "A tese de doutorado de
Bárbara Szaniecki, agora transformada em livro, é uma defesa apaixonada
do que seria uma linha torta ou caminho errante, do design – de certa
forma antecipada por Lina Bo Bardi e antes dela, no Brasil, pelos
artistas antropófagos e depois dela, pelos tropicalistas – uma busca do
que seria um design encarnado, monstruoso, nômade, uma história do
design a contrapelo (Benjamin) aberta a outros designs possíveis, ou
seja, a defesa de um campo ampliado do design que se afirma como uma
ciência “menor” ou nômade, molecular ou máquina de guerra
(Deleuze/Guattari), des-utópica (Negri) ou, ainda, uma afirmação do
campo ampliado do design como um “gai savoir” (Didi-Huberman via
Bataille). Um alegre saber do design, torto ou “menor” – construído pela
ou a partir das minorias, como Deleuze/Guattari escrevem a partir de
Kafka: “uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a
que uma minoria faz em uma língua maior” – e, sobretudo, encarnado."
“Mas
é a observação atenta de pequenos cacos, fiapos, pequenas lascas e
pequenos restos que torna possível reconstruir, nos milênios, a história
das civilizações. O desenho industrial e a arquitetura de um país
baseados sobre o nada são nada. Num país que, sobre uma
pseudo-arquitetura mais especulação-da-construção, sobre um
pseudo-industrial design, desfralda um pressuposto ingresso no convívio
das grandes nações, essas notas querem ser um repensamento, não apenas
para quem conhece o caminho, mas também para quem, em boa fé, pensou que
o caminho aparentemente mais fácil fosse o caminho válido.”
Lina Bo Bardi, “Por que o Nordeste?” (1963) em Tempos de Grossura: o design no impasse.
“Percebemos uma linha torta do design: Bauhaus
Imaginista, Internacional Situacionista, design tropicalista, design
encarnado na multidão”.
Bárbara Szaniecki (tese de doutorado, 2010)
Bárbara Szaniecki (tese de doutorado, 2010)
A tese de doutorado de
Bárbara Szaniecki, agora transformada em livro, é uma defesa apaixonada
do que seria uma linha torta ou caminho errante, do design – de certa
forma antecipada por Lina Bo Bardi e antes dela, no Brasil, pelos
artistas antropófagos e depois dela, pelos tropicalistas – uma busca do
que seria um design encarnado, monstruoso, nômade, uma história do
design a contrapelo (Benjamin) aberta a outros designs possíveis, ou
seja, a defesa de um campo ampliado do design que se afirma como uma
ciência “menor” ou nômade, molecular ou máquina de guerra
(Deleuze/Guattari), des-utópica (Negri) ou, ainda, uma afirmação do
campo ampliado do design como um “gai savoir” (Didi-Huberman via
Bataille). Um alegre saber do design, torto ou “menor” – construído pela
ou a partir das minorias, como Deleuze/Guattari escrevem a partir de
Kafka: “uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a
que uma minoria faz em uma língua maior” – e, sobretudo, encarnado.
O design encarnado, proposto por Bárbara Szaniecki, se aproxima muito do que defendo com a ideia de urbanismo incorporado (Elogio aos errantes),
apesar de buscarmos traçar as linhas tortas ou marginais de campos de
conhecimento tidos como distintos (design e urbanismo), as pistas
seguidas – cacos, fiapos, pequenas lascas e pequenos restos, como diz
Lina Bo Bardi – parecem bem próximas (o que também aproxima os próprios
campos) e se encontram nas práticas populares, coletivas ou anônimas dos
espaços urbanos. Táticas desviacionistas (De Certeau) ou profanatórias
(Agamben), como aquelas usadas pelos construtores informais das favelas
brasileiras: gênio anônimo coletivo (Hélio Oiticica), homens lentos
(Milton Santos), sujeitos corporificados (Ana Clara Torres Ribeiro),
praticantes ordinários que criam, modificam e transformam, no cotidiano,
outros usos e novas possibilidades alegres e tortas de apropriação dos
espaços e objetos. Trata-se da linha desviante das micro-resistências,
das sobrevivências e coexistências não pacificadas, o caminho errante ou
linha de fuga das gambiarras, dos devires-galinha caipira, cão mulato
ou gato pardo, só para usar alguns dos termos usados pela autora, que
explica: “para persistir nesse mundo-cão, precisamos criar, inventar,
gerar outros mundos-gatos”.
Para construir as bases iniciais desta linha torta a
autora cria ou se apropria de uma multidão de conceitos, noções e
termos, todo um novo léxico é construído ao longo do texto: monstruação,
multiformances, plataformas, commons, disforme, dentre vários
outros. As ideias se multiplicam, o argumento central se desdobra na
multidão conceitual que abre, a cada momento, novas linhas de fuga,
desvios, desterritorializações... As ideias não seguem uma linearidade,
elas vão e vem, parecem dar voltas, escapam, mas se articulam,
“precariamente”, por platôs em contínua variação. Vários monstros surgem
e conduzem erraticamente o leitor. Sim, outras monstruações são
possíveis. Algumas ideias do livro anterior da autora (Estética da Multidão)
também ressurgem, atualizadas. Várias pistas aparecem de forma fugidia,
não são seguidas ou são deixadas, como rastros, ao longo do caminho
errante, tortuoso, do texto. Algumas intuições mais livres da autora nos
deixam com um gosto de “quero mais”. São inúmeros devires-outros,
devires-desvios que nos sugerem um devir-menor da multidão, ou
devir-micro, como indica a resposta de Deleuze a Negri citada no texto:
“Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos,
mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos
espaços-tempo, mesmo de superfície ou volume reduzidos”. Micro-multidões
que articulam singularidades menores, dissonantes, na esfera pública.
Diante do momento atual de mega-eventos (e mega-manifestações), pensar o
micro, o “menor”, o pequeno acontecimento dissensual é fundamental,
urgente e, como sabemos, não se trata de uma simples diferença de
escala, mas de uma diferença fundamental de forma de pensar e de estar
no mundo. E mais do que uma forma de estar no mundo, o que a autora nos
propõe são outras formas de produzir, de criar, de inventar mundos
outros.
A linha torta que aparece nas brechas do campo do design
e da sua articulação com o campo da arte desviam das práticas do design
mais racional e racionalizante ainda hegemônico ou “maior”, são
contrapontos críticos que surgem como micro-resistências potentes,
insistentes e propositivas. Como diz a própria autora: “Ao desenho de um
mundo hierarquizado contrapomos um design encarnado na multidão como
desejo de outros monstros possíveis.” O presente livro mostra de forma
veemente e, por vezes, quase de um manifesto, que outros tipos de design
são possíveis e que estes emergem, horizontais e coletivos, contra o
design hegemônico, empresarial e mercantil (em particular hoje da dita
economia ou indústria criativa). Contudo, estes outros tipos de design
não podem nem devem ser confundidos, por sua potência política e de
resistência crítica, com uma forma mais tradicional de design militante,
engajado e, menos ainda, com um design holístico (Bruce Mau). São
outros designs experimentais, desejantes e dissensuais, onde estética e
política são indissociáveis, um tipo de design encarnado na multidão em
seu devir-menor. Como o urbanismo incorporado (que seria seu maior
aliado nas questões urbanas), o design encarnado também operaria pelo
princípio da montagem (Didi-Huberman via Warburg/Benjamin) compreendida
tanto como uma ação (micro) política quanto como uma outra forma de
conhecimento crítico que, ao reunir narrativas e imagens distintas,
dissonantes, paradoxais e, a partir do choque e do conflito entre elas,
seria capaz de tensionar, desestabilizar e, assim, desterritorializar a
linha reta, ou o caminho hegemônico, do design.
nota
NE – A presente resenha está publicada no livro como apresentação.
sobre a autora
Paola Berenstein Jacques é arquiteta-urbanista,
professora da faculdade de arquitetura e do programa de pós graduação em
arquitetura e urbanismo da UFBA, coordena o grupo de pesquisa
laboratório urbano, a plataforma de ações Corpocidade e edita a revista Redobra.
Fonte: vitruvius
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