julho 04, 2014

"Nós, que amamos tanto Fellini", por Deni Rubbo

PICICA: "Dirigido por Ettore Scola, outro cineasta italiano genial, “Que estranho chamar-se Federico” revela cinema transgressor e imaginativo, apenas possível naquele país e época"

Nós, que amamos tanto Fellini


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Dirigido por Ettore Scola, outro cineasta italiano genial, “Que estranho chamar-se Federico” revela cinema transgressor e imaginativo, apenas possível naquele país e época

Por Deni Rubbo, do Brasil de Fato
Para L.

Era improvável ocorrer algo de errado em Que estranho chamar-se Federico – Scola conta Fellini. Trata-se do novo filme de Ettore Scola, 82, um dos maiores cineastas italianos, que não filmava há mais de dez anos, mas definitivamente não se esqueceu de seu ofício. Pela peculiaridade da obra, do homenageado (Federico Fellini) e do homenageante, qualquer tentativa de chafurdar erros, equívocos, excessos, parecerá inútil e ingênuo. Por isso, nossa questão não diz respeito à qualidade do filme – se é “bom” ou “ruim” –, mas ao significado histórico dessas duas figuras canônicas do cinema italiano.

Antes de qualquer coisa, estamos diante de um filme que pede passagem para se sentar e evocar, com gentileza e doçura, emoções e memórias de duas trajetórias que se entrecruzaram na história social de seu país. Assim, não se trata apenas de uma (justa) homenagem a Fellini, mas de construiruma afinidade eletiva, profissional e afetiva que ligou diuturnamente dois mestres do cinema italiano.


As afinidades eletivas tanto do cidadão de Rimini quanto do cidadão de Trevico começaram cedo. Ambos trabalharam em Roma no jornal satírico “Marc’Aurelio”, realizando desenhos e charges de humor. Um mundo à parte esse, aliás. Ao retratar a dinâmica da produção diária do jornalismo humorístico, Scola não destaca apenas as intermináveis reuniões sobre o “centro” (isto é, qual desenho deveria ser colocado na manchete principal do jornal), mas revela também um jeito muito especial de construir humor. Ficamos com a impressão de que os profissionais do “Marc’Aurelio” não faziam humor pelo humor, mas um humor peculiar, astuto, irreverente, que almeja politizar paulatinamente o mundo social circundante. Eis aqui a escola de formação de Fellini e Scola, que foram gestados no contexto do fascismo italiano. Não se trata apenas sorrir, mas de como sorrir. Naquela época, uma maneira de resistência era realizar a arte da ironia, do sarcasmo, do exagero. E isso através de um trabalho incansável de desenhos que buscavam o extravagante, o caricato, o cômico, o engraçado, o grotesco, o picaresco. Um fato revelador é que quando tinha nove anos Scola lia as colunas do jornal para seu avô cego, inclusive as do jovem Fellini. E foi essa experiência familiar que fez com que o ainda secundarista fosse se apresentar ao “Marc’Aurelio”.

Há muitas outras passagens que revelam a convergência das trajetórias desses dois artistas transgressores. Por exemplo, a afamada participação de Fellini, interpretando a si mesmo no filme de Scola Nós que nos amávamos tanto (1973). Também a predileção de ambos por Marcelo Mastroianni para interpretar muitos de seus filmes.

Tudo que é imaginação será permitido nos filmes de Fellini. A imaginação é a alma do cinema. É como se fosse um princípio do mestre de Rimini. No filme, Scola faz uma afirmação contundente, provavelmente a mais forte caracterização do universo felliniano: um Pinóquio cujo nariz nunca cessou de crescer. Fellini seria o maior mentiroso do mundo. Um genuíno trapaceiro.

Porém, não foi apenas por meio do sonho e da imaginação que Fellini contou suas “mentiras”, mas também por intermédio de pessoas reais, concretas, conhecidos e anônimos, que conheceu durante inumeráveis madrugadas na capital italiana. Era uma espécie de etnografia noturna, já que sofria de insônia, um laboratório social que inspirou outros tantos personagens do diretor de Noites de Cabíria.

Como se sabe, Fellini e Scola possuem uma maneira peculiar de fazer cinema que não encontramos em qualquer parte do globo. Não há rastro de seu estilo no cinema, salvo alguns diretores italianos. Se os membros do Pasquim tivessem saído do tabloide ao cinema, um Henfil, por exemplo, talvez pudéssemos ver algo parecido. Não sabemos. De todo modo, com esse cinema a sétima arte ganhou um novo ramo alimentado pelo campo de produção dos artistas, vagabundos e loucos, captando suas extravagâncias e seus delírios, da bailarina ao mágico, do músico ao palhaço.Trataram de injetar humor crítico no cinema e de evocar emoções inesperadas. Paixões pela vida. Uma das cenas finais do filme não poderia ser melhor exemplo disso quando é mostrado o velório de Fellini (com cenas reais) onde dois guardas ficam vigiando o caixão. Em um determinado momento, o falecido (Fellini) foge do caixão fazendo com que os soldados o procurem.

Ettore explica que Fellini jamais pensou em realizar um filme triste, lúgubre, melancólico. Fellini não gostava desses sentimentos. Mas, então, porque ficamos invariavelmente emocionados e eventualmente fios de lágrimas correm em nosso rosto? Porque uma sombra de tristeza espreita os filmes alegres de Fellini? Afinal, como os deuses da imaginação e do encantamento provocam uma sensação oposta? Talvez porque alegria e tristeza sejam irmãs de sangue. Mas não se preocupe, caro leitor, pois, nesse caso, as lágrimas que escorrem são lágrimas alegres, porque a vida é uma mistura extravagante dessas duas fortes correntezas.

Pensando bem, os filmes de Fellini são esperançosos porque para todo sorriso, seja provocado, seja espontâneo, existe sempre um novo ciclo. Na verdade, às vezes, muitas vezes, sempre, é preciso viver de maneira felliniana: apaixonadamente livre.

Fonte: OUTRAS PALAVRAS

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