PICICA: "O antagonismo central em 2014 não é, como na Copa, uma disputa entre
estados-nação, mas sim o capital contra a multidão em escala global, o
que perpassa os Estados. O Estado brasileiro só interessa quando posto
em função da luta global por democracia, o que importa num movimento
externo e um outro interno de democratização, sem ressalvas. Nenhuma
violência pode ser tolerada, ou criticada seletivamente, sob os
auspícios de uma revolução socialista silenciosa vinda de alguma
burocracia celeste, se é que alguém realmente acredita nisso. É tudo
muito simples: Gaza e o Complexo da Maré são metrópoles do mesmo país."
Diário da Terra do Nunca: a Palestina é Aqui
Gaza sob ataque de Israel |
No ano do centenário da Primeira Grande Guerra estamos, ironicamente, às
voltas com um quadro agitadíssimo: cenários de guerra tomam conta da
Ucrânia, Síria, Iraque e, sobretudo, a Palestina -- e o massacre de Gaza
toma conta do noticiário --, as potências do mundo emergente se unem
nos BRICS -- numa alternativa ao mundo americanocêntrico --, o Brasil
segue agitado em sua política, depois das Jornadas de Junho, uma série de prisões políticas é empreendida -- inclusive com a pirotécnica operação que prendeu dezenas de militantes no Rio de Janeiro, os quais foram recém-libertos, muito embora continuam a responder a processo criminal.
Nada disso está desvinculado, no entanto. O Brasil potência emergente,
aquele que se alinha aos demais países pobres para fazer frente ao
"mundo unipolar", é o mesmo Brasil potência que partiu para a repressão
política organizada -- numa operação que passa pela integração dos
vários tipos de polícia de vários estados, judiciário e mídia. O Brasil
de fora não contradiz o Brasil de dentro, ao contrário, eles se explicam
em um sentido extra-moral: articulam o capital e o trabalho a partir de
uma burocracia de Estado nação, o que, entretanto, implica em ações
específicas no plano interno e no plano externo -- que podem ter,
dependendo de como se veja, efeitos diversos, mas não causas
dissociadas.
Esses movimentos da diplomacia brasileira, em sintonia com a vanguarda
emergente, geram, em certa medida, algum grau de liberdade na política
internacional, quando se opõem ao eixo americano, mas isso é
colateralidade: não estamos falando de um internacionalismo, mas de uma
outra arquitetura para um mesmo arranjo global. O mesmo mundo,
mas articulado de um outro jeito. O que, de certa maneira, não é
qualquer ameaça ao capitalismo global, muito pelo contrário: ao criar
uma alternativa que não aquela de um Império Global assentado na
estrutura centralizada, e decadente, dos EUA -- isto é, o santíssima
trindade Hollywood-Bombas Atômicas-Dólar --, o capitalismo ganha
sobrevida.
Sim, porque a pior ameaça ao capitalismo global é, ironicamente, os EUA,
que de guardião militar, cultural e monetário do mundo unificado, se
tornou uma superpotência desequilibrada, instável, dada a aventuras. Sua
substituição não é fácil, mas é necessária. E não tem a ver com
"imperialismo", "colonialismo" ou "alter-mundialismo", não há
coincidência entre as demandas do capital global e da multidão
insurgente, mas sim que esta pressiona de tal forma a gestão atual do
Império que aquele precisa se rearticular -- e não só existe essa
pressão, mas que os próprios mecanismos atuais são insuficientes.
Boa parte da crise econômica atual se deve às crises americanas internas
que, no entanto, foram exportadas para o globo: o rombo das contas
públicas, por uma guerra patética como a do Iraque, foram pagas pelos
excedentes do mundo emergente, os ajustes nas contas públicas -- que
passavam sim pelo enxutamento de suas forças armadas -- foram protelados
pela emissão desenfreada -- e artificial desvalorização -- do Dólar, as
suas instituições públicas e privadas de regulação financeira
fracassaram clamorosamente, as guerras se voltaram mais para a
satisfação de um esquema protecionista industrial -- no caso, do
complexo bélico-armamentista -- do que na contenção das classes
perigosas.
A aliança entre os Estados "emergentes", Brasil à frente, cada dia mais
suscita uma possibilidade mais segura para o capital. Inclusive porque a
Europa, com o Euro, não conseguiu se tornar a alternativa a Washington.
Mas esses Estados, todos, sustentam e gerenciam, cada qual ao seu modo,
o capitalismo local. É certo que, no caso de sucesso dos Brics, haja um
intercâmbio cada vez maior entre os parceiros em termos de tecnologias
de poder, além de políticas macroeconômicas. E tudo isso serve, a
priori, para a sustentação dos capitais nacionais ou egressos do
"primeiro mundo" que hoje estão radicados em seus territórios.
Aí, aportamos novamente no Brasil. No mesmo ciclo em que ele
protagonizou, na esfera internacional, alguns dos episódios mais
relevantes em direção à nova ordem mundial -- ao sediar a reunião chave dos Brics e reagir diplomaticamente à ofensiva israelense em Gaza
--, por outro lado, existe uma política de Estado voltada ao
endurecimento com manifestantes; a democracia substituída pela razão
econômica e, também, pelas razões geopolíticas. Realizar a Copa a
qualquer custo é tarefa de honra. Organizar os Estados emergentes,
idem.
A tese da bondade externa do Brasil, quando vista apenas em confronto
com a opacidade de Washington, prevalece, mas ela resta relativizada
quando ponderada à luz de si mesma: o mesmo Brasil que critica a ação em
Gaza é aquele que intercambia intensamente com Israel, inclusive no plano militar, seja na venda de armamentos leves para lá quanto na incorporação de armas e logística israelense na opressão de nossas favelas. Em outras ocasiões, como a ocupação brasileira no Haiti,
temos uma outra página pouco questionada da história brasileira -- que
serve também para a opressão internacional e, também, para o treinamento
para a repressão social no plano interno. A política externa
terceiro-mundista e alternativa importa, também, na exportação de empreiteiras brasileiras para obras questionáveis pelo mundo em desenvolvimento, sobretudo na América Latina.
A análise que Bettelheim fazia acerca da União Soviética pós-Stalin é
válida, também, para o Brasil, atual: existe um mecanismo duplo de
colaboração e contradição com a ordem mundial; e não há qualquer
disfunção nisso, o movimento duplo é como o de qualquer sócio que
disputa uma corporação com demais sócios ou, na política, de um
partidário que disputa um partido com correligionários rivais. No fim, a
ordem mundial ou a corporação e o partido dos exemplos restam intactos.
A rivalidade e a disputa por hegemonia é, no entanto, retrabalhada
ideologicamente para, gradualmente, servir à legitimação da repressão
interna -- o que potencializa a gestão do trabalho pelo capital (nem que
seja estatal ou sob o comando de um Partido "Comunista").
O Império global concebido por Negri e Hardt está na ordem do dia,
embora precise ser repensado diante da complexidade das relações
internacionais atuais: a unidade econômica foi feita, mas não tem,
ainda, anteparos políticos para dar conta das contradições entre o
capital global e cognitivo e a multidão produtiva e produtora. A crise
americana gerou um desarranjo que expôs as vísceras da máquina, mas ela
está longe de ser derrotada. Há apenas um abalo no céu. O que se passa
no Brasil de hoje não está longe ou alheio a nada disso. Mais do que os
velhos trotskystas, que insistiam na internacionalidade da luta, seria o
caso de relembramos Rosa Luxemburgo, clamando contra os trabalhadores
que se esfacelavam nas trincheiras da (centenária) Primeira Guerra.
O antagonismo central em 2014 não é, como na Copa, uma disputa entre
estados-nação, mas sim o capital contra a multidão em escala global, o
que perpassa os Estados. O Estado brasileiro só interessa quando posto
em função da luta global por democracia, o que importa num movimento
externo e um outro interno de democratização, sem ressalvas. Nenhuma
violência pode ser tolerada, ou criticada seletivamente, sob os
auspícios de uma revolução socialista silenciosa vinda de alguma
burocracia celeste, se é que alguém realmente acredita nisso. É tudo
muito simples: Gaza e o Complexo da Maré são metrópoles do mesmo país.
P.S.: Nada disso apaga a complexidade das relações políticas internas e
externas do Brasil. Nem seus defensores à esquerda negam os fatores
heterogêneos que compõem a organização do Brasil Novo. Só vemos com
preocupação a reviravolta dos últimos anos, que potencializaram
tendências, em parte, mitigadas nos oito primeiros anos do ciclo
petista. É preciso reinverter certos sentidos.
P.S. 2: Um mundo pós-americano é interessante e necessário. Talvez, uma
nova ordem mais pulverizada fosse, a priori, melhor. O que não quer
dizer que seja uma saída. Uma confederação global de fundo estatal não
responde à altura as demandas libertárias.
PS. 3: Se opôs aos Estados Unidos pode sim ser uma brecha democratizante interessante, mas é preciso fazê-lo sem pretensões de tomar seu lugar -- ou construir algo que pense em fazer isso.
Fonte: O Descurvo
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