PICICA: "Se o governo tem capacidade de reunir as forças
políticas num objetivo comum e, além disso, capacidade gerencial para
realizar um megaevento, por que essas mesmas capacidades não têm sido
usadas para realizar uma mudança igualmente “magnífica” nos setores da
saúde, educação, mobilidade urbana e moradia, entre outros?"
Um legado da Copa para os movimentos
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Tem sido dito que a organização da Copa foi magnífica. Os aeroportos funcionaram, os estádios estiveram a contento, a recepção das delegações e turistas foi super-elogiada, e a infraestrutura das cidades-sede à altura da grande demanda. Os estrangeiros aprovaram a festa e isso melhorou a imagem do país, aumentou a nossa autoestima.
Vamos assumir que isto esteja correto.
Por um lado, de fato, depõe a favor do governo Dilma. Contrariando as críticas de que a Copa seria um caos (#ImaginanaCopa), mostrou capacidade gerencial, habilidade em compor politicamente as várias esferas de governo, estaduais, municipais.
Por outro lado, no entanto, esse sucesso imediatamente abre um questionamento. Se o governo tem capacidade de reunir as forças políticas num objetivo comum e, além disso, capacidade gerencial para realizar um megaevento, por que essas mesmas capacidades não têm sido usadas para realizar uma mudança igualmente “magnífica” nos setores da saúde, educação, mobilidade urbana e moradia, entre outros?
A resposta do governismo costuma ser: porque não temos correlação de forças. E o que fazer para mudar a correlação de forças? Fazer a reforma política e, uma vez feita, conquistar maioria no Congresso. Depois as coisas deslancham como consequência. Qualquer outra via significa enfraquecer o que foi construído a duras penas, num cenário social potencialmente reacionário em que espreitam as forças golpistas e oportunistas da direita.
Quem ouve esses argumentos tão comuns no PT ou PCdoB poderia ser levado a acreditar que a presidenta Dilma esteja refugiada no Palácio do Planalto, com uma direita traiçoeira pronta a desferir golpes, refugiada no último bastião da esquerda em meio a um caldo conservador e manipulável da sociedade brasileira.
Tal discurso atualiza o velho tema do grande líder rodeado de inimigos e intrigas palacianas, que deve ser protegido a qualquer custo. Não à toa as críticas, mesmo à esquerda, sejam sempre encaradas como “tentativas de desestabilização”.
Mas, possivelmente, em vez da paranoia tão denunciada pela palavra “desestabilização” (o velho tema do déspota paranoico e seus burocratas perversos), o problema seja outro. Depois de 12 anos, o governismo se acostumou ao poder, se encastelou numa zona de conforto, e agora guarnece muralhas contra a barbárie circundante da direita. Só que, como no conto de Kafka, os bárbaros já estão dentro.
Ora, vamos cair na real. Dilma é presidenta com ampla base aliada no Congresso, com sólida carteira de alianças estaduais, parceiros empresariais, canais de financiamento, e está caminhando para uma reeleição em primeiro turno, sem adversário à vista.
O problema está, ao contrário, já dentro, nos arranjos políticos, financeiros e empresariais que propiciam a organização e realização de um megaevento como a Copa do Mundo, mas são imprestáveis, e até contraproducentes, para mexer nas estruturas do sistema de saúde, educação, mobilidade urbana ou moradia. A Copa (ou Belo Monte) não é apenas consequência desses arranjos: mas consolidam os arranjos, os tornam ainda mais firmes e duradouros. Nem na CBF, depois dos 7 x 1, o governo quer mexer.
Os megaeventos e megaempreendimentos de sucesso *dão ainda mais estabilidade* aos pactos, alianças e esquemas na base do governismo, com suas pseudodivergências internas, tão de mentirinha quanto qualquer edital de concorrência entre grandes empreiteiras. O “sucesso”, aí, é sucesso desse consenso que não enfrenta a desigualdade, muito pelo contrário.
Enquanto isso, tenta-se esquecer o lado escuro desse “sucesso”: os removidos de comunidades pobres, os alvos do higienismo urbano e seus choques de ordem, os manifestantes presos, intimidados e desarticulados, os operários mortos nas obras e grande parte da população cujo dinheiro escoa através de investimentos públicos para megaprojetos cujo legado social, no fim das contas, é qualitativamente negativo.
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Mas não é pra se deprimir. Por muito tempo no Brasil, valeu a divisão que aos movimentos cabia o papel da tática; ao partido, a estratégia. Os primeiros reivindicam, pressionam, colocam o bloco na rua. O último integra as demandas num programa duradouro de poder, e ocupa as instituições.
Um dia o partido virou governo e as táticas foram colocadas a serviço da estratégia superior, mais ou menos como numa divisão simplória entre meios e fins. “Governabilidade” se tornou primária. Com o tempo, os movimentos começaram a ser tratados como funcionários subalternos nas reuniões do planalto. Outros movimentos vieram e, com autonomia, passaram a ocupar o vazio das táticas.
Hoje talvez seja um momento para dar um passo adiante. Somente as táticas é pouco. Quando a estratégia superior se estagnou, a ponto de ser aparelhada por aliados, parceiros e esquemas, tornou-se imprestável para qualquer mudança significativa, nesse momento, é preciso também ocupar a estratégia. Ocupar as táticas e a estratégia, aí está um possível caminho dos novos movimentos e grupos autônomos.
Eis um legado de aprendizado pra quem continua acreditando na transformação, depois dessa Copa “magnífica”.
Fonte: Quadrado dos Loucos
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