outubro 13, 2008

Versos e guardanapos cor de vinho

Jorge Tufic
3/10/2008 00:24:00

Versos e guardanapos cor de vinho

Por Francisco Carvalho


1
O poeta Jorge Tufic semeia palavras em "guardanapos pintados com vinho" de barril fenício. Palavras e versos com asas de gaivotas que adivinham

madrugadas nos mastros dos navios. Guardanapos onde beijos
navegam com a leveza dos barcos. Onde a boca e o lápis
do batom inauguram primaveras para as abelhas.
Guardanapos de papel crepom e versos da cor do vinho.

Cantor do Amazonas e dos botos que raptam donzelas em noites de luar
e as escondem em cavernas de espuma onde os olhos das boiúnas
hipnotizam sereias no fundo dos rios. "Não cante a sombra
antes do rouxinol" nem as flautas do vento depois do enterro
do sol. Não cantem as harpas dos veios antes que os
pássaros tragam de volta a madrugada.

Sei de um trem que vai e volta para o adeus de ninguém.
Primaveras de eucaliptos nos acenam com seus braços aos gritos.
Sei de uma caverna onde o tempo costura mortalhas.
Sei de um regato que devolve os olhos dos afogados.
De uma pátria onde a fome ressoa "nas pedras que ficam".

A cidade nos visita todas as noites, enquanto os fantasmas dormem.
A cidade nos fita com desdém e escancara as portas para os namorados.
A cidade nos espera nas esquinas dos arranha-céus escorados
nas estrelas. A cidade nos divide em gomos de pêssegos.
Em costelas de "guardanapos pintados com vinho".

Por que escrevemos poemas em "guardanapos pintados" com o sangue
dos cachos das vides? Por que passamos a vida escorados nas
esquinas dos versos, enquanto o vento nos expulsa de
casa? Por que vendemos a preço vil a lã das ovelhas do amor?
Por que fazemos serenatas às janelas fechadas pela chuva?
Por que injetamos veneno em nossas veias?
Por que acenamos para os meninos que morrem
de fome nas avenidas do arco-íris?

Amoras e amores despencam
dos galhos do vento.
Algum deus sacode as árvores
dos quintais em noites de lâmpadas
apagadas. Cachos de sombras
desabam da escuridão. Vertiginosamente.
Grilos e sapos tocam seus metais
para os mortos. Presságios
e "flocos de tempo" nos esgotos do mundo.

Ninguém para decifrar o léxico dos bêbados. Ninguém
para escrever uma ode aos ovos das galinhas. Ninguém para
celebrar a insônia dos cachorros e a música dos cascos
dos cavalos. Ninguém para repartir os gomos do poema como
se fossem de um pão de centeio. Ninguém para irrigar
a lavoura hostil das palavras. Ninguém para
nos ensinar os caminhos dos rebanhos e do adeus.

Tufic semeia a expectativa do poema e da palavra
constelada de signos. O caminho de que se volta para casa.
Da porta que não se abre ou da janela de que se
contempla a carruagem do arco-íris. Pode ser o universo
que nos seduz com seu colar de esmeraldas
e topázios. A inoperância dos sentidos
que não se apercebem dos enigmas de Deus.

"Todos os dias me inauguram". Todas as noites sou seduzido
pela cosmogonia das serenatas e dos violinos de cordas
sarracenas. Todos os meus sonhos são vértices desmoronados.
Todos os meus desejos farfalham. Todas as minhas
frustrações sobem por ladeiras íngremes.
Todos os meus dedos são cordas de violoncelos
rebelados. Meus sonhos naufragam à procura do adeus.

Tufic chega do tempo e já retorna ao tempo. Ao tempo
do poema e ao tempo do amor. Irriga o tempo com palavras
e "guardanapos pintados com vinho". Veio de uma aldeia
onde os cachorros sonham luas decrépitas. Onde as casas, de
frente para o cemitério dos navios, são ilhas povoadas
de ausências, à espera das velas e dos sonhos ancorados.

As formigas cortam folhas "onde tudo já estava escrito".
A vida não passa de um "jogo hipotético" em que os reis
e valetes nos divertem com seus bigodes metafísicos.
"Sou rei da minha esquina" mas ignoro a dinastia
das abelhas e dos grilos, que passam as noites
em claro martelando a insônia dos gatos.

O poeta e adivinho nos informam que "A última curva/ sugere
um Picasso/ com três mulheres nuas"/ debaixo do braço.
Havia "um canário morto" e ainda cantava uma ária
de Mozart na gaiola escancarada pelo vento. Um canário
que ressuscitava as manhãs de um tempo lendário.
Talvez um canário fenício sonhado por Tufic num
tempo fictício. Canário de linhagem amarela
chocava seus ovos nas barbas do usurário.

"A solidão planetária aterra" o poeta. "Capta o som de uma
avena que dorme nas pedras". Seus olhos se voltam
para as"partículas elementares". Sua "dança não tem punhos
nem rosas", mas "seu corpo liberta os duros nós do
universo". Acompanha a revoada dos planetas e asteróides.
"Depois de tudo o que aprendemos, o mundo fica vazio".
É verdade que "Algumas coisas chegam tarde demais"
quando já nos encontramos ausentes do tempo.

"Passo a passo os objetos avançam" no rumo dos astros.
Passo a passo o vento nos semeia onde as léguas e as éguas
namoram os cavalos. Passo a passo o amor acaba esmagado
por alguns palmos de terra. Passo a passo ninguém nos visita
porque estaremos à mercê das formigas. Passo a passo
o silêncio é uma árvore frondosa onde corujas nos espreitam.
A terra abre sua boca enorme e devora nossa voz
e nossos poemas, com rima ou sem metro.



2
Nas madrugadas de inverno
galopa o rio Amazonas,
esse cavalo selvagem
de patas negras e longas.
As ovelhas das espumas
ruminam flocos de sombras.

À luz de antigas estrelas,
Tufic celebra os rios
e as águas diluviais
que semeiam tempestades
nas costelas dos navios
de tempos artesanais.

Tufic esconde palavras
no veludo do bigode,
anuncia aos quatro ventos
que o verso também se move
em torno do sol que nasce
e no momento em que morre.

"Palavras secam palavras"
escritas nos guardanapos.
Até nos muros de pedra
e nas insônias dos gatos.
São levadas pelo vento
que desmancha os epitáfios.

Eram três mulheres nuas
desenhadas por Picasso.
Eram três rosas vermelhas
na lapela do palhaço.
Três alianças de bronze
na mão esquerda do braço.

Cedo esteve na Amazônia
lanhada de cicatrizes.
Viu as entranhas das árvores
cortadas pelas raízes.
Esse odor de primavera
que perfuma outros países.

Hoje a selva devastada
é uma pátria de inquilinos.
Aos poucos vai-se tornando
em desertos pequeninos
onde os pobres plantam larvas
para a ceia dos meninos.

Os incêndios criminosos
assustam a grande floresta,
derrubam caules robustos
e os ninhos da primavera.
O vento espalha a fumaça,
o fogo derrete a pedra.

Planetas giram no espaço
ao redor de um grande eixo.
Constelações de outras eras
mudam de forma e endereço.
Quem fabrica a bomba atômica
vira o mundo pelo avesso.

O grande rio se move
sob as pálpebras do puma.
Ora avança, ora transborda,
ora apascenta os cardumes.
Só raramente adormece
entre as vigas das espumas.

Tufic sabe das coisas
que ninguém se lembra mais;
dos barcos que naufragaram
em noites de temporais;
dos mortos que já não fitam
os olhos de seus punhais.


Francisco Carvalho, nasceu no município de Russas-CE em 1927. No pequeno povoado de Santa Cruz do Borges (distrito de Jaguaruana-CE) fez os estudos primários para mais tarde ingressar no Ateneu São Bernardo, em Russas. Publicou inúmeros livros de poesia. Os mais recentes foram: Corvos de Alumínio (2007) e Mortos Não Jogam Xadrez (2008) Ganhou o Prêmio Nestlé de Literatura em 1982, com Quadrante Solar e o Prêmio da Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro em 1997, com Girassóis de Barro. E-mail: diegowfcp@hotmail.com


Nota do blog: Outras publicações de Francisco Carvalho leia no Cronópios.
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Um comentário:

ss disse...

Conheci seu blog pesquisando por meu nome no go google.

Conheça o meu.

Marcio Candiani psiquiatra infanto juvenil

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(ps fui colega do polibio no cersam noroeste e havia feito um blog sobre lá....)