PICICA: "Em 2008, Debora Diniz, da Universidade de Brasília, realizou um vasto
estudo sobre a produção acadêmica acerca do tema no Brasil que reafirma
a tese de que ilegalidade do aborto traz consequências negativas para a
saúde das mulheres, pouco coíbe os procedimentos ilegais e perpetua a
desigualdade social. O estudo mostra ainda que o risco imposto pela
ilegalidade do aborto é majoritariamente vivido pelas mulheres pobres e
pelas que não têm acesso aos recursos médicos para um aborto seguro. Da
forma como tem sido praticado no Brasil, ele mata ou gera sequelas
físicas e psicológicas irreversíveis."
Cebes abre série sobre aborto com artigo de Ana Costa: Aborto Debaixo do Tapete
Pela luta em favor da discriminalização do aborto, nesse mês de setembro o Cebes lança a série “Cebes Contra as Algemas”, com notícias, entrevistas e artigos para debater o tema.
Para iniciar as discussões, artigo inédito de Ana Maria Costa, médica, feminista, doutora em Ciências da Saúde e presidenta do Cebes.
Aborto Debaixo do Tapete
Inquestionavelmente, o aborto é um problema de saúde pública.
Em 2008, Debora Diniz, da Universidade de Brasília, realizou um vasto estudo sobre a produção acadêmica acerca do tema no Brasil que reafirma a tese de que ilegalidade do aborto traz consequências negativas para a saúde das mulheres, pouco coíbe os procedimentos ilegais e perpetua a desigualdade social. O estudo mostra ainda que o risco imposto pela ilegalidade do aborto é majoritariamente vivido pelas mulheres pobres e pelas que não têm acesso aos recursos médicos para um aborto seguro. Da forma como tem sido praticado no Brasil, ele mata ou gera sequelas físicas e psicológicas irreversíveis.
Brasil no Mundo
Comparando o Brasil com outros países, nós lideramos as estatísticas de abortamento provocado em todo o mundo, com um total estimado de dois milhões de ocorrências por ano. Isto significa que uma em cada nove mulheres brasileiras recorre ao aborto como meio de interromper uma gestação indesejada. Entretanto, a condição de clandestinidade do procedimento impede o conhecimento real do problema.
Vale lembrar que apenas 25% da população mundial vive em países com leis que proíbem ou restringem o aborto – estes basicamente localizados na América Latina, África e Ásia.
Aqui, o aborto somente é permitido em casos de risco materno e de gravidez decorrente do estupro. Mesmo assim ainda é difícil que mulheres que sofreram violência sexual e engravidaram tenham acesso aos serviços de saúde para interrupção de gravidez.
Dados do Sistema Único de Saúde (SUS) mostram que a incidência de mortes de mulheres por complicações do aborto oscila em torno de 12,5%, ocupando o terceiro lugar entre as causas de mortalidade materna – ou seja, mortes relacionadas à gravidez, ao parto e ao puerpério. Naturalmente, há variações entre regiões e estados brasileiros, sendo mais grave onde há mais pobreza e desigualdade social.
A criminalização alimenta essa desigualdade, determinante nas condições e situações de risco, pois as mulheres com maior poder aquisitivo utilizam clínicas especializadas, com assistência qualificada, enquanto as demais buscam pessoas e/ou clínicas não habilitadas, submetendo-se a métodos abortivos rudimentares e arriscados.
Descriminalizar para garantir Saúde, Direitos Humanos e Democracia
Caracterizado como crime, o aborto coloca as mulheres, especialmente as mais pobres e com menor acesso a alternativas seguras de assistência médica, na marginalidade de um negócio lucrativo, normalmente praticado por pessoas despreparadas e serviços sem retaguarda para complicações, o que torna sua prática altamente insegura e arriscada.
A clandestinidade faz do aborto um negócio rentável, corrupto e que, geralmente, envolve acordos garantindo a impunidade para aqueles que o realizam, independentemente dos resultados do procedimento. Sua descriminalização deve ser compreendida como uma estratégia de segurança que preserva e protege a vida das mulheres, evitando sofrimentos e/ou mortes.
É importante ressaltar que a legislação no Brasil é restritiva e viola os direitos humanos das mulheres, estabelecidos com base na Conferência Internacional sobre a População e o Desenvolvimento da ONU (Cairo, 1994), na Quarta Conferência Mundial das Mulheres (Pequim, 1995) e na Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigos 1 & 3 &12 &19 & 27.1).
Para o enfrentamento desta questão, é necessário revisitar e atualizar a compreensão sobre os Direitos Humanos, assim como sobre a Democracia.
Tal qual hoje são concebidos, os Direitos Humanos representam os direitos e liberdades básicas de todos os seres humanos vinculados à ideia de liberdade de pensamento e de expressão e da igualdade perante a lei. Nesta perspectiva, uma das principais funções da democracia é a proteção dos direitos humanos fundamentais como o direito à vida, bem como as liberdades de expressão, de religião, a proteção legal e as oportunidades de participação na vida política, econômica, e cultural da sociedade.
É incompatível uma experiência democrática sem o gozo pleno de direitos humanos.
Portanto, a limitação desses direitos meramente formalizados num rol de outros tantos, mas não materializados em um conjunto de disposições sociais que lhes sirva de sustentação, rompe o conceito e a prática da democracia. Ao ser compreendida como uma infração moral de mulheres, a negação do direito ao aborto passa a ser a negação de um direito humano para todas elas – independente de idade, classe social, religião e etnia – que, diariamente, abortam em todas as cidades e regiões do País. Porém, essa compreensão é movida por valores e dogmas religiosos que orientam o ajuizamento moral individual impostos ao conjunto da sociedade.
Apesar da expressiva presença das Igrejas nos poderes da República, particularmente no Legislativo em que exibem força política em confrontos sobre os temas atinentes aos seus dogmas, nossa Constituição define o Brasil como um Estado Laico que, além de separado das Igrejas e religiões, não se pauta nem deveria ser pautado por elas, tampouco por interpretações fundamentalistas dos seus textos.
O processo eleitoral em curso no País, mais uma vez, escamoteia o assunto , remetendo à hipocrisia os candidatos que se mantém à margem do debate em postura irresponsável perante a problemática. Mesmo provocado por atores políticos historicamente comprometidos com a luta pela descriminalização do aborto, o debate tem assumido um caráter tangencial e omisso, no qual os candidatos afirmam posição contraria às mudanças na legislação tão esperadas pelas mulheres brasileiras.
Reféns das chantagens do fundamentalismo religioso e como as hienas, os candidatos que contam com a preferencia do eleitorado nacional fingem desconhecer a condição das mulheres que recorrem ao aborto clandestino e em virtude disso sofrem, morrem ou ficam sequeladas e traumatizada. Mais uma vez, colocam o assunto debaixo do tapete deixando no ar uma pergunta: Até quando?
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