verbete #7: [representação política e ações "não-representativas"]
Um espectro ronda nosso tempo – o espectro da
autonomia e da recusa total das representações políticas. Todas as
fracassadas instituições e hierarquias unem-se para esconjurá-lo… porém,
já é tarde!
Mais uma eleição se aproxima e com ela todo o mal
estar referente a uma “juventude” à qual nenhuma representação política
corresponde (ainda que desdenhosamente riam desse teatro farsesco tão
conhecido). Intelectuais públicos se apressarão a falar e os jornais em
seus editoriais analisarão como a falência do sistema de
representatividade ainda não encontrou uma consolidação institucional
capaz de dar materialidade a toda esse descontentamento, ainda assim uma
parte da população mesmo descrente acreditará que essa é a única forma
possível de expressão política. No momento em que milhares de pessoas em
todas as partes do mundo se dedicam a deserção das velhas formas de
vida (escola, família, partidos, sindicatos, etc.), à sabotagem deste
velho mundo por meios das festas e danças em volta das fogueiras feitas
com as mercadorias que se negaram a desejar, é necessário ser muito
estúpido ou um policial para procurar líderes, uma “célula financiadora”
ou um acadêmico que explique as razões dessa pretensa insensatez.
Ainda que eleições sejam apresentadas como o ápice do
ato política e muito comumente como a única forma de participação nas
sociedades capitalistas (além do “direito” a trabalhar e a consumir), é
através dela que ocorre um dos principais processos de mistificação
conservadora e alienante do atual estado das coisas, visto que se trata
sempre de uma transferência de poder para outros e do abandono da luta
direta. As eleições funcionam sob o véu da participação para realizar a
máxima: mudar para que as coisas continuem as mesmas.
Desde a modernidade, o conceito de representação
política está associado ao consentimento e alienação da população. Por
essa lógica, o representante seria o agente autorizado a atuar em nome
do povo e a defender seus interesses. Mesmo que do próprio povo emane o
poder é absolutamente necessário que ocorra a autorização e
transferência para aquele que, pretensamente, em meio às múltiplas
demandas da população identificará e atenderá seus anseios. No
espetáculo atual a ampliação do direito de eleger os representantes e
membros dos órgãos do Estado significa, única e exclusivamente, a
performatividade da decisão que toma substância através dos dispositivos
supostamente democráticos. Longe de ampliar direitos ou avançar frente
às formas anteriores de dominação, supostamente mais despóticas, esse
dispositivos conseguem apenas mascarar a nossa miserável condição de
dominados e submetidos a um poder externo.
Nesse processo de submissão as técnicas de poder
tanto a “esquerda” e quanto a “direita” permanecem ideologicamente
comprometidos em deixar tudo exatamente como está. Essa é a justa
concretização do círculo da representação política que nunca cessa de
rodar e a oferecer pseudo-respostas a todos que estão cansados demais
para tentar insurgir mais uma vez. Aqueles que ainda votam mantêm uma
esperança ingênua ou um cinismo que parece ter como intenção dar
materialidade a representativa frase-clichê que desde junho de 2013 vem
sendo incessantemente proferida: “devemos protestar nas urnas”. Por mais
risível que pareça a proposição, é efetivamente essa a fantasia
primordial que tanto a esquerda quanto a direita fazem questão de
sustentar, a saber, que as pessoas devam continuar votando ad infinitum
para protestar contra o fato de que se pudessem não votariam! Já não é
mais possível alimentar falsas esperanças e toda ingenuidade que reforce
isso é um erro, assim como fingir que há qualquer solução que capitule o
que aí está e apague a história em troca da inocência. Não basta apenas
“saber” que as eleições servem para reproduzir o mesmo sistema de
coações através da ilusão de representatividade, pois nunca foi tão
atual o cinismo como a ideologia que opera um distanciamento
performativo, fantasiando-se de posicionamento crítico. O que se vê a
partir daí é a proliferação do discurso que afirma “sei bem que votar
não irá resolver, MAS…”. Somos capazes de “saber” que eleger alguém não
mudará nada (principalmente pela razão de como o poder se estrutura),
que o problema não se resume a quem ocupa o cargo e que a democracia
representativa tem problemas incontornáveis. Efetivamente “sabemos” que a
ideia de democracia mascara uma forma particular de exploração, mas
mesmo assim, continuamos a seguir essa ideia sendo incapazes de aderir
ao próprio discurso e a readequar nossas condutas práticas.
Tanto a esquerda quanto a direita prestam ao Capital
esse precioso serviço de mistificar as eleições e o papel do Estado,
ajudando a disciplinar e circunscrever as lutas no interior da sociedade
capitalista aos limites da institucionalidade. Essa visão de que o
Estado deveria ser alargado para receber as demandas da população e se
consolidar como uma mediação entre os diversos desejos difusos, só
afastou ainda mais a possibilidade de qualquer mudança significativa
ajudando a fomentar entre os descontentes a crença de que o poder
externo poderia manter a “ordem” e suprir demandas. O caráter arcaico e
ao mesmo tempo absolutamente moderno consistiu em abstrair o Estado da
rede de relações sociais capitalistas da qual é parte e apresentá-lo
como um ente autônomo em relação ao capital. Dessa forma, o Estado é
apresentado de forma invertida: de agente ativo do processo de dominação
capitalista e defensor dos interesses da classe dominante, ele aparece
como principal agente de mudança e defensor dos interesses da classe
dominada. Nesse aspecto a luta contra a representatividade política
apresenta seu potencial mais radical, quando se efetiva não apenas como
negação política, mas na luta contra toda e qualquer economia-política! O
que de fato impressiona é que mesmo o marxista mais ardoroso e radical
(que deveria saber dessa obviedade) se transforma em um kautskista-bernsteiniano
ao se aproximar da simples – e quase sempre longínqua- possibilidade de
chegar ao poder. Os ideólogos da esquerda “radical” dirão que se trata
de luta “contra-hegemônica”, de contrapor discursos, de se “infiltrar na
máquina”, da possibilidade de diálogo com as massas, de passos táticos
para a revolução… quem ainda acredita nisso?
É importante não perder de vista que também esquerda
precisa legitimar o processo viciado das eleições, afinal de contas, é
disso que dependem seus cargos, as contas do partido, os salários dos
parlamentares e assessores, os privilégios, as posições de poder das
lideranças, dos burocratas partidários e até a ascensão social de uma
parte da militância. Mesmo o minúsculo partido de extrema-esquerda se
constitui sob uma base hierárquica em que as formas de poder são
exercidas e legitimadas por essa estrutura, mesmo que não exista
absolutamente nenhum tipo de ganho monetário envolvido diretamente, esse
poder não deixará de ser contabilizado, reforçado e desejado. Ainda que
usem o discurso de que o partido é um meio de organização – o que
“justificaria” sua existência- sabemos bem como tais organizações se
autonomizam e passam a ser um fim em si mesmo, altamente dependentes do
sistema político e do Estado. Aquilo que deveria ser a função de toda
organização comprometida com a mudança, ou seja, a luta e busca de
diálogo real é substituída pelas disputas por cargos, pelo recolhimento
às tarefas administrativas e burocráticas. Toda a possibilidade de
mudança cede lugar a realpolitik, ao apaziguamento
reconciliatório entre classes e à dependência financeira. Onde deveria
haver a busca de comunicação direta, há o voto e onde deveria haver a
desconstrução do poder soberano, há a alienação.
Se há algo que junho de 2013 nos mostrou, foram as
potencialidades da auto-organização e da ação direta, da força
não-hierárquica que emerge da demanda total, desejo que não se contenta
com as vitórias parciais e com a meia-vida. Resta saber se os partidos
políticos ( também os sindicatos e outras organizações, cuja lógica é a
mesma) não entenderam ou agem com sua alienação esclarecida, tentando
mediar aquilo que escapa de suas mediações. Justamente eles que
“participaram” do processo de junho, seja para negá-lo, tentar cooptar
os processos ou de maneira muito rara, construir… justamente eles que
perceberam muito tardiamente o quanto estavam atrasados em seus anseios
de “dialogar com o povo”! O que vemos hoje são os vários candidatos que
se reivindicam como os “legítimos” representantes das ruas; candidatos
cujo discurso flertam com o ataque à representatividade ao mesmo tempo
em que pretendem renovar a fé no sistema político (através da própria
candidatura, claro); ou até mesmo aqueles que clamam pela revolução sem
que isso reflita em uma negação que ultrapasse a pura abstração. Essas
candidaturas chamadas de “alternativas” parecem afirmar em sua práxis
que é necessário votar primeiro, eleger candidatos e só depois poderemos
finalmente discutir o que é democracia real, pois segundo os mesmos,
ainda que não devamos ter esperanças no sistema democrático temos de ser
“realistas” em ver que não há formas além dele. O recado implícito
parece claro “Tivemos nossa catarse em junho e agora é necessário fazer
política DE VERDADE!”ou “Vocês não tem um projeto para o dia seguinte!”.
A concreta construção da resistência ao estado atual
das coisas exige o abandono das ilusões em torno dos que ainda advogam
uma convivência pacífica entre as classes, daqueles que ainda acreditam
ser possível humanizar e administrar o capitalismo por meio do Estado e
de políticas reformistas. Ao rejeitarmos o Capital, o Estado e sua
democracia representativa, propomos como alternativa a autonomia, a ação
direta e a auto-organização das lutas. Não há fórmulas prontas, mas os
inúmeros exemplos históricos e atuais do desenvolvimento das assembléias
populares, horizontais e descentralizadas, das comunas, de toda
organização para além do voto e das “assembléias gerais” aparecem como
recusas das coações, da coagulação do poder coercitivo e sua linguagem
não-comunicativa. Os movimentos e lutas que com sua capacidade de
definirem seus próprios objetivos, métodos de organização e de luta de
forma independente, não se submetendo a qualquer partido político,
governo e empresa apresentam um aspecto importante da negação total das
formas hierarquizadas e confronto com as mediações impostas. Não se
trata mais de constituir um partido ou projeto mas aprender a partilhar a
recusa!
É necessário que não se cesse de efetivar e descobrir
as tantas negações práticas existentes. Que possamos criar espaços e
nos reencontrar nas lutas, mantendo a iniciativa de integração sempre
viva entre os desertores e essas inúmeras negações atuais. As
possibilidades nunca foram tão reais quanto nesses dias em que tantas
insurreições ocorrem em todo mundo como as de junho de 2013 no Brasil, a
Primavera Árabe, os Indignados na Espanha, as inúmeras revoltas na Grécia, os levantes nas periferias da França de 2005, em Londres em 2011
e tantas outras. Há nesses exemplos uma onda libertária e autônoma com
uma disposição para a luta e ações diretas conseguindo disseminar seu
teor crítico, emancipador e anti-representativo para além dos meios
militantes inócuos. Essas insurreições por sua radicalidade
inevitavelmente atingem o Estado que não cessa de diariamente nos jogar
uns contra os outros, arremessando-nos na maquina infernal do trabalho e
do mercado. Por isso, não tardou ao poder estatal e também aos meios
militantes (que já não viam hora de voltarem às suas rotinas entediantes
e devolver as ruas à normalidade) pedirem que passivamente voltemos às
velhas crenças no sistema representativo, mas como fazer isso depois que
encontramos nas ruas tomadas a brecha para nos unirmos como cúmplices e
respondermos a violência inerente ao cotidiano das cidades? A violência
do poder econômico-político corre invisibilizada e naturalizada em
todas nossas relações sociais, no trabalho ou no tempo livre, na
linguagem ou no amor. É nas barricadas que as formas emancipatórias de
comunicação e de sociabilidade tornam-se críticas diretas ao poder,
consciência prática do brutal cerceamento das potencialidades de nossas
próprias vidas.
Nossa capacidade em nos sentirmos parte do processo
de mudança se configura como a ponta do horizonte que se anuncia,
admitir isso é passo necessário para descobrir os diálogos e a negação
prática em todo mundo. Conectar e articular a resistência tem a ver
tanto com tomar uma posição diante de tudo o que é espetacular
geograficamente próximo a nós, quanto com redescobrirmos na distância
espacial e temporal as proximidades que vinculam a negação quando ela
decide a dialogar. Insistimos no caráter negativo da luta, pois o que
resta para aquém disso é somente a obediência e a passividade
generalizada.
A perspectiva de negação
não é feita visando um futuro longínquo, mas a mudança do presente e em
nome de todos aqueles que lutaram e tombaram na luta contra o
espetáculo, como Carlo Giuliani na Itália, Alexandros Grigoropulos na Grécia, Brad Will e Sali Grace em Oaxaca no México, Morcego e Dinho da banda Bosta Rala em Salvador, Douglas Henrique e Luís Felipe em
Belo Horizonte, e outros tantos que nos antecederam. É preciso saber
olhar para as derrotas e admiti-las, ter coragem para que possamos dizer
novamente: “Fora TODOS!” (como também foram derrotados e silenciados os
argentinos há dez anos atrás, mas cujo fantasma ainda assombra todos os
dirigentes, estejam eles onde estiverem, nos partidos, sindicatos,
organizações ou Estado, com o grito “Que se vayan todos!”).
Temos sido desde sempre derrotados – a História continua a ser a dos
vencedores – mas nossa insistência em lutar também diz respeito a todos
aqueles que um dia se opuseram a essa constante, não deixando a história
dos vencidos esquecida podemos redimir as lutas anteriores no combate
emancipador do presente. Não há luta pelo futuro sem essa memória do
passado! Então, não podemos nos contentar a meramente dissentir em torno
da ordem porque os fracassos que nos trouxeram até aqui sempre se deram
pela redução da negação ao “só isso agora é possível”.
Para tornar essa rebeldia em negação generalizada é
preciso avançar na crítica total, não apenas nos epifenômenos do sistema
espetacular. Isso não se dará pela negação abstrata ou por uma atitude
externa (alienada, alienante e dirigista), mas por meio do diálogo
prático… falar enquanto se faz! Só é possível dialogar a partir do que
acreditamos, isto é, através de uma necessária recusa da totalidade
sistêmica que naturalizou a soberania do poder. Se os partidos e
movimentos sociais alimentaram durante anos ilusões eleitorais que
sequer conseguem avançar no que se propõem – nada de radicais mudanças,
“avanço” na “consciência do trabalhador”, apenas a mesma e velha
performatividade do dissenso – quando então surgirá o momento da
autogestão generalizada da vida e da destruição do mercado e do Estado?
Estamos atrasados!
Longe de manter a letargia isso deve nos impulsionar
na busca e reapropriação do poder de agir, no desejo de decidir sobre
nossos próprios destinos, de restabelecer vínculos de apoio mútuo e
solidariedade essenciais entre os que buscam um novo devir. Se já não
temos nada a perder (somente o tédio) não devemos nunca repetir a velha
divisão bolchevique entre estratégia e tática, presente e futuro, ganhos
a curto prazo e revolução, como se pudéssemos impunemente trair nossos
desejos porque o que queremos é sempre taxado como da ordem do
impossível. É isso a própria derrota do desejo, o eterno adiamento e
responsabilização daquilo que acreditamos e pelo qual lutamos,
colocando-os sempre em um futuro inalcançável. Londres, Espanha,
Oaxaaca, Argentina, Grécia, junho, todas essas lutas são exatamente as
explosões desse agora revolucionário (Jetztzeit)
que não se generalizou e foram derrotadas pelo próprio isolamento. A
recusa da representatividade é aquilo pode nos permitir estar
efetivamente próximos, sem qualquer ideal de apaziguamento e
reconciliações forçadas.
Sabemos que tais modos de resistência e de luta
contem o risco de serem apenas mais um dispositivo de poder, mas não há
porque se enganar, as formas anti-autoritárias trazem mais problemas que
soluções. Entrincheirar, resistir e combater é exercer uma força
contrária que busca criar fissuras no poder instituído, cuja renuncia e
volta aos velhos moldes sempre se constituirá como a própria derrota da
criação de algo novo. Esse novo só pode ser levado a cabo na destruição
do próprio poder e suas representações.
É necessário ter fé no negativo e se permitir experimentá-lo… ninguém disse que seria fácil!
Fonte: Conjunto Vazio
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