PICICA: "Inspirado em clássicos, “O doador de memórias” retoma distopia do controle social absoluto. É algo indispensável, em tempos de NSA e internet vigiada"
Nas pegadas de Orwell e Huxley
Inspirado em clássicos, “O doador de memórias” retoma distopia do controle social absoluto. É algo indispensável, em tempos de NSA e internet vigiada
Por Elenita Malta
Quem controla o passado, controla o futuro.
Quem controla o presente, controla o passado.
George Orwell, em 1984
Quem controla o presente, controla o passado.
George Orwell, em 1984
O instigante O doador de memórias chega às telonas na esteira de blockbusters juvenis, como Jogos Vorazes e Divergente,
distopias sobre jovens que se rebelam contra as sociedades em que
vivem. No entanto, não é mera cópia ou versão desses filmes anteriores,
até porque ele se baseia no premiado livro The giver (O doador),
publicado pela escritora norte americana Lois Lowry, em 1993. Retomando
elementos das famosas distopias escritas na primeira metade do século
XX, 1984 (George Orwell) e Admirável Mundo Novo (Aldoux Huxley), o filme aborda com profundidade questões importantes da existência humana.
Narrada
do ponto de vista do personagem juvenil Jonas (Brenton Thwaites), a
história começa em preto e branco, e, à medida que o garoto toma
consciência do funcionamento de seu próprio mundo, vai ganhando cores.
Inicialmente, todos veem em preto e branco, escolha do diretor Philip
Noyce para ressaltar a “mesmice” do local onde vivem.
“A
comunidade” onde Jonas mora com sua família é uma das tantas que formam
um mundo totalmente controlado. As pessoas não têm livre arbítrio; até
mesmo suas profissões são escolhidas por um grupo de anciãos. Estes
decidem qual seria a melhor contribuição de cada um para a comunidade. Tal mundo
é liderado por uma mulher (Meryl Streep), que tem a pretensão de estar
em todos os lugares ao mesmo tempo para que nenhuma mudança aconteça.
Ali não há guerras, dores nem tristezas, mas também as alegrias e as
paixões não estão presentes. As angústias e os prazeres foram suprimidos
tempos atrás, para a manutenção de um sociedade harmônica e seus
cidadãos “felizes”.
Assim como na “teletela” de 1984, as pessoas são vigiadas constantemente, desde a infância, por câmeras – dispositivos onipresentes nas comunidades. Os atos de todos são seguidos 24
horas por dia. Antes de sair de casa (a “unidade familiar”), cada um
precisa tomar sua “injeção matinal”, que lembra o “soma”, a droga diária
de Admirável mundo novo. Dopados o dia inteiro, são incapazes de sentir emoções que possam afetar o equilíbrio da comunidade. Também não há livros, pois são muito perigosos: poderiam difundir ideias diferentes das repetidas pelo sistema, e causar rebelião. Nesse ponto, lembra o romance Fahrenheit 451 (Ray Bradbury) e sua queima de livros, outra distopia pós-II Guerra Mundial.
Nesse
mundo perfeito, não há toque e não há sexo – os bebês são fabricados
geneticamente. As pessoas não sabem o que é sentir amor (como em 1984 e Admirável mundo novo).
A falta de liberdade interfere também no modo de falar da comunidade. Como a “novilíngua” criada por George Orwell, em O doador de memórias
os habitantes se preocupam com a “precisão de linguagem”, uma forma de
falar que elimina referências a sentimentos e emoções. É na “precisão de
linguagem”, na vigilância e na supressão das memórias que se alicerça
esse mundo totalitário.
As
memórias foram surrupiadas da população e concentradas em apenas uma
pessoa, o “doador”, interpretado por Jeff Bridges (que também é um dos
produtores do filme). Ele, com suas dores e alegrias, é o guardião da
memória coletiva. Quando Jonas recebe a designação de “receptor”, passa a
ser dele o dever de carregar as memórias dentro de si. À medida que
Jonas vai conhecendo o passado, seu olhar sobre o mundo vai mudando, e
ele passa a enxergar as cores que os demais não podem ver.
O
controle das memórias é o ponto chave do filme, é o que possibilita a
apatia das pessoas. Elas aceitam que seus direitos, lembranças e senso
moral sejam suprimidos. Esse apagamento mnemônico retira o sentido ético
das pessoas no momento de suas escolhas, pois com ele perde-se também
qualquer tábua de valores. Sem a referência do passado, como podemos
saber se agimos de forma certa ou errada? Provocar a morte de alguém,
num mundo como esse, pode ser algo correto e inquestionável, porque você
não tem como dimensionar seus próprios atos.
E essa é a maior semelhança de O doador de memórias com 1984. Como escreveu George Orwell, “quem controla o passado, controla o futuro”. Também o historiador Jacques Le Goff, em seu livro História e Memória,
referiu-se à importância desse controle: “tornarem-se senhores da
memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes,
dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades
históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores
desses mecanismos de manipulação da memória coletiva”. A história e a
memória são instrumentos poderosos que podem mudar a vida das pessoas.
Seu conhecimento pode levar tanto a guerras e genocídios, quanto a
conquistas de liberdade no plano social ou individual. O passado é muito
perigoso para sociedades totalitárias, que querem controlar cada passo
do indivíduo.
Recentemente, o mundo assombrou-se com o esquema de vigilância internacional da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (National Security Agency, ou NSA),
revelado pelo analista Edward Snowden. Nem pessoas comuns, nem
autoridades escaparam de serem espionadas. De certa forma, já estamos
vivenciando uma demo do que seria um mundo vigiado pelo “big brother” de 1984.
Ainda que não haja teletelas nem anciãos seguindo nossos passos, ou
injeções matinais obrigatórias, nossos movimentos na internet não são
privados. Embora a desculpa seja a garantia da segurança nacional, ou
mesmo a oferta de produtos compatíveis aos nossos gostos e necessidades,
isso, por si só, já é uma forma de controle indevido.
Indo além da pura diversão, distopias como O doador de memórias
são alertas contra um mundo totalmente controlado, em que o poder de
decisão e as escolhas seriam retirados dos cidadãos e transferidos aos
“líderes”. O filme pode ser o ponto de partida para interessantes
debates nas escolas, com o público juvenil, sobre livre arbítrio,
cidadania, invasão de privacidade, a importância da história e da
memória para as sociedades e, sobretudo, as ameaças do totalitarismo. Na
verdade, esses temas sempre deveriam estar presentes nas discussões de
jovens de todas as idades. Através da distopia, o filme nos passa a
mensagem de que a construção de um mundo livre e igualitário é possível.
Essa sim é a utopia a ser perseguida.
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
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