PICICA: "A mídia hoje e já há muito tempo não age apenas ao lado do opressor na
garantia dos interesses destes, mas tornou-se o opressor em si na defesa
de seus próprios interesses."
MÍDIA & POLÍCIA
No ‘confronto’ entre polícia e pobres, quem morre é o jornalismo
Por Raphael Tsavkko Garcia em 23/09/2014 na edição 817
“Jornalismo: a primeira vítima fatal confirmada na desocupação na Avenida São João.
Foi abatido com auxílio de um helicóptero, com disparos contínuos da
palavra ‘vândalo’feitos à distância de um confortável estúdio com
ar-condicionado, por ditos profissionais de imprensa vestidos com roupas
finas e sem direito à apuração.
Eis aqui os vândalos do Cesar Tralli e da Ana Maria Braga. Gente
desesperada, desiludida com a ‘justiça’, fazendo tudo pra fazer valer o
seu direito constitucional a um teto.”(Perifa Livre)
Enquanto se desenrolava a brutalidade medieval contra os ocupantes do edifício, a mídia se refestelava: vândalos, invasores, confronto, destruição de propriedade... Não se tratava, para a mídia, de uma violação básica dos direitos de moradia e mesmo direitos humanos de centenas de pessoas, mas sim, de uma festa romana, onde gladiadores brutalizavam suas vítimas como meros animais.
Dentre as preocupações da mídia não figuravam a segurança e os direitos dos ocupantes do edifício, mas a “proteção” do patrimônio privado, fosse ele o próprio edifício – que, fechado há anos, estaria sendo vandalizado pelos terríveis ocupantes –, ou um ônibus que foi queimado, causando imenso prejuízo às milionárias empresas de ônibus da cidade. E, como sempre em São Paulo, o trânsito era outra das grandes preocupações – afinal, o cidadão de bem encontraria dificuldade em chegar ao trabalho enquanto alguns vândalos resistissem. Deveriam, pois, ir pra rua, calados e cordiais.
A mídia hoje é o opressor
É uma cena que se repete diariamente. Em cada ocupação brutalizada, a mídia surge para realizar o trabalho sujo de legitimar a violência e criminalizar a resistência. Não encontramos nas páginas dos jornais nenhuma menção à desproporcionalidade da violência da PM, armada até os dentes, contra pessoas que praticamente passam fome. Não, era apenas um “confronto”, como se entre iguais. Ocupações e movimentos sociais são tratados pela mídia indistintamente como se fossem terroristas, como um perigo ao Estado. Logo, a guerra deve ser levada a estes. Uma guerra justa, uma guerra em pé de igualdade, acreditam.
Movimentos sociais, pobres e famintos incutem nas elites um medo primitivo. O medo dos que levantam a voz, mesmo que timidamente, contra a situação que lhes é imposta. A mídia nada mais faz do que servir de porta-voz desta elite. Ela incita a violência e assegura que esta será legitimada e engolida pelo resto da população. Torna-se justo e até necessário brutalizar mulheres e crianças que ousaram ocupar um espaço privado. A propriedade privada, mesmo abandonada, mesmo sem uso, é ainda assim sagrada. É direito do dono do imóvel, do terreno usá-lo ou deixá-lo às moscas e ninguém tem o direito de se meter. A mídia faz o papel de garantir que todos se lembrem disso em sua dobradinha macabra com a PM.
O jornalismo a cada dia que passa se mostra mais e mais ligado aos interesses da elite. Chega a soar clichê a declaração, até pela quantidade de vezes que é repetida e frente à sua antiguidade, mas é preciso sempre reforçar: O papel da mídia deveria ser o de contrapor o discurso dominante, o de fazer pensar, o de buscar dar voz ao oprimido ao mesmo tempo em que deixa o opressor se denunciar como tal. Mas no Brasil (e não só) cada vez mais o discurso da mídia é o hegemônico, é não apenas o do opressor, mas é a opressão em si, pois silencia o oprimido, invisibiliza, desumaniza.
A mídia hoje e já há muito tempo não age apenas ao lado do opressor na garantia dos interesses destes, mas tornou-se o opressor em si na defesa de seus próprios interesses.
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Raphael Tsavkko Garcia é jornalista,
doutorando em Direitos Humanos (Universidad de Deusto) e mestre em
Comunicação (Cásper Líbero)
Fonte: Observatório da Imprensa
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