PICICA: "Estudo revela: multiplicam-se
iniciativas que mobilizam inteligência social para gerir serviços
públicos, livrando-os da burocracia estatista e dos riscos de
mercantilização"
Bens comuns: da privatização à democracia real
Estudo revela: multiplicam-se
iniciativas que mobilizam inteligência social para gerir serviços
públicos, livrando-os da burocracia estatista e dos riscos de
mercantilização
Por Ladislau Dowbor
The other side of pushing for democracy-driven transformation
is the building of democracy in the internal running of the public sector.1
is the building of democracy in the internal running of the public sector.1
O setor público, a máquina do Estado, com os seus
ministérios, secretarias, divisões de poder, direito público
administrativo e outras heranças institucionais estão sendo pressionados
pela chamada modernidade. É significativo que quase todos os países
disponham hoje de ministérios ou departamentos de reforma
administrativa, pois com a expansão das políticas sociais, a urbanização
generalizada e o poder das novas tecnologias de informação e
comunicação, os pontos de referência estão se deslocando radicalmente.
Sentimos os arranjos institucionais existentes como congelados no tempo.
Bastante mais precário ainda, no entanto, é o
referencial jurídico e administrativo das organizações da sociedade
civil, e de forma geral emerge como desafio a dimensão participativa das
nossas democracias. Quando vemos manifestações como as de junho de 2013
no Brasil, mas também mobilizações semelhantes nos mais variados
países, com milhões de pessoas saindo à rua para fazer política –
centrada nos protestos contra os bancos privados e Wall Street ou contra
os governos, reclamando regulação financeira ou saúde e mobilidade
urbana, ou ainda democracia na gestão dos recursos em geral – aparece
claramente a fragilidade das correias de transmissão, digamos assim,
entre as necessidades e interesses das populações e os aparelhos
administrativos estatais.
As corporações privadas, a bem da verdade, também enfrentam estes desafios. Em termos de burocracia e de falta de resposta (responsiveness) aos
usuários não deixam muito a desejar ao setor público. O resgate da
governança, da capacidade de articulação do conjunto das políticas de
uma sociedade moderna, está se tornando no desafio principal que
enfrentamos.
Poder votar a cada dois ou a cada quatro anos já não
basta para assegurar as dimensões democráticas de uma sociedade
complexa. Há inúmeras iniciativas interessantes como os sistemas de
consulta direta entre a administração central ou regional e as
administrações locais na China, o sistema direto de consulta do NEDLAC (National Economic Development and Labor Council) na África do Sul, os acertos entre as administrações locais, empresas e OSCs (Organizações da Sociedade Civil) na linha da negotiated economy na
Dinamarca e outras experiências. E temos evidentemente os conselhos
como o CDES em Brasília, com representação de empresas, sindicatos,
academia e movimentos sociais, hoje surgindo no nível dos Estados da
federação e dos municípios. São Paulo hoje tem, além do Conselho da
Cidade, conselhos eleitos nas 32 subprefeituras. O denominador comum é
sem dúvida a necessidade de uma maior densidade de presença do cidadão
nos processos decisórios da sociedade. Democracia representativa já não
basta, isto está se tornando claro, e apesar das resistências, aos
trancos e barrancos e passando por estruturas experimentais, estamos
avançando.
Inovações estão surgindo justamente onde temos os maiores problemas. Trata-se dos bens públicos (commons),
por exemplo a água, e bens de consumo coletivo como por exemplo saúde,
educação, cultura, segurança. Vemos aqui idas e vindas com privatizações
(em geral desastrosas), Organizações Sociais (em definição), retomadas
pela administração pública direta (frequentemente com pesadas
burocracias), terceirizações (que tendem a reproduzir a burocracia mas
sem o controle correspondente) e diversas formas de parcerias. No
conjunto, uma grande fragilidade e insegurança organizacional, busca
insegura de novos arranjos institucionais.
No pano de fundo, está o fato de que no caso dos bens
públicos, a apropriação privada leva à liquidação das florestas e dos
recursos pesqueiros oceânicos, à contaminação dos rios e dos lençóis
freáticos e assim por diante. Quem protege o que parece não ter dono?
Aqui a competição de grupos privados associada à falta de regulação leva
a uma corrida por quem arranca o pedaço maior, e com as novas
tecnologias e o crescimento do consumo no mundo estamos correndo ao
desastre.
Dilema análogo encontramos nas áreas de consumo
coletivo, onde a saúde privatizada vira indústria da doença, a educação
indústria do diploma, a cultura indústria do enlatado e da publicidade e
semelhantes. Um sistema privado de saúde está interessado em ter
clientes, e se possível de renda elevada, e não tem nenhum interesse em
sistemas preventivos que reduzem as doenças, e por tanto a clientela. Há
contradições que são estruturais. Produzir saúde, criar um ambiente
comunitário culturalmente rico, gerar paz social não são “produtos” da
mesma natureza que produzir automóveis.
Um estudo particularmente interessante, de Hilary
Wainwright, e publicado pelo Public Services International em
colaboração com o Transnational Intitute, organiza de maneira muito
feliz os argumentos no sentido de se reorientar as parcerias público
privadas do seu sentido Estado-Empresa para uma visão de articulação
mais rica entre o Estado e as diversas formas de organização de usuários
e de sindicatos. Para um país como o nosso, que acaba de aprovar o
marco regulatório das organizações da sociedade civil e uma Política
Nacional de Participação, estas ideias têm muita relevância. Intitulado The Tragedy of the Private:the Potential of the Public (A tragédia do privado: o potencial do público), o estudo vai no contrapé do famoso Tragedy of the Commons dos anos 1960, frequentemente utilizado para justificar privatizações.
Wainwright trabalha numa linha inovadora, que é de
ver como funcionam, em diversas partes do mundo, as administrações
municipais onde a solução dominante passou a ser uma aliança entre o
interesse dos funcionários e da administração em geral em serem mais
produtivos e valorizados, e o interesse dos usuários por serviços mais
eficientes. As sua intenção é de “pesquisar os mecanismos de mudança
quando esta é guiada pelos objetivos de serviços públicos democráticos
mais do que pelo lucro”.(29)
O exemplo inicial é o da administração da água. “Das
lutas transnacionais muito efetivas contra a privatização da água
emergiu uma ideia inovadora de parceria público-público, ou
público-civil, em que as organizações públicas e organizações da
sociedade civil que administram serviços públicos colaboram por cima das
fronteiras nacionais para dividir experiências, colaborar na busca de
financiamentos, e de maneira geral para fortalecer o poder das
instituições públicas e civis na gestão de serviços e utilidades
públicas. Este modelo público-público/público-civil está se tornando uma
ferramenta institucional cada vez mais central na luta contra a
privatização e na busca de uma gestão pública de alta qualidade”.(7)
O ponto de apoio desta visão é que com a
generalização da educação e dos meios de informação, já não temos um
hiato tão profundo entre elites com elevado nível de formação (mas
também de interesses privados) e a massa de funcionários e de usuários
desinformados. Continuamos sem dúvida com um grande elitismo em termos
de dinheiro e de poder, mas a compreensão das prioridades reais da
sociedade está se generalizando. “O ponto de partida dos esforços que
relatamos, de uma transformação centrada na democratização e na melhoria
dos serviços públicos, é o know-how e a criatividade tanto dos funcionários de serviços públicos quanto dos que usam os serviços”. (7)
Trata-se aqui de gerar ferramentas institucionais
para que esta compreensão se transforme em políticas mais adequadas. E
não mais “eficientes” como no caso da privatização, em que a eficiência
dos processos se consegue às custas da deformação dos objetivos. A
tragédia dos planos privados de saúde, a elitização da educação privada,
o travamento dos sistemas de mobilidade urbana (transporte individual
privado em detrimento do sistema público) e outros demonstram claramente
este dilema. “A lógica do lucro simplesmente não responde aos
imperativos das necessidades sociais e dos direitos humanos”.(33)
Há hoje uma certa reversão de tendências. Wainwright
cita “o estudo de David Hall para o European Public Service Union
(sindicato europeu de serviço público) que mostra claros sinais de que
as municipalidades estão continuando a se orientar para a
“remunicipalização” e não a privatização em numerosos países da Europa,
incluindo a Alemanha, a França e o Reino Unido.”(32)
Paris, por exemplo, como outras cidades, retomou o
controle da gestão da água, bem público essencial e de consumo coletivo,
desastrosamente administrado após a privatização. “A água em Paris é
agora administrada por um conselho que inclui representantes dos
trabalhadores e dos usuários, supervisionado de forma independente por
cientistas e representantes públicos. Enquanto os preços subiram de
forma continuada durante a gestão privada, caíram de 8% depois do
primeiro ano de volta à propriedade pública. Os preços agora estão 40%
mais baixos do que nas periferias da cidade onde a água ainda é
administrada por uma empresa privada.” (26)
O resgate da gestão pública não é aqui um simples
retorno ao passado: central neste processo, é a simultânea
democratização: “A expansão da ideia de se fortalecer o controle local
democrático sobre o dinheiro público está focada no reforço da
participação cidadã. A experiência de Newcastle (Reino Unido) eleva a
nossa compreensão da democratização ao expor e democratizar os processos
normalmente escondidos e rotineiros de gestão dos recursos públicos.
Enquanto as formas de organização interna do setor público continuarem a
ser de cima para baixo, fragmentadas e desconhecedoras do potencial
real dos funcionários, qualquer democracia participativa do mundo poderá
ser absorvida e esterilizada ou bloqueada pelas estruturas hierárquicas
e procedimentos burocráticos. O processo interno de democratização é
portanto fundamental.”(31)
A tendência que Wainwright apresenta nesta revisão de
tendências em vários países, é a mobilização dos tão frequentemente
criticados funcionários públicos e das suas organizações para a
racionalização e a democratização dos próprios serviços, ao gerar
arranjos institucionais que permitam a sua efetiva interação com as
organizações dos usuários. “A ideia da natureza dual do trabalho implica
que o que estamos vendo é uma extensão das prioridades das organizações
de trabalhadores públicos para além do valor de troca (por exemplo, o
nível de remuneração ou a jornada de trabalho) para incorporar uma
preocupação efetiva com o valor de uso (por exemplo, a qualidade do
serviço público prestado).(35)
O que este argumento implica, “é que a ideia de
‘participação’ precisa ser ampliada para incluir um envolvimento maior
dos trabalhadores no processo decisório público sobre como o seu
trabalho é utilizado. Desta maneira, os trabalhadores do serviço público
poderão se assegurar de que a sua criatividade será utilizada para o
benefício e em colaboração com os seus concidadãos”. (36)
Esta outra visão de arranjos institucionais,
envolvendo parceiras já não apenas do Estado com as empresas, e sim
envolvendo um resgate da força e da dignidade do servidor público,
articulado com os movimentos sociais e as organizações da sociedade
civil em geral, abre perspectivas de uma sociedade ao mesmo tempo mais
democrática nos processos decisórios e mais eficiente nos resultados.
Este breve estudo, de 48 páginas, com descrição das formas inovadoras de
organização e com numerosos exemplos, constitui uma ferramenta
importante tanto para pesquisadores como para gestores sociais.
—
The Tragedy of the Private: the potential of the public – Public Services International, Transnational Institute, 2014, 48p. Documento completo online, em inglês, em http://dowbor.org/2014/07/hilary-wainwright-the-tragedy-of-the-private-the-potential-of-the-public-julho-2014-48p.html/ ou http://www.world-psi.org/sites/default/files/documents/research/alternatives_to_privatization_en_booklet_web_april.pdf
1
O outro lado da luta por uma transformação centrada na democracia é a
construção da democracia no funcionamento interno do setor público. (7)
Fonte: OUTRAS PALAVRAS
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